segunda-feira, 17 de abril de 2023

Uma espécie de sobrevivente

George Steiner (1929-2020)

Uma espécie de sobrevivente
por George Steiner 
                                                  
                                                             Para Elie Wiesel 

" Não literalmente. Graças à previdência do meu pai  ( que a revelara já ao deixar Viena em 1924), cheguei á América em Janeiro de 1940, ainda no período da " estranha guerra" ( drôle de guerre). Partimos de França , onde nasci e fui criado , e pusemo-nos a salvo.  Aconteceu assim que não estava lá , quando começou a chamada. Não estava na praça pública ao lado das outras crianças, entre as quais cresci. Nem vi o meu pai e a minha mãe desaparecerem depois de as portas de comboio se abrirem bruscamente. Mas, em certo sentido, sou um sobrevivente e não  fiquei intacto. Se muitas vezes me sinto estranho à minha geração, se aquilo que me persegue e controla a minha maneira de sentir impressiona como qualquer coisa de vagamente inquietante e artificial muitos daqueles dos quais deveria sentir-me próximo , trabalhando com eles no meu mundo presente, é porque o negro mistério do que aconteceu na Europa é, para mim, inseparável da minha identidade. Precisamente porque não estive lá, porque um acaso afortunado fez com que o meu nome não constasse da lista.
Muitas vezes, as crianças iam sozinhas , ou pela mão de estranhos. Acontecia por vezes que os pais viam os filhos passar e não se atreviam a chamá-los.  E era assim, evidentemente , não por qualquer coisa que as crianças pudessem ter feito ou dito. Era assim, porque, antes delas, tinham existido os seus pais.  O seu crime era serem filhas de quem eram. Para ele , durante o nazismo, não havia absolvição nem prescrição. Haverá agora?  Aqui ou ali, a determinação de matar os judeus, de os varrer  da face da Terra pelo simples facto de existirem, continua viva e activa. Habitualmente, trata-se de um propósito  tácito, ou revelado em explosões banais: as palavras obscenas pintadas na porta ou o tijolo arremessado contra a montra da loja.  Mas , hoje mesmo, há lugares onde o desígnio assassino poderá assumir um novo fôlego: na Rússia,  em certas zonas do Norte de África , nalguns países da América Latina. E  amanhã, onde?  Por isso, há momentos, quando vejo os meus filhos na sala, ou imagino ouvi-los respirar no silêncio da casa, em que tenho medo.  Porque lhes pus em cima dos ombros o fardo de um ódio antigo e os expus à perseguição da barbárie. Porque poderá acontecer que eu não venha a saber protegê-los melhor do que os pais das crianças abandonadas.
Este medo habita perto do nó mais fundo do modo como me penso como judeu. Ser-se judeu europeu na primeira metade do século XX era pronunciar uma sentença de condenação dos próprios filhos, impor-lhes uma condição quase para além do que se pode racionalmente conceber.  E é possível que a história se repita. Tenho de pensar assim - trata-se de uma cláusula vital - tanto quanto a realidade da recordação permaneça. Talvez nós, os judeus, nos mantenhamos mais próximos dos nossos filhos do que os outros seres humanos; por mais que o tentem , eles não podem saltar por cima da nossa sombra.
Tal é a minha autodefinição. A minha , porque não posso falar porque não posso falar por nenhum judeu. Todos nós temos, como é óbvio, alguma coisa em comum. Tendemos a reconhecer-nos uns aos outros onde quer que nos encontremos , quase ao primeiro relance, por este ou por aquela inflexão compulsiva de afecto que nos é comum, talvez pela treva que carregamos connosco. Mas cada um de nós tem de se haver  a sós com a sua condição. É esse o verdadeiro sentido da diáspora, da grande diáspora  e da diluição da crença."
George Steiner,  in Linguagem e Silêncio, Ensaios sobre a Literatura , a Linguagem e o Inumano, Gradiva, pp.230-232

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