segunda-feira, 24 de abril de 2023

Viver com um só livro

Viver com um só livro
por Eugénio Lisboa
“Já algures contei que a escritora inglesa Nancy Mitford dizia ter lido em toda a sua vida um único livro: WHITE FANG, de Jack London (na tradução portuguesa, CANINOS BRANCOS). Achou o livro de tal modo bom, que não sentiu necessidade de ler mais nenhum. Quando sentia desejo de ler, ia buscar esse famoso romance, porque tinha a certeza de ir gostar, ao passo que não poderia ter tal certeza, se fosse buscar outro livro qualquer. Isto é, o livro de London “secava” , para ela, todo o território literário em volta. Obra que lhe não trouxesse aquele mundo e lhe não desse a mesma espécie de prazer não lhe interessava.
Isto, assim dito, pode parecer bizarro e é-o, dado o extremismo que implica. Mas, de certo modo, penso que todos vivemos algo análogo, embora não durando, para nós, tal exclusividade num livro só, a vida inteira. Porque eu próprio experimentei já algo de parecido com isto, embora por um período relativamente curto. Vou dar alguns exemplos.
Quando, por altura dos meus catorze ou quinze anos, me caiu nas mãos um exemplar esfrangalhado do admirável romance de Stendhal, LE ROUGE ET LE NOIR, numa bela tradução de José Marinho, o livro de tal modo se apossou de mim, que, durante algum tempo, livro que não tivesse as virtudes apaixonadas e acutilantes deste não me dizia nada e só me aborrecia. A candura da Senhora de Rênal ou o orgulho da Mathilde de La Mole, dados naquela prosa lavada, acutilante e voltaireana, tomaram completa conta de mim. Ou se era Stendhal ou se não era nada. A sedução foi de tal ordem, que, chamando-se o protagonista do romance Julien Sorel, pus-me logo a escrever um romance intitulado HISTÓRIA DE JULIÃO, para ombrear com aquele admirado rival. Victor Hugo, na adolescência, desvelava assim a sua ambição: “Quero ser Chateaubriand ou nada.” Eu dizia com os meus botões: “Quero ser Stendhal ou nada!”
Quem não foi megalómano, na adolescência, é porque nunca foi realmente adolescente. Até porque os adolescentes megalómanos se convertem, anos depois, em adultos com os pés bem na terra. Assim aconteceu comigo que, em devido tempo, com a alma a sangrar, mandei para o cesto dos papéis a minha HISTÓRIA DE JULIÃO. Ninguém tem de ter acesso às nossas tropelias.
Tempos depois, encontrei, no CANDIDE de Voltaire, na sua prosa ágil e na sua ironia atrevida de “gamin”, a mesma sedução envolvente, que encontrara em Stendhal. Era um dizer um enorme número de coisas, em poucas palavras e em velocidade de cruzeiro.
Uma verdadeira sedução!
Mas o grande terramoto de deslumbramento foi a descoberta do teatro de Oscar Wilde, de quem li tudo, peça por peça, numa agonia de nunca poder ser tão brilhante como ele. Como é que se podia escrever, sem se ser capaz daquela cintilação sem igual? WIlde, para mim, como Jack London, para Nancy Mitford, secava todo o território da literatura à minha volta. Era como os eucaliptos que secam a terra em seu redor. O brilho demasiado intenso ofusca e agoniza: como se pode não tê-lo? E punha-me, desastradamente, a inventar fórmulas infalíveis para produzir paradoxos… Pela vida fora e num número muito variado de países, mas sobretudo em Londres, nunca perdi uma encenação de uma peça de Wilde. A sedução foi para ficar. Nem na trágica queda final da sua vida, na sórdida exposição nos tribunais, acusado de pedofilia, Wilde resistiu a fazer faiscar o seu génio cintilante, mesmo ao preço de agravar o seu caso. Foi como ele previra, anos antes: “Na minha obra, pus só talento, génio pu-lo na minha vida.” Génio de brilho negro, mas ofuscante.
Outro livro que me marcou profundamente, por volta dos meus 16 anos, foi o volumoso romance americano, da autoria de um escritor hoje esquecido, Henry Bellamann, intitulado KING’S ROW, publicado em 1940. Situado numa pequena cidade ficticiamente conhecida como King’s Row, desenvolve uma história complexa, em volta das vidas de cinco crianças e da evolução das suas vidas. O romance abriu, para mim, muitas portas sobre temas “quentes” como a loucura, o sadismo, o sexo, o incesto, o homossexualismo e o suicídio, tudo urdido com inegável mestria. Também, por algum tempo, só queria encontrar outro livro como este, mas, infelizmente, Bellamann tentou escrever uma sequela para KING’S ROW, o mais famoso dos seus romances, tendo porém falecido,  de um ataque cardíaco, em 1945. KING’S ROW teve um enorme êxito, embora rodeado de acesa controvérsia, por ter revelado a hipocrisia de uma pequena cidade, desvelando, com grande mestria, temas tabus, naquela época. Eu li este livro, poucos anos depois de ter visto uma inesquecível adaptação cinematográfica dele, dirigida pelo notável Sam Wood, com interpretações de Ann Sheridan (Randy), de Robert Cummings (Parris Mitchel), Ronald Reagan (Drake), Claude Rains, o inesquecível polícia de CASABLANCA (Dr. Alexander Tower), Betty Field (Cassandra Tower), Charles Coburn (Dr. Gordon) e Nancy Coleman (Louise Gordon). O filme omite um ou outro tabu e emagrece bastante a história, mas deixa, ainda assim, uma forte impressão. Foi este romance que esteve na origem de posteriores romances de grande êxito comercial, como o PEYTON PLACE, de Grace Metalious e outros que se seguiram, inspirados por aquele guião dos anos quarenta.
Por fim, Hemingway, com o seu ADEUS ÀS ARMAS e uma colectânea de contos magistrais, que li, avidamente, no meu sexto ano do liceu. O seu estilo descascado, directo, declarativo, seco e assassino, fascinou-me. E custou-me caro: no exame de Português-Latim, na prova de Português, dei-me ao luxo de me pôr a imitar, com grande gozo, a prosa do autor americano. O que me salvou a nota de Português- Latim foi o dezoito que tive a Latim, porque o professor que me classificou a prova de Português, não informado da egrégia qualidade do futuro autor do OLD MAN AND THE SEA, puniu-me com um miserável catorze, não se apercebendo de que eu estava apenas a querer dar um novo ímpeto ao português narrativo… à boleia do grande inovador do conto moderno! Injustiças!
Eis alguns exemplos de livros e autores que, por um tempo, secaram tudo à minha volta. Quem não passou por isto?”
Eugénio Lisboa, 24.04.2023

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