terça-feira, 1 de novembro de 2022

A vida tem outras facetas que não o puro horror

Prefácio
Daphne Merkin
“Ter graça não é fácil. Como bem saberá quem já tenha passado uma festa a ouvir piadas secas, vendo-se forçado a rir, pouco mas educadamente, o desejo de ser engraçado é ambição de muitos mas dom de poucos. Então no papel, onde não se pode contar com timings, gestos e expressões faciais para pontuar ou enfatizar uma piada, fazer rir pode revelar-se tarefa ainda mais árdua. Noutros tempos, que parecem já bem distantes, a arte de ter graça, a arte da escrita do género de textos humorísticos que o The New York Times designava por «casuals», era praticada por sumidades de dedos ágeis como Robert Benchley, Dorothy Parker, George S. Kaufman e S. J. Perelman. Nos dias de hoje, ter graça, especialmente no prelo, parece constituir, em grande parte, tarefa mais laboriosa e elaborada — gerando sorrisos de reconhecimento, talvez, mas dificilmente risos e, menos ainda, ataques de riso.
E depois temos Woody Allen. Muitos dos seus ditos espirituosos, pronunciados seja nos ensaios, seja nos filmes, estão completamente embebidos no tecido da nossa cultura. «Se de facto houver um Deus… o pior que se pode dizer dele é que o seu trabalho deixa muito a desejar» [Love and Death/Nem Guerra, nem Paz]. Outros são menos conhecidos, mas igualmente memoráveis, baseando-se o seu efeito numa associação inesperada entre alusões high-brow e humor low--brow: «Trabalhei com Freud em Viena. Desentendemo-nos a respeito  do conceito de inveja do pénis. Freud achava que  devia circunscrever-se às mulheres.» [Zelig
Uma das minhas  tiradas preferidas é uma sátira ao tipo de memorialista portentoso que parte do princípio de que todos estão interessados nas suas revelações, e por isso tenta, de forma irritante, dissimular o seu rasto. O dito encontra-se em «Seleções dos Blocos de Apontamentos Allen», o primeiro texto de Without Feathers/Sem Penas, a sua segunda coletânea, publicada em 1975. (A primeira foi Getting Even/Para Acabar de Vez com a Cultura, publicada em 1971.) «Será que me devo casar com W.? Só se ela me disser as outras letras do seu nome.» Uma terceira coletânea, Side Effects/Efeitos Secundários, foi publicada  em 1980, e uma quarta, Mere Anarchy /Pura Anarquia, em 2007.Temos igualmente a paródia à delicada observação de Emily Dickinson, que cumpre a função de epígrafe de Without Feathers   («Hope is the thing with feathers»), que  Allen corrige de forma laboriosa e hilariante: «Como estava errada Emily Dickinson. A esperança não é “aquela coisa com penas”. A coisa com penas, na verdade, é o meu sobrinho. Tenho de o levar a um especialista em Zurique.» Sem esquecer a abertura de «Examinar Fenómenos Psíquicos»: «É inquestionável que existe um mundo nunca visto. O problema é saber a que distância está do centro da cidade, e a que horas fecha.» Talvez o texto mais precioso do livro, porém, seja «A Prostituta de Mensa», acerca de uma aluna de uma  escola de elite, de 18 anos, que tem uma vida dupla como call girl. A matrona para quem ela trabalha tem um mestrado  em Literatura Comparada, e a especialidade da rapariga é envolver os clientes em discussões intelectuais. Consegue discorrer interminavelmente sobre Moby Dick («O extra do Simbolismo») e a ausência de subestrutura de pessimismo em Paraíso Perdido. O texto é simplesmente genial — e separador de águas. Poderíamos prosseguir indefinidamente. Without Feathers foi publicado,  por mais que custe a crer, há quase meio século, e passou quatro meses na lista de campeões de vendas do New York Times. Cimentou a reputação de Allen como humorista cerebral, uma extensão da persona dócil e infeliz  dos seus filmes, mas com um desvio quase impercetível da sua personalidade submissa e autodepreciativa para uma figura  de autoridade ligeiramente (ligeiramente apenas) maior, que comenta o mundo absurdo que a rodeia. Permanecem a subtonalidade característica da melancolia — aquilo que o próprio Allen designou por anedonia (a incapacidade de apreciar  as coisas) — e o ponto de vista urbano, bem como a perspetiva pessimista que tem algo de absurdo e dá cor a tudo  aquilo que vê, desde amor, sexo e morte até aos monumentos  da cultura. Numa secção designada «Prognosticação», e de novo em «Examinar os Fenómenos Psíquicos», cita os ditos  ostensivamente sábios de um conde do século XVI  chamado Aristónides. «Vejo uma grande pessoa» — anuncia este sábio — «que inventará um dia em favor da Humanidade uma  peça de vestuário a usar sobre as calças para as proteger ao  cozinhar. Chamar-se-á “abron” ou “aprone”.» (Aristónides referia-se, claro está, ao avental.) Se se pode classificar os comediantes como prodígios, como se faz com os pianistas asiáticos de 13 anos, então  Allen cumpre indubitavelmente os requisitos. Começou a  vender piadas aos 15 anos e foi irradiado da Universidade de Nova Iorque por ser demasiado assíduo a faltar às aulas,  e trabalhava pouco e era demasiado pouco atento. Escassos  anos depois, Allen escrevia guiões para episódios especiais  de Sid Caesar, criando piadas em ritmo de fogo de rajada. Trabalhou com Mel Brooks, Larry Gelbart, Carl Reiner e  Neil Simon, e era capaz de se sentar à máquina de escrever, reza a lenda, quinze horas a fio, produzindo piadas e ditos espirituosos sem parar. (Aqui não há bloqueio do escriba.)  Durante os anos 60, prosseguiu a sua carreira atuando como  standup comedian em Greenwich Village, no The Bitter End  e no Cafe Au Go Go. Ao mesmo tempo, escrevia e realizava  comédias slapstick como Take the Money and Run /O Inimigo Público (1969), Bananas (1971), Sleeper /O Herói do  Ano 2000 (1973) e Love and Death /Nem Guerra, nem Paz (1975). Ainda me lembro de ir ver Take the Money and Run na qualidade de adolescente resistente, género tenta-lá-fazer-me-rir-vá, e irromper em gargalhadas sonoras quando Allen,  desempenhando o papel de assaltante de bancos frustrado,  exibe um letreiro onde se lê: «I have a gub»*(1)
E agora, senhoras e senhores, e membros não-binários do  público leitor, a vossa paciência será recompensada. O auteur dos olhos tristes regressou mais de quinze anos após a sua última coletânea com um novo livro intitulado Gravidade  Zero. Alguns dos textos aqui presentes foram publicados na  The New Yorker, enquanto outros foram escritos expressamente para esta nova obra. Entre estes últimos inclui-se uma  pungente short story de cinquenta páginas intitulada «Crescer em Manhattan», quintessencialmente allenesca na sua mistura de nostalgia romântica e incredulidade de  sobrolho-levantado perante «mais uma contradição de um mundo especialmente concebido para que ele jamais o entenda». O duplo de Allen é Jerry Sachs, 22 anos, nado e criado  em Flatbush num «prédio de apartamentos de tijolo vermelho cujo nome homenageava um patriota. O Ethan Allen. Pensava por vezes para consigo que o nome melhor para o  espaço, considerando o seu exterior encardido, o átrio banal  e o porteiro habitualmente ébrio, seria Benedict Arnold». Sachs trabalha na sala do correio de uma agência teatral,  contra o desejo da mãe, «mulher perpetuamente desprovida  de encantos» de que se tornasse farmacêutico. O membro  mais referenciado da sua família é um primo que «pronuncia  as palavras como Abba Eban». Sachs vive num «apartamento  de um só quarto, acanhado e sem elevador, em Thompson Street» e importuna a mulher, Gladys (um nome perfeito  para uma primeira esposa), que trabalha numa agência imobiliária e frequenta à noite o City College com o intuito de  se tornar professora, com a sua «ladainha de queixas psicossomáticas». Sachs é um apaixonado por Manhattan na sua  fase mais requintada, dos tempos do El Morocco e do Gino’s,  quando as «pessoas bonitas travavam diálogos inteligentes  a bebericar cocktails num cenário Cedric Gibbons». Num dia de primavera, está sentado no seu banco preferido do lado poente do lago dos barcos à vela quando  uma rapariga adorável chamada Lulu, de olhos violeta que  «projetam uma sofisticada forma de estar urbana» se senta  na outra ponta do banco. Quando a informa de que está a escrever uma peça «acerca de uma mulher judia que se vê  forçada a fazer opções existenciais», Lulu interrompe-o para lhe dizer que a sua tese versou filosofia alemã. «O Conceito da  Liberdade na Poesia de Rilke». Entusiasma-se com a ideia de Sachs dar um tratamento cómico a esses temas, e ele reage  em conformidade: «A aprovação dela fez-lhe deslocar a  calota da cabeça, levantar voo como um disco voador e dar a volta ao sistema solar antes de regressar à base.» A partir  daí, pelo menos durante algum tempo, os dois embrenham-se em kismet — até ao momento em que a relação vai por  água abaixo, devido a uma proposta de orgia que Lulu não  quer perder, e à qual Sachs, pelo contrário, se opõe: «Não  me classificaria como ansioso», declara, irritado, «por não me apetecer fazer sexo com o Mormon Tabernacle Choir.»  De qualquer forma, tratando-se de uma criação de Woody  Allen, nunca esperaríamos que a felicidade viesse para ficar, verdade? Há mais dezoito histórias mais curtas que abordam todos os temas, desde candidatos a atores falhados representados  por agentes como Toby Munt da Associated Parasites  até às origens da Galinha General Tso, passando pelo pied--à-terre com «enorme mansão em Belgravia» onde residem  o Duque e a Duquesa de Windsor, preocupando-se o Duque  com a criação de um nó de gravata Windsor aceitável e a melhor forma de fazer um laço enquanto a Duquesa, «tentando ocupar o tempo, treina a Watusi a partir de um diagrama de passos colado no chão». Um ensaio, «Park Avenue, Último Andar, Obrigatório Vender — Ou Saltar», escalpeliza  a ganância e os esquemas paralelos do mercado imobiliário,  enquanto outro descreve um cavalo que se aventura na pintura a óleo e se transforma num artista requisitado. «Contas de Manhattan» traz-nos Abe Moskowitz, que «caiu morto de ataque cardíaco e reencarnou sob a forma de lagosta», após o que a história resvala para uma paródia do arquivigarista Bernie Madoff, que escapa por pouco a ser ele próprio transformado em lagosta. Outra história transforma o Monopólio  no jogo da vida real, jogado com paradas altas por antigos sócios do Lehman Brothers. Outra aborda o  caso de um grupo de galinhas recalcitrantes, enquanto outra debate a  virtude de diversas almofadas, cuja conversa é situada no London Explorers Club. Há uma rápida e astuta deambulação pela cultura woke e, como não podia deixar de ser, Hollywood, com o seu faux glitz e pseudo-hierarquias, é alvo de frequentes surras.
Indo direto ao assunto: Allen não perdeu pitada da sua capacidade de entretenimento e deleite, quer o faça através do seu estilo intencionalmente pomposo, incluindo a utilização confusa de palavras caras, barrocas ou obscuras — gewgaw, afflatus, syncope, callipygian, crepuscular — quer inventando nomes disparatados, mas estranhamente adequados às suas personagens, como Hal Roachpaste, Ambrosia Wheelbase, Hugh Forcemeat, Panufnik, Morey Angleworm, Grossnose… a lista é interminável. Temos igualmente o borrifar pródigo de referências eruditas, de Scriabin, Reinhold Niebuhr e La Rochefoucald até Strindberg e Turgenev. E também, já agora, para não ser acusado de demasiado rebuscado, Miley Cyrus.
Mais impressionantes, porventura, para uma académica caduca como eu própria, são as alusões a expressões como «exaltação das cotovias», ou «o mar atormentado por gongos» de W. B. Yeats. Se escutar com atenção, poderá ouvir a característica execução de Allen por detrás das palavras — as consoantes dentilabiais, o tom neutro, mas melancólico, a passagem repentina e brusca da mais normal e plebeia das observações para comentário absolutamente desvairados. Nestes tempos cada vez mais escuros que são os nossos,  quando um biltre baixote de olhos estreitos parece apostado  em semear caos e sofrimento no mundo, uma das poucas pausas que nos resta poder fazer na tristeza e no desespero são o toquezinho ligeiro de humor e as irrupções ostensivas de rebaldaria, que nos recordam que a vida tem outras facetas que não o puro horror. Nunca como agora foi tão importante fazer os palhaços entrar em cena. Woody Allen que entre pois em cena.”
Daphne Merkin,  em 
Prefácio a Zero Gravity , de Woody AllenEdiçoes 70, pp.11-18
 
WOODY ALLEN
"Woody Allen é argumentista, realizador e actor. Stand-up comedian, tem também vasta obra publicada em livro. Vive em Manhattan, no Upper East Side, com a mulher, Soon-Yi, e as duas filhas de ambos, Manzie e Bechet. Apaixonado pelo jazz e entusiasta do desporto. Nas suas próprias palavras, lamenta nunca ter feito um grande filme, embora afirme que ainda está a tentar.
Sinopse
ZERO GRAVITY
é o quinto livro de textos humorísticos de Woody Allen, um artífice de prosa hilariante que conquistou um alargadíssimo séquito de leitores desde os seus clássicos Pura Anarquia, Sem Penas, Getting Even e Side Effects. Sejam os textos sobre cavalos que pintam, carros que pensam ou a vida sexual de celebridades, Woody Allen é sempre original, sofisticado, extremamente observador e, o mais importante, implacavelmente engraçado."

*(1) - Em vez de " I have a gun. " [N. do T.]

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