quinta-feira, 3 de novembro de 2022

No aniversário de Manoel de Andrade


Completa,  hoje,  oitenta e dois anos o poeta de Curitiba. Homenageá-lo é escutar a melodia dos seus poemas, que  se eleva em magistral sinfonia  porque  tem, como acordes, o coração de uma América Latina, sonhada e percorrida de lira na mão.
Um poema basta para que a sua voz nos transporte para lá do Atlântico , num histórico  trajecto que só ele é capaz de conduzir. 
A Manoel de Andrade,  o nosso agradecimento e sentidas felicitações.

Machu Picchu , Peru

América, América...
 
Trago ainda na alma o mapa dos caminhos
Meus versos riscam teu dorso para marcar um tempo único e
                                                                                 [perfumado.
América, América,
Ali, entre o musgo e as rochas, o abismo florescido.
Acolá, o milho semeado e a colheita rumorosa.
Entre serras e quebradas vai o colla dedilhando sua flauta.
É seu hino à pachamama modulando o silêncio do altiplano.
 
Canto meu enredo de viandante,
passo a passo rumo ao norte e à alvorada.
Quantos atalhos, meu Deus, quantas fronteiras!
A travessia ao entardecer no Titicaca,
o Illimani batido pelo sol,
e aquela noite sob as estrelas em Macchu Picchu.
Ah! este aguaceiro vem agora molhar minha saudade,
e tudo me chega como um recanto do passado,
e se hoje digo amigos e digo hermanos,
ouço nossos passos ecoando nas vielas seculares de Quito e
                                                                                 [de La Paz.
 
Abre teu cântaro, ó Poesia, e dá-me um punho de rocio para
                                                                              [escrever-te
porque ainda não te cantei quanto quisera.
América, América,
que canção para mim soará mais bela que tuas sílabas de
                                                                               [encanto?
 
 
 
Canto o sul de Anahuác,
falo de uma América primeira,
asteca, quiché, chibcha, quéchua, mapuche e guarani,
essa América materna,
botânica e ancestral,
sangrada por Cortez, Pizarro e por Valdivia.
 
Canto a América que vivi
uma só pátria e violentada,
submetida pelas garras perversas do Império.
Vi tuas trincheiras abertas,
o fulgor do teu rosto renascido da utopia,
tuas bandeiras de sonhos
feitas de plumas e veias transparentes.
Os campos todos semeados
e o porvir tatuado em cada gesto.
Tudo era aroma na gleba cultivada,
nos brotos germinava a esperança
e nossas pálpebras se abriam para o amanhã.
 
Depois as densas trevas sobre o sul,
o chumbo cruel,
os labirintos da dor e das atrocidades.
E eis que gemem os cravos e gemem as rosas,
geme a vida ainda em botão.
Mancho este verso para nomear Garrastazu, Bordaberry,
                                                             [Videla e Pinochet.
Para denunciar a verdade sufocada
e os rastros genocidas do terror.
Para falar das valas clandestinas,
das ossadas do Atacama
e dos “voos da morte” para o mar
Meu réquiem para trinta mil argentinos,
meu canto para as crianças da ditadura,
para os sobreviventes e suas cicatrizes,
para a viuvez e a orfandade
para las Madres de Plaza de Mayo e suas lágrimas perenes.
 
América, América,
quarenta anos se passaram
e tuas feridas ainda emergem da tragédia!
Eis porque denuncio a face perversa dos condores,
os teus generais malditos.
Canto a ti, América,
teu nevado esplendor tantas vezes torturado,
América de tantas agonias e massacres,
ouço-te ainda na voz melancólica dos charangos, quenas e
                                                                            [zamponhas,
chorando por la matanza de San Juan, em Potosi.
Uma América de lágrimas,
traída em Cajamarca,
esquartejada em Cusco,
sacrificada em La Higuera.
executada em Trelew, El Frontón, Villa Grimaldi e no
                                                                     [Dói-Codi.
 
Perdão... pelo meu canto,
ele é também assim: um áspero clarim ao entardecer.
Distante, tão distante,
no tempo e nos andares,
e hoje, em busca de mim mesmo,
ainda abrigo o mesmo combativo coração.
Não sei o que te espera, América,
os anos correram inquietantes e velozes
restando um mundo com seu som intolerável
 
Por um momento digo basta,
há tanta dor nessas memórias.
Meu pensamento em prece, e num lampejo, viaja ao sul do
                                                                                     [Chile.
Lá, muito além do Bio-Bio, há um golfo deslumbrante.
Vou em busca de Arauco,
lá lutaram meus heróis, Caupolicán e Galvarino.
Foi lá onde viveu Lautaro e onde vive Frederico.
Vou para rever o cone nevado do Antuco
rever o vale e a Cordilheira,
o seu dossel verdejante, onde se gesta a vida.
Vou para relembrar uma baía de barcos,
para construir uma paisagem na alma,
uma tenda de luz para um amigo.
                                       Curitiba, 20 de dezembro de 2013
Manoel de Andrade
, in “ As palavras no espelho”, Escrituras Editora, 2018, pp. 243-246

2 comentários:

  1. Releio este poema e relembro as imagens que a saudade me ditou. Cinquenta anos se passaram de uma América que me tatuou na alma os rastros dos caminhos perfumados da Cordilheira.
    Relembro o Continente quando era um ninho de ideais e a palavra Hermanos se pronunciava em cada gesto. Mas também uma América violentada pelas grades, pelo martírio e pelo chumbo, e glorificada pela saga heroica dos grandes heróis vencidos.
    Que ventura ter a história nos meus passos e no coração a memória indelével dos sonhos que hastearam tantas bandeiras.
    É aqui agradeço comovido a editoria deste blog por repartir o meu lirismo. A minha gratidão é imperecível ante esse carinho fraterno e inesgotável para com os meus versos.

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