sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

O invisível dedo nu de Deus

 " Conta o quarto Evangelho (João, VIII, 66-9), e aparecem-nos agora os ideólogos  dizendo que a passagem é apócrifa , que quando os escribas  e fariseus  apresentaram a Jesus a mulher adúltera, ele, inclinando-se até ao chão, escreveu na poeira , sem cana nem tinta , com o dedo nu, e enquanto o interrogavam voltou a inclinar-se e a escrever, depois de lhes ter dito que aquele que se sentisse sem culpa fosse o primeiro a lançar uma pedra à pecadora , e eles , os acusadores, afastaram-se em silêncio.  Que foi que leram na poeira onde escreveu o Mestre? Leram alguma coisa? Detiveram-se nessa leitura? Na  parte que me toca , vou pelos caminhos do campo , da cidade, da natureza e da história, procurando ler , para o comentar, aquilo que o invisível dedo nu de Deus escreveu na poeira que o vento  das revoluções naturais e históricas leva consigo. E Deus ao escrevê-lo inclina-se para o chão.  E o que Deus escreveu é o nosso próprio milagre, o milagre de cada um de nós , Santo Agostinho, Jean-Jacques, Jean Cassou, tu, leitor, ou eu que escrevo agora com pena e tinta este comentário, o milagre da nossa consciência da solidão e da eternidade humanas.
(...) Não, não me interessam os problemas  que dizem da actualidade e que não o são. Porque a verdadeira actualidade , a sempre actual, é a do presente eterno. Muitas vezes, nestes dias trágicos para a minha pobre pátria, ouço perguntar :  «e que faremos amanhã?». Não , que vamos fazer mas é agora.  Ou melhor, que vou eu fazer agora, que vai fazer agora cada um de nós. O presente e o individual: o agora e o aqui. No caso concreto da actual situação política -- ou melhor  ainda  que política , apolítica , isto é, incivil - da minha pátria, quando ouço falar de política futura e da reforma da Constituição respondo que temos de começar por desembaraçar-nos da presente miséria, começar por pôr termo à tirania e julgá-la. E o resto que espere . Quando Cristo ia para ressuscitar  a filha de Jairo cruzou-se  com a hemorroíssa e deteve-se junto a ela, pois era o que então importava; a outra , a morta, que esperasse.(...) 
E respondo : primeiro que o provisório é o eterno , que o aqui é o centro do espaço infinito, o foco da infinitude, e o agora o centro do tempo , o foco da eternidade; logo que o individual é o universal -  em lógica, os juízos individuais são assimiláveis  aos universais - e, por conseguinte, o eterno;  e por último que não há outra política senão a de salvar os indivíduos  na história. Nem mesmo assegurar o triunfo de uma doutrina, de um partido, ampliar o território nacional ou derrubar uma ordem social vale seja o que for se não para salvar as almas dos homens individuais. E respondo também que posso entender-me com políticos - e entendi-me   por mais de uma vez com alguns -, que posso entender-me  com todos os políticos que sintam  o valor infinito  e eterno da individualidade.
(...) A vida, que é tudo,  e que por ser tudo se reduz a nada, é sonho , ou quiçá sombra de um sonho, e talvez Cassou tenha razão quando diz que não merece ser sonhada sob a forma sistemática. Sem dúvida ! O sistema - que é consistência - destrói a essência da vida. E, de facto, os filósofos não viram a parte que de si mesmos , do sonho que eles são, puseram no seu esforço para sistematizar  a vida  e o mundo e a existência.  Não há filosofia mais profunda  do que a contemplação de como se filosofa. A história da filosofia é a filosofia perene."
Miguel de Unamuno, in Como se faz uma Novela, Grifo- Editores e Livreiros, Lda,  Fevereiro de 1998, pp.35, 40, 41, 42, 47,48

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