terça-feira, 4 de janeiro de 2022

AS VERDADEIRAS E AS FALSAS RIQUEZAS



AS VERDADEIRAS E AS FALSAS RIQUEZAS
(Sobre o poeta João Pedro Grabato Dias)
por Eugénio Lisboa
 
O morto tem o pavor de já não servir.
Há que dizer-lhe que não, que é útil e prová-lo.
J.P. Grabato Dias
 
O génio, em definitivo, não é mais  do que a faculdade
de perceber as coisas de forma pouco habitual.
William James
 
"Vai para trinta anos que morreu uma das mais extraordinárias, completas e complexas figuras de que a nossa cultura pode orgulhar-se: um verdadeiro homem da Renascença, como já foi observado por António Cabrita, um dos ensaístas que, ultimamente, mais se tem esforçado por que se não deixe cair num esquecimento obsceno  este personagem singularíssimo: poeta, pintor, escultor, apicultor, arquitecto, agricultor, ensaiador de teatro, cenógrafo, guionista de cinema, maquetista de jornais, artista gráfico, construtor de barcos, professor de qualidade invulgar, tudo foi este homem e foi-o com uma profundidade e empenho quase demoníacos, desdobrando-se em heterónimos como António Quadros (ortónimo), João Pedro Grabato Dias (poeta), Frey Ioannes Garabatus (poeta anti-épico), Mutimati Barnabé João (poeta militante).
Em vida, lidei pessoalmente com vária gente invulgar, mas conheci apenas três pessoas obviamente feridas de genialidade: José Régio, José Tiago Oliveira (matemático) e João Pedro Grabato Dias. (Considero Herberto Hélder um poeta genial, mas nunca lidei com ele pessoalmente e, por isso, não o incluo nesta pequena lista). Sabemos muito bem quando estamos na presença de um verdadeiro génio: pela forma muito singular como consegue projectar uma luz muito nova em problemas muito antigos, encontrando, para eles, soluções inesperadas, que completamente nos desarrumam. A epígrafe do filósofo americano, William James, irmão do grande romancista Henry James, que pus à cabeça deste texto, diz isto mesmo que acabo de escrever, mas por outras palavras: “O génio, em definitivo, não é mais do que a faculdade de perceber as coisas de forma pouco habitual.” Foi isto mesmo, em longas, frequentes e continuadas conversas – e, é claro, na leitura porfiada das suas obras - que encontrei, de modo particularmente vincado, nestas três grandes figuras da nossa cultura: uma fulgurante capacidade de ver e fazer ver tudo de outra maneira.
É precisamente por me ter cruzado e profundamente convivido com gente deste invulgar calibre – e também com outra também notável, mas não atingindo talvez o patamar da genialidade – que me faz mau sangue ver hoje, por aí, entronizados, de maneira comicamente obscena, tantos falsos ídolos sem o mínimo asseio intelectual e criativo. Esta promoção escandalosa, ao lado do esquecimento de figuras como Grabato Dias, é pecado sem perdão. Esquecer o grande poeta de 40 E TAL SONETOS DE AMOR E CIRCUNSTÂNCIA E DUMA CANÇÃO DESESPERADA (1970), O MORTO (1971), A ARCA – ODE DIDÁCTICA NA PRIMEIRA PESSOA (1971), UMA MEDITAÇÃO – 21 LAURENTINAS E DOIS FABULÍRIOS FALHADOS (1971), PRESSAGA (1974), EU, O POVO (1975), FACTO-FADO (1986), O POVO É NÓS (1991), QUYBYRYCAS (1972), SAGAPRESS (1992), poeta que está várias oitavas acima de tantos aclamados e vastamente premiados poetas – é um caso de cegueira ou de temer quem lhes faz sombra. Por isso, transcrevo aqui, com gosto, uma passagem de um belo e longo ensaio de António Cabrita:
“Tem sido um destino. De cinco em cinco anos vejo-me obrigado a reeditar este texto, pelo mesmíssimo motivo: a insuportável obscuridade que caiu sobre um dos mais interessantes e completos espíritos da literatura e da arte portuguesa do século XX: António Quadros/Grabato Dias (1933/1994), (…); um homem da Renascença como antes dele só houve em Almada Negreiros. Vivendo no limbo, entre Moçambique e Portugal, ninguém o reivindica porque a todos faz sombra e a sua obra está toda por reeditar.”
Não foi inocentemente que pus também em epígrafe uma passagem desse extraordinário livro: O MORTO. Como ali se diz, o morto “tem pavor de já não servir”. Parecia premonitório: Grabato Dias, desaparecido em 1994, estará agora metaforicamente apavorado por já não servir. Todo o seu génio multifacetado não foi suficiente para o tornar “útil”. Mas a resposta a isto foi também prevista por ele e encontra-se no segundo verso da epígrafe: “Há que dizer-lhe que não, que é útil e prová-lo”. Prová-lo, como? É muito simples: reeditá-lo. A responsabilidade cabe ao herdeiro, pois sei que não faltarão editores interessados.
Voltarei a isto muito em breve."
Eugénio Lisboa, 3.01.2022
 

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