sábado, 3 de julho de 2021

Aquele pequenino lado do facto, do homem, da obra


"Todos nós hoje nos desabituámos, ou antes nos desembaraçámos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o facto mais complexo, largamente nos contentamos 
com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou — apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos — «Este é uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar — «É um génio!» ou «É um santo!» oferecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há acção individual ou colectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda. E a opinião tem sempre, e apenas, por base aquele pequenino lado do facto, do homem, da obra, que perpassou num relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos um carácter: por um carácter avaliamos um povo."
Eça de Queirós, in “A correspondência de Fradique Mendes”, Livros do Brasil

"Creio que para fazer bom jornalismo devemos ser, antes de mais, homens bons ou mulheres boas: seres humanos bons. Pessoas más não podem ser bons jornalistas.
(…)
Neste sentido, a única maneira de fazer bem o nosso trabalho é desaparecermos, esquecermo-nos da nossa existência. Nós só existimos como indivíduos que existem pelos outros, que partilham os seus problemas e tentam resolvê-los ou, pelo menos, descrevê-los.
(…)
Há muitos casos como este, mas era só para dizer que no nosso ofício, muitas vezes, temos de prestar mais atenção ao que se passa simplesmente à nossa volta – que faz, exactamente, parte dos imponderabilia -, do que ao que se diz na rádio, na televisão ou nas conferências de imprensa.
(…)
Hoje, se queremos perceber para onde estamos a ir», sustenta Kapuscinski, «não é necessário olhar para a política, mas sim para a arte. Sempre foi a arte que indicou, com grande antecipação e clareza, o rumo que o mundo ia tomando e as grandes transformações que se preparavam. É mais útil entrar num museu do que falar com cem políticos de profissão.»
Ryszard Kapuscinski, in Os Cínicos Não Servem Para Este Ofício, Relógio D’Água

Sem comentários:

Enviar um comentário