segunda-feira, 19 de julho de 2021

A Ilha


A Ilha é considerada a obra-prima de Gianni Stuparich (1891-1961), talvez menos conhecido do que outros grandes escritores de Trieste (Italo Svevo, Umberto Saba, Scipio Slataper ou Claudio Magris) por ter sobreposto os seus compromissos morais à expressão estética. Nas palavras de Magris, ele era «um mestre de rectidão civil e de empenhamento democrático», tendo de resto pago caro a recusa do fascismo, com uma passagem pelo campo de concentração de San Sabba (1945).Em A Ilha (1942), Stuparich narra uma viagem final. Consciente do declínio físico, um homem convida o filho a viajar com ele até à ilha onde nasceu, para o que talvez sejam os seus últimos dias. Vindo das montanhas, o filho acede ao pedido e enfrenta a «luz crua» do mar, a «implacável cintilação do azul», procurando reaproximar-se desse pai que lhe abriu de vez os horizontes, aos dez anos, durante um périplo pela Dalmácia («onde antes imaginara apenas abismos ignotos e temerosos, descobrira chão firme e a alegria de por ele caminhar, desenvolto»), viagem iniciática cuja memória lhe provoca agora uma «sensação obscura, fisiológica; talvez idêntica à que deve sentir uma borboleta quando sai da crisálida».
O progenitor, que já foi como um deus para ele, «com o rosto luminoso, a voz sonora, modos de conquistador», envelheceu e tem um cancro no esófago, ameaça mortal que ergue, entre os dois, um silêncio em que o não-dito (a doença) apenas torna mais desesperado o afecto que os une. Na ilha há calor, mosquitos, insónias, uma paisagem deslumbrante e agreste. O pai vai à pesca, fuma, lê a Bíblia (O Livro de Job), recorda a «ilhota do amor» onde «os cachos oscilavam entre os lábios dos amantes», apagando-se numa espécie de resignação satisfeita. O filho mergulha no mar agitado, tortura-se com o sofrimento paterno (a tosse, os engasgos, os sinais da «fria lividez da morte») e tenta controlar as emoções. Ambos sabem que não há regresso depois do regresso. E é nesta matéria tão frágil – o amor indizível, a consciência do fim – que Stuparich esculpe a sua história. Uma história de uma simplicidade e beleza avassaladoras."[Texto publicado no suplemento Actual, do semanário Expresso]


Eis um pequeno  excerto deste livro admirável que releio com fascínio e emoção:
A ilha
" Ao dissipar-se a noite, o filho, depois de ter passado pelo sono sentado no maple, assistiu da janela ao espectáculo do alvorecer. O espelho preguiçoso do mar começou a fremir, libertando-se da névoa; as casas da vila alcandorada sobre o porto  cambaleavam ainda, meio adormecidas  no lusco-fusco, quando de repente foram sacudidas  por um rio de luz quente que se despejou  sobre elas: o Sol erguera-se de chofre. O filho fechou os olhos e sentiu correr-lhe por todo o corpo um lento calafrio. Teve a sensação de ser ele  a criatura abandonada  e moribunda que sofria no outro quarto. 
Encontrou o pai  soerguido nas almofadas, de cigarro entre os dedos. Ainda tinha vontade e força para fumar. A noite deixara-lhe no rosto as marcas de um cansaço já expiado até ao extremo-limite; nos olhos  opacos e na boca quase irónica , a expressão de uma vontade decidida.
- Não imaginas sequer  que me mandas transportar até ao vapor. Vou pelo meu pé.
Levantou-se para fazer a barba . Aguentou o primeiro cambaleio apoiando-se à cabeceira da cama.
- Estás a ver?, para ir até ao vapor dás-me o braço tu, " a bengala da minha velhice".
Assim conhecera o filho sempre o pai, e assim, superada a última insídia da degradação, o pai morria, ficando ele, conservando a sua altivez de homem superior às vicissitudes , mais forte do que o próprio destino. Era esta a realidade, o seu verdadeiro primeiro plano; tudo o resto, incluindo a mentira  daqueles últimos meses, passava para plano de fundo.
No piróscafo, o pai quis ficar no convés para se despedir da sua ilha; depois desceu para o camarote.
O filho viu a ilha diminuir e desaparecer no horizonte, no imenso fulgor do mar. Foi esse o primeiro instante em que teve consciência exacta e pura daquilo que perdia ao perder o pai."
Giani Stuparich, in a ilha, Edições Ahab, Lda, Outubro de 2009, 1ª edição, pp.61,62

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