quinta-feira, 1 de julho de 2021

Uma entrevista a Eugénio Lisboa (1ª parte)

Eugénio Lisboa

Pelo interesse e riqueza que sempre revestem as palavras de Eugénio Lisboa, transcrevemos a primeira parte de uma longa entrevista, concedida, há algum tempo, ao quinzenário As Artes Entre As Letras.
A segunda parte desta entrevista será transcrita amanhã .

AeL – Fale-nos do seu percurso. Qual o papel da sua formação em engenharia na vasta obra que produziu?
E.L. – Não foi, em si, a formação em engenharia que marcou a obra que tenho feito mas aquilo que me levou a ir para engenharia: o meu gosto pela matemática e pelas físico-químicas, que precedeu (e excede) o curso de engenharia. Aliás, se tivesse escolhido bem, teria ido para ciências puras e não para engenharia, embora esta nunca me tenha feito mal, antes pelo contrário.
Julgo que o gosto pela ciência e também pela filosofia ajuda não pouco a não se dizerem e a não se escreverem aquelas coisas arbitrárias e atrabiliárias que todos os dias se dizem e se escrevem em jornais e até em publicações supostamente mais doutas. O respeitinho pelas palavras e pelas ideias (claras) aprende-se,  convivendo com a história das ideias e do pensamento científico. o pensamento daqueles que estavam mais interessados em compreender do que em lançar foguetes. O discurso literário é, com uma frequência alarmante, um foguetório sem grande sentido, onde habitam os mais rotundos disparates, que se tornam emblemas duráveis e acarinhados. Disto, infelizmente, nem a universidade se livra. O gurú literário da segunda metade do século XIX, Ferdinand Brunetière, professor da prestigiosa École Normale Supérieure e director da influente Revue des Deux Mondes, afirmava, do alto do seu desprezo de humanista pelas ciências “duras”, que “haveria menos alcoólicos (...) se a química tivesse feito menos progressos” .  E, não contente com isso, aludindo ao livro de Darwin – A Origem das Espécies – proclamava: “Essas ideias devem ser falsas, porque são perigosas.” Raciocínio brilhante, que, por certo, não teria feito, se tivesse molhado um pouco o bico no lago portentoso da ciência ou tivesse “cheirado” minimamente um bom manual de filosofia... Porque os seus dislates de grande guru literário não se ficaram pelas alusões à ciência: o que disse de Baudelaire figura hoje nos bons “dictionnaires de la bêtise”.
AeL – As suas experiências cosmopolitas modelaram de alguma forma o seu pensamento?
E.L. – Tenho, de facto, viajado muito e, sobretudo, vivido longamente em latitudes e longitudes diversas: tenho 38 anos de Moçambique, onde nasci, 17 de Inglaterra, 23 de Lisboa, um ano de África do Sul e um ano de Suécia. Isto ajuda poderosamente a um alargamento de perspectivas. Mas o cosmopolitismo não depende só – ou fundamentalmente – disto: está dentro de nós. Adolescente, em Moçambique, fui francês com Voltaire, Balzac, Stendhal, Anatole France ou Roger Martin du Gard, inglês, com Dickens, Charlotte Brontë, Wilde, D. H. Lawrence, Conrad ou Huxley, alemão, com Thomas Mann, italiano com Pirandello e D’Annunzio, romeno, com Panait Istrati, americano, com Mark Twain, Hemingway, Faulkner, Saroyan ou Steinbeck, russo, com Tolstoi, Dostoiewsky, Turguenev, Tcheckov ou Sologub. A filosofia, na adolescência, levou-me a Atenas, a Paris ou a Londres (e a mais de uma cidade na Alemanha e na Suíça...) Estive em Paris, sem estar em Paris e em Londres sem estar em Londres. O provincianismo é um estado de espírito e não uma consequência da geografia. Viajar ajuda mas não é tudo. Os lisboetas que olhavam de alto para a presença, porque esta se fazia em Coimbra, sofriam de provincianismo interior, aquele que de facto estreita perspectivas. Eugénio de Andrade não precisou, para nada, de viver em Lisboa, para ser o grande poeta que foi: bastou-lhe o Porto. Há provincianos em Nova Iorque e cosmopolitas em remotas terras do interior. Quando, em 1947, vim de Lourenço Marques para Lisboa, para cursar engenharia, eu, africano do cabo do mundo, achei que a maior parte dos meus colegas de curso era mentalmente e inacreditavelmente provinciana.
AeL – O que releva da sua experiência de Conselheiro Cultural?
E.L. – O gosto de fazer coisas e, também, o gosto de fazer coisas com alguém. E promover a cultura portuguesa, em Inglaterra, era, a um tempo, dificílimo e excitante. Os ingleses são exigentes, competitivos  e rigorosos na negociação. Em Londres a competição é feroz. Podemos ter um grande produto a mostrar, mas é preciso publicitá-lo intensamente e isso custa dinheiro. Somos um país pobre, mas somos, sobretudo, um país em que os poderes políticos não gostam de gastar dinheiro com a cultura nem com os seus agentes que são, por regra, incómodos. É uma vergonha que o orçamento para a cultura ande ainda pelos mesquinhos 0.5% ou menos. E é uma vergonha para todos os partidos que têm estado no poder. Nisto, acabam sempre por ter a última palavra os detestáveis ministros das finanças, que percebem pouco de finanças e rigorosamente nada de cultura. Portugal não tem muito que lhe ajude a promover uma forte imagem: se despreza a cultura, despreza uma das mais poderosa influências subliminares que se conhecem. Ortega y Gasset escreveu, sobre isto, páginas admiráveis, que os nossos políticos evidentemente não leram. Ainda assim, promovi, em Londres, a tradução de clássicos antigos e modernos e a reedição de traduções já feitas mas esgotadas. Com o auxílio do meu amigo L. C. Taylor (director, ao tempo, da Gulbenkian, em Londres), fizemos uma boa sementeira editorial de que muito nos orgulhamos. Além de muitas outras actividades ligadas ao teatro, à pintura, à música, etc.
Paralelamente à actividade propriamente profissional, viver em Londres 17 anos  é um privilégio que só não publicito mais para não irritar os deuses.
AeL – Voltemo-nos para o presente. Que futuro para a educação?
E.L. – Nenhum, se não houver a coragem política – e não há! – para se desencadear um autêntico terramoto, que leve de enxurrada os bons sentimentos, a choradeira do facilitismo e também alguns sindicatos, que se preocupam com tudo menos com uma adequada educação ministrada aos alunos (sem falar na duvidosa legitimidade e competência que eles tenham para se imiscuirem em tudo e mais alguma coisa). O estado a que chegou a incompetência dos alunos, a inconcebível falta de disciplina e o peso horroroso de uma burocracia sufocante – é de fazer medo. Nunca pensei poder vir a dizer isto, mas digo: o liceu que frequentei, em Lourenço Marques, no tempo do Estado Novo, envergonha isto a que hoje se chama ensino secundário. E o processo de Bolonha está a ser um autêntico massacre para as universidades. Com esta qualidade de educação – a todos os níveis – o país jamais arrancará para um crescimento digno desse nome: não haverá mão de obra qualificada, em quantidade suficiente. O fantasma da Matemática tem também que ver com alguma má docência, aliás, mais do que alguma. Melhores professores (na generalidade, porque há sempre honrosas excepções), melhor disciplina, mais exigência, mais autoridade para os professores e para a direcção das escolas, autonomia com responsabilidade – eis aquilo, sem o que, não há qualquer possibilidade de futuro. É um pesadíssimo caderno de encargos – mas é para um governo de um partido que aceite, patrioticamente, perder as eleições seguintes.A políticos assim, capazes de arriscarem as suas carreiras ou até a vida, chamou Kennedy “perfis de coragem”. Ainda haverá disso entre nós? Mário Soares foi um desses, mas não sei se as gerações posteriores produziram gente deste gabarito. Penso que, para melhor garantia de continuidade de um programa exigente (que os sindicatos combateriam...), teria que haver, no mínimo, um pacto de regime. Ou isto ou a perpetuação do pântano.
AeL – Haverá em Portugal uma política cultural? Será que se sabe o que é cultura, pelo menos tal como a desvenda nos seus livros?
E.L. – Os governos que costumam ter “políticas culturais” são os das ditaduras: a Alemanha nazi, a Itália fascista, a União Soviética ou o Portugal de Salazar tiveram “políticas culturais”. A América ou a Inglaterra ou a Dinamarca não têm políticas culturais. Quem faz a cultura são as pessoas, individualmente, por iniciativa própria ou em associações de interesses culturais. Ao Estado pedem-se apoios financeiros ou outros e que cuide do património construído e do outro. O Estado deve ser discreto, caso contrário, corre o risco de se tornar manipulador. Quando o Estado se põe a ter ideias temos quase sempre o caldo entornado. O Camões, o Eça, o Mosteiro da Batalha, o Carlos Seixas são meus e teus, não são do Estado. Mas compete ao Estado velar por eles, pela sua preservação, mas sem os utilizar a seu favor. Quando se trate de celebrá-los e promovê-los, a iniciativa deve ser de nós todos, com o Estado, porque não, a apoiar mas não a dirigir.
Quanto a saber-se o que é cultura, parece-me difícil defini-la de forma competente e abrangente. Mas gosto sempre de lembrar as belas palavras de Ortega y Gasset: “A cultura não é a vida na sua totalidade, mas apenas o seu momento de segurança, força e claridade.” (continua)

Sem comentários:

Enviar um comentário