sexta-feira, 7 de maio de 2021

A Piaf


Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,
ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do «ça ira»,
ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma
de não ter tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
das multidões solitárias que teimam em resistir
como melodias valsando suburbanas
nas vielas do amor
e do mundo.
Quem tinha assim a morte na sua voz
e na vida.
Quem como ela perdeu
toda a alegria e toda a esperança
é que pode cantar com esta ciência
o desespero de ser-se um ser humano
entre os humanos que o são tão pouco.
6/10/1964
Jorge de Sena, in Obras Completas, Poesia 1, edição de Jorge Fazenda Lourenço, Babel, 2013.

 
Edith Piaf, em  Non, je ne regrette rien.
 
Edith Piaf, em  Mon Dieu (My God).
  
Edith Piaf , em  L'hymne à l'amour. 

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