terça-feira, 4 de maio de 2021

Um gato à chuva

Um gato à chuva
por Ernest Hemingway
“ Apenas dois americanos estavam hospedados no hotel. Não conheciam nenhuma dos hóspedes com quem se cruzavam  na escada,  sempre que iam para o quarto ou de lá saíam. Instalados no segundo andar, a janela dava para  o oceano e permitia  abranger o quadro do jardim público com o seu monumento aos  Mortos da Grande Guerra. Desde que fizesse bom o tempo encontrava-se  sempre um pintor com o respectivo cavalete, neste jardim, onde havia  bancos verdes distribuídos sob palmeiras imponentes O talhe esguio destas árvores, num fundo alacre pelo colorido dos hotéis , despertava o interesse dos  artistas .Grande percentagem de italianos vinha de longe  ver o monumento que era de  bronze e luzia quando molhado. Nesta  altura chovia. A água gotejava das palmeiras e  formava poças  nas veredas de saibro. O mar  rolava ao longo da praia sob a chuva , investindo  e retirando-se para voltar a quebrar-se de encontro à areia, atrás da cortina da chuva. Os automóveis , que estacionavam junto do monumento, tinham desaparecido. Em frente , um criado postado à entrada do café contemplava a praça solitária.
Voltaram pela vereda e entraram. A criada deteve-se um pouco para fechar o guarda-chuva. Quando a americana passou  diante do escritório, o  hoteleiro, da sua mesa, cumprimentou-a novamente. Ela  sentiu um aperto na garganta, e , perante aquele homem alto, julgou-se  muito pequena mas, ao mesmo tempo,  muitíssimo  importante. Por momentos, dominou-a o sentimento de ser extraordinariamente importante.
 George estava outra vez a ler.
 Ela foi  sentar-se em  frente do toucador   e mirou-se no espelho de mão.  Observou o perfil, primeiro de um lado, depois doutro. Em seguida a nuca e o pescoço.
- Não te parece  que seria  boa ideia  eu deixar crescer o  cabelo? – perguntou, inspeccionando , de novo, o perfil.
George reparou-lhe  na  nuca, desguarnecida  como a de um rapaz.
 George não lhe ligava. Lia o seu livro.  Pela janela a  mulher olhava  para a praça  que acabava de se iluminar.

A americana, de pé , junto da vidraça, olhava para fora. No jardim, mesmo  debaixo da janela, um gato estava  aninhado sob  uma das mesas verdes de onde a água escorria. Encolhia-se todo   para evitar a chuva.

– Vou lá abaixo e trago aquele bichano - disse a americana.
-  Vou lá eu  - propôs o  marido , ainda na cama.
- Não, irei eu . O pobrezinho faz tudo para se abrigar  debaixo de uma  mesa.
 O marido continuou a ler. Estava deitado com a cabeça  apoiada em dois almofadões.
- Não te molhes..
Ela desceu. O proprietário do hotel levantou-se e cumprimentou-a. A sua mesa estava ao fundo do escritório, que era um compartimento escuro.  Era um  cavalheiro idoso e muito alto.
- Il piove –  disse ela que simpatizava  imenso com o hoteleiro.
- Si, si, Signora, brutto tempo. Está péssimo!
Falava de pé , no fundo do escritório, que era um compartimento  escuro. A senhora nova gostava muito  dele e da sua calma , quando recebia qualquer reclamação. Apreciava –lhe o porte digno, a afabilidade e, enfim, a maneira como compreendia o cargo.  Admirava-lhe o rosto grave e idoso, as grandes mãos.
Neste estado de espírito,  abriu a porta e olhou para fora. Chovia fortemente. Um homem, com impermeável de borracha,  atravessava  a praça deserta , em direcção ao café. O gato devia estar algures , à direita. Talvez ela pudesse seguir junto à parede, abrigada pelo telhado. Esperava no limiar ,  quando um guarda-chuva se abriu por detrás dela. Era a criada de quarto do seu andar.
- Não há necessidade de V.Ex.ª  se molhar! –  disse, em italiano e a sorrir.
Certamente  fora ordem do hoteleiro, sempre atento e gentil. Resguardada  pelo guarda-chuva, que a criada  segurava , ela  seguiu pela vereda de saibro  até debaixo da sua  janela. A mesa lá estava, muito  verde e luzente sob a  chuva, mas o gato desaparecera. A  senhora sofreu uma súbita decepção!
A criada olhou-a .
- Ha perduto qualque cosa, Signora?
- Estava aqui um  gato – respondeu a rapariga  americana.
- Um gato?
- Si, il gatto.
- Um gato? – exclama a empregada rindo -  Um gato à chuva!
- Sim, debaixo da mesa. – disse a americana. Oh! Como eu tenho empenho nele! Queria um bichano!
 Quando a  americana falava inglês, a expressão da criada fechava-se.
- Faça favor de vir, Signora! É preciso voltar para dentro, se  não encharca-se toda!
Sim … certamente –concordou a americana.
Depois, subiu a escada  e abriu a porta do quarto. George lia, estendido  na cama.
- Então, encontraste o gato? –inquiriu, pousando o livro.
- Desapareceu.
- Onde se meteria?– comentou, levantando  os olhos do livro.
Ela sentou na cama.
- Não supões como eu queria aquele gato! – exclamou  . - Não sei porquê, mas tinha enorme empenho nele!  Queria aquele pobre bicho. Que engraçado estar um gato lá fora à chuva!
- Eu gosto assim.
- Já estou tão farta dele . Estou tão farta de parecer um rapaz!
George mudou de posição na cama. Não tinha desviado os olhos dela , enquanto a ouvia..
- Tu és muito bonita! – comentou.
Ela pousou o espelho no toucador  e foi até à  janela  olhar  para a rua. A noite caía.
- Quero apanhar  atrás os  meus cabelos, esticá-los bem  lisos, e fazer um rolo no pescoço  que possa sentir perfeitamente. Quero ter um gato sobre os joelhos, que rosne quando o acaricie!
-Ah! Sim?  – volveu-lhe George.
- Quero comer à  mesa no meu serviço de prata  e  quero velas! Quero que já seja Primavera, quero escovar os meus cabelos diante do espelho! E  quero uma gatinho e vestidos  novos.
- Oh! Cala-te e pega  num livro! – atalhou o marido. Pôs-se a ler outra vez.
Sua mulher  foi  olhar através da janela. Já era completamente noite  e continuava a chover  sobre as palmeiras.
- Mas  quero um gato!  Quero um gato, pronto! Quero um gato imediatamente! Se não posso ter cabelos compridos , e se não posso divertir-me, ao menos  posso ter um gato!
Alguém bateu à porta..
Avanti – disse George, erguendo  os olhos .
 A criada surgiu à porta.  Apertava nos braços um enorme gato, cinzento como uma carapaça de tartaruga.
- Queiram desculpar. O patrão mandou-me trazer isto para a Signora.”
Ernest Hemingway, in “As torrentes da Primavera seguido de Um gato à chuva”, Edição  “Livros do Brasil”, Lisboa, pp.115-119

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