sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Contra a nossa tristeza e ansiedade

 

Contra a nossa tristeza e ansiedade
por Vamberto de Freitas

Porém, as palavras são o que temos/e só com elas ao nosso dispor/iremos fazer o que podemos:/dar ao nosso mundo alguma cor.

Eugénio Lisboa, poemas em tempo de peste

"Muito tenho escrito sobre a obra prolífica e de grande alcance, quer no ensaísmo, volumes de diários, memórias e poesia. Para mim, tornou-se um mentor, tal como Edmundo Wilson na América, com a sua eloquente prosa, e, sim, o humor que também o mais famoso e respeitado crítico americano dirigia a si próprio e a outros, especialmente nalguma da sua poesia. Há aqui uma diferença grande: enquanto Wilson nunca foi levado a sério neste género de escrita, Eugénio Lisboa já recebeu grande reconhecimento da sua poesia com o livro de há alguns anos A Matéria Intensa. Reconhecido internacionalmente, foi-lhe conferido um doutoramento honoris causa pela Universidade de Aveiro, onde leccionou como Professor Catedrático Convidado durante alguns anos, assim como pela Universidade de Nottingham, da Grã-Bretanha, onde viveu 17 anos como conselheiro cultural na nossa Embaixada em Londres. Não me vou alongar mais com a sua numerosa bibliografia, só dizer que o especialista sobre a obra de escritores como José Régio e Jorge de Sena já tem a apreciação superior da comunidade intelectual de língua portuguesa e estrangeira, e poucos entre nós conhecerão as mais variadas literaturas do mundo, entre as quais a francesa e anglófona predominam e são constantemente citadas nos seus escritos em quase todos os géneros. Em pessoa, muito falei e aprendi com ele em esporádicas conversas na Costa da Caparica, quando ele visitava a sua amiga Teresa Martins Marques, e depois num ou dois almoços na sua casa de São Pedro do Estoril. Falamos à distância sobre um pouco de tudo com alguma frequência. Escreve agora estes poemas satíricos, cómicos, destemidos, com a sua ferve de sempre, que nunca poupa situações caricatas, e mesmo determinadas figuras na literatura e em outros sectores públicos da nossa sorte em todos os tempos, agora coléricos e de “peste” que nos ameaça a todos com doença e morte. Já passou os seus grandes desgostos e dores pessoais, mas nada disso o verga ao que temos por “destino”. Poemas em tempos de peste não é só helariante, é uma gargalhada para se opor à tristeza e ansiedade que todos sentimos no confinamento forçado e sem quase a convivência de amigos e conhecidos.
Nunca se ri dos que já sofrem na pele o maldito vírus: ri-se da pretensiosidade inconsciente de outros, de Christine Lagarde (A Senhora Christine Lagarde/acha que os velhos vivem de mais;/ pra que a economia se resguarde/há que apressar os ritos finais); Gonçalo M. Tavares (o que diz não faz sentido/e põe-me os olhos em bico) por com 50 anos de idade já ter alguns 60 livros que, goza Eugénio, nada dizem, e ainda de Pinto da Costa (mas a pandemia estraga o engenho/e faz-nos uma data de negaças/que fornicam o mais completo empenho), porque o futebol de ontem já não é possível hoje. O resto são as suas boas memórias em África, fazendo chamamentos a antigos amigos na sua Lourenço Marques do passado, alguns dos quais já não estão entre nós, como, por exemplo os inesquecíveis Reinaldo Ferreira e Rui Knofli. De resto, vai ainda à cabeça de Nuno Melo, que Eugénio diz ser do Cê Dê Esse. Por outro lado, dá pancada noutros pequenos partidos, como o Chega, e a jovens conservadores (Não há coisa mais ridícula/que ser jovem de direita/a esse nem a clavícula/sequer se lhe aproveita!). Um escritor da velha guarda não desarma nunca nestes poemas. Ficam-lhe, em termos positivos ou de elogio, Camões, a língua portuguesa e um lamento sobre a sorte e a solidão de Fernando Pessoa em vida e na morte em Lisboa (plantado em pedra aqui no Chiado./Palhaço de turistas me fizeram,/ só, entre papalvos, alarpardado!…). Eugénio Lisboa tem, uma vez mais, uma escrita totalmente única entre nós: ninguém teme na literatura nacional ou de além fronteiras. Num dos seus ensaios, publicado mais tarde noutro volume, confessa: relembra, só como exemplo, que Jorge Amado tinha sido uma das suas referência maiores em jovem, mas anos depois corrigiu essa atitude para nos dizer do seu quase afastamento da obra do autor brasileiro. Em Portugal, nos últimos anos tem levado à parede nomes de grande “prestígio” entre nós, como António Lobo Antunes, e, com mais azedume subtil, como noutro texto que não este, a Eduardo Prado do Coelho, ainda em vida e até mesmo quando este já se encontrava sepultado há um bom tempo. No entanto, nunca poupa elogios ou meiguice ao seu passado e às pessoas da sua vida, com grande destaque saudoso da sua mulher Maria Antonieta, aos seus autores eleitos, e à sua única companheira de agora, a gata Ísis e as suas traquinices nesta mesma poesia carregada de sátira ardente e humor generalizado, em versos fulminantes e sempre numa linguagem livre do habitual jargão ou teorias da literatura em moda. É, uma vez mais, mestre na citação de inúmeros escritores quando quer reforçar um ponto de vista sobre determinados textos críticos os ensaístas. Os leitores, mesmo os que só se ficam pela sua coluna no JL lisboeta, sabem muito bem disto. As crónicas e ensaios de outro livro publicado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 1996, para além de tudo mais que menciono aqui, Eugénio Lisboa reforçou indelevelmente a sua credibilidade e capacidade literária. Poemas dos anos da peste indica que andamos todos rodeados dela, mesmo que de outra natureza, desde a sua juventude em Lourenço Marques (nunca o vi escrever “Maputo” nos anos seguintes), já em Portugal. Neste poemas em tempo de peste escreve em formas várias, decassílábicos (mais ou menos, como ele próprio afirma), em redondilhas maiores, heptassílabos, sonetos, e ainda no que ele chama pentassílabos. Vai desde as antigas figuras, como referi, a outros dos nossos dias em acções variadas na nossa sociedade.
Quando o seu grande amigo Rui Knopli, repito aqui, faleceu, Eugénio Lisboa lutou convictamente para que o seu espólio fosse poupado e devidamente arquivado. Eis aqui o seu outro lado de generosidade e respeito absoluto pelos que o mereciam em quaisquer circunstâncias.
“Em tempos de peste e de confinamento – escreve o autor na introdução ‘Poemas para baratinar a peste’ – mais ou menos rigoroso, tendemos todos à melancolia, quando não ao desespero. É nestas alturas que se recorre e deve recorrer ao humor e à faceirice, para desanuviar o ambiente. [Recorda o célebre Decamoron de Giovanni Boccassio, 1313-1375], segundo o qual aqueles protagonistas, para fugirem aos horrores e ao perigo da peste negra, se isolaram num cerco isolado a contarem-se histórias ladinas, picarescas, apimentadas, licenciosas, para afastarem do espírito a mortandade que, lá fora, assolava as populações”.
Eugénio Lisboa não é só um dos nossos grandes críticos e ensaístas literários, como de tudo o resto que lhe causa asco e desgosto. Como já ficou vincado aqui, vai além da literatura, desde políticos aos mais corruptos em altas posições, especialmente em bancos e outros sectores. O ter vontade de rir e da sátira não é novo, especialmente a partir de Eça de Queirós e outros da mesma geração. Eugénio Lisboa enxerga toda a nossa e outras sociedades que conhece de perto ou intimamente. Por entre as suas muitas palavras de acidez, vai sempre ao ponto com o resto. A sua disponibilidade generosa são firmes em defender os mais pobres e indefesos, os mais velhos ou os que caíram na rua sem rede. Rebelde e humanista durante uma longa vida, que felizmente continua a passear-se vivamente ali nos arredores mais apetecíveis de Lisboa, não desarma nunca perante a escuridão que tem sido parte das nossas vidas, e agora ameaça-nos com uma cama no hospital e, nalguns casos, a morte. Nunca se rende a nada e ninguém. Do poema “Versinhos De Um Poeta Com Algumas Dificuldades de Conjugação”, e em que ele brinca com e louva a própria língua portuguesa, com uma das suas muitas notas de rodapé para divertir os seus leitores, pede como que uma desculpa a quem ler este seu livro: “com um muito humilde pedido de desculpas por isto não ser tão bom como, digamos, Os Lusíadas”:

O Trump, fodido, irá-se

embora se a peste vá-se.

Que chatice se ele ficasse

no governo e nos lixasse!

Que bom se ele se fixasse

na sua Torre e se calasse!

Se o Almada ainda falasse,

diria que o Trump, sem classe,

cheira mal da boca – Hélas!

O semanário Expresso resolveu há umas semanas publicar alguns outros destes poemas. Fizeram bem. Imagino que alguns dos seus leitores muito se riram, e por uns momentos esqueceram a nossa presente situação e tragédia. Rir de nós próprios é outro sinal de saúde e alguma esperança que nem tudo vai correr mal.
Vamberto de Freitas, no blog As duas margens, em 20 de Novembro de 2020
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Eugénio Lisboa, poemas em tempo de peste, Lisboa, Guerra & Paz, 2020.

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