sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

No rastro da Utopia

Cochabamba , um  departamento do " eixo central " da Bolívia . 
Cochabamba, a terceira maior cidade da Bolívia.
VII - A revolta indígena na Bolívia
Visita a comunidades indígenas. A história de Julián Apaza Nina
por Manoel de Andrade
 "Terminara o Congresso de Poetas e com toda disponibilidade de tempo, aceitei o convite do pintor Atílio Carrasco para conhecer duas comunidades indígenas nas vizinhanças de um povoado chamado Quillacollo a uns quinze quilómetros de Cochabamba.  Ele conhecia alguns chefes das comunidades quíchuas da vizinhança e sobretudo um velho curaca (chefe), cuja sabedoria comentara dias antes e que foi o primeiro a visitarmos naquela manhã.  Quando chegámos, por volta das 10 horas, ele estava sentado sobre um banco de troncos ao lado da porta de sua casa, num ayllu nas redondezas do povoado. Tinha perto de sessenta anos; cobria-se com uma leve manta com listas de cores fortes e usava um chapéu indicando sua condição de curaca.  Sua expressão era respeitável e serena. Os olhos apertados e mansos como todo o tipo andino. Feições fortes, o grande nariz inclinado sobre a boca, os lábios grossos sempre prenunciando um sorriso e as maçãs do rosto eram salientes e firmes como as pequenas colinas da região. Não sei se pela amizade que tinha com Atílio, fugia da idiossincrasia impenetrável que pude observar dos habitantes indígenas dos ayllus quando em contato com os brancos. O velho patriarca, de sorriso aberto, irradiava paz e empatia ao acenar para os comuneiros que por ali passavam. Diante de minha curiosidade por uma imagem num pequeno altar no interior de sua casa, contou-me a história da Virgem de Urkupiña, segundo a qual uma bela mulher e um menino apareciam naquela região a uma jovem camponesa com a qual brincavam. O facto foi constatado pelo pároco do local e pelos pais da menina e, então, a história virou milagre, devoção e festa. Construiu-se uma igreja no local das aparições, a Virgem passou a ser padroeira de Quillacollo  e, ao longo dos anos, a peregrinação vinda de toda a Bolívia, fez do facto religioso um dos maiores eventos nacionais, associado às tradições, ao folclore. A festa que se fazia em sua homenagem, no mês de agosto, na qual ele e sua comunidade participavam com suas roupas típicas.

      Falava de tudo com um profundo respeito e religiosidade. De Deus, da Pacha Mama, da comunidade, do sol, da chuva e das colheitas com uma imensa gratidão pela vida. Contou-nos que falava com as plantas, com o vento e que as lhamas e as ovelhas o entendiam. Falou-nos de um passado recente em que a terra não lhe pertencia, do trabalho árduo, e o cansaço que foi chegando com a velhice, da parte da produção que tinha que entregar como imposto, mas que sempre perdoou os maus patrões que teve. Havia tanta espiritualidade em seu olhar, tanta transparência em suas palavras e isso era admirável num homem socialmente tão simples, um índio sem cultura, mas com uma profunda noção moral da vida, da verdade, do perdão, do real significado do cristianismo, enfim uma religiosidade cujo templo era a Natureza e cujo culto era feito no sacrário do próprio coração. Seu nome era Tomás, e nunca o pude esquecer, ele e o seu nome, porque a sua imagem humana sempre me fez lembrar a personagem do livro “A Cabana do Pai Tomás”, da escritora abolicionista americana Harriet Beecher Stowe, que eu lera na juventude. Tal como o sofrido e solidário escravo negro Tomás - personagem em torno do qual giram, na novela, as vítimas e os algozes da abominável escravidão nos Estados Unidos -, assim era a personalidade calma e bondosa do velho sábio quíchua, um ser humano de sentimentos puros, cheio de amor pelo Criador e  criaturas e sem nenhum ressentimento pelos sofrimentos por que passara muitos anos --- segundo me contou Atílio  ---  nas mãos dos encomenderos, num sistema agrário que marcara com desprezo  e desumana servidão a sua vida desde a infância, antes que as terras bolivianas fossem devolvidas aos seus verdadeiros donos.

      Depois de tantas histórias e estórias e beber boa “chicha[95] ele nos levou para mostrar sua agricultura na encosta de um monte onde um milharal exibia as espigas barbadas. Na subida passamos no meio de um rebanho de ovelhas e lhamas e descemos com a visão de pomares, plantações de coca e muita terra lavrada com batata, verduras e ervas medicinais. Ensinou-nos que as plantas devem ser colhidas conforme a lua porque a seiva caminha entre as folhas e as raízes. Que no crescente se colhem as plantas com folhas, porque a seiva está na superfície, e no minguante se colhem os tubérculos, como a beterraba e a cenoura, porque a seiva está na raiz. E assim também as plantas lunares, como a alface se colhem ao amanhecer e as solares, durante o dia. Que toda poda deve ser feita no minguante e no inverno quanto a seiva dorme nas raízes. Disse que as plantas são seres sensíveis, que têm memória, conhecem as pessoas que convivem e reagem emocionalmente ao carinho e à agressão.[96] O velho índio parecia ter uma aliança mística com a natureza e conhecer os segredos materiais e espirituais das coisas fazendo justiça à imagem respeitada do amauta, considerados os homens mais sábios na corte do Império Inca. Depois falou-nos da terra repartida. Disse-nos que a reforma agrária feita pelo Presidente Paz Estensoro, em 1953, devolveu a ele e a todos os camponeses bolivianos não só a terra, mas também o próprio respeito, antes esmagado pela oligarquia rural. Disse que o indígena sem a sua terra não é ninguém, que a terra, a Pacha Mama, era a mãe bondosa que nunca deixava seus filhos com fome e que agora eles tinham dignidade,  porque cada ayllu, cada família, tinha o seu pedaço de terra e eram livres depois de quatrocentos anos.[97]
Na parte da tarde fomos visitar um outro ayllu. Era uma comunidade aymara, todos unidos pela consanguinidade. Foi então que ouvi, pela primeira vez, o nome e a história de Túpac Catari, o maior líder aymara na guerra contra os espanhóis, que nascera em 1750, num povoado de uma comarca do altiplano chamado Sicasica. A história foi-nos contada por um velho curaca da comunidade. Mascava coca e era tido como o amauta (sábio) da região.

      -- Túpac Catari foi o Túpac Amaru boliviano. --- Começou ele e continuou contando que ao nascer ele foi chamado Julián Apaza Nina, mas em homenagem ao grande caudilho peruano Túpac Amaru e ao cacique de Chayanta, Tomás Catari, mudou seu nome para Túpac Catari.             

         Contou-nos o velho amauta que Julián Túpac Catari ficou órfão aos sete anos,  sendo adotado como um serviçal por um padre espanhol. Posteriormente trabalhou como padeiro e cresceu atento à exploração e às crueldades por que passavam os povos aymaras e quíchuas nas mãos dos colonizadores. A cultura harmónica e solidária que herdara de seus antepassados chocava-se com a prática odiosa e rapinante com que os espanhóis tratavam seus irmãos indígenas, obrigando-os a entregar os frutos da terra como forma de tributo. Na ausência da produção ou do valor do imposto em dinheiro, eram obrigados a trabalhar num regime de semi-escravidão nas minas ou nas fazendas sob as ordens cruéis do encomiendero.[98] Testemunha itinerante de tantos atos desumanos nas comunidades e fazendas por onde passava, presenciando, perplexo, as injustiças que sangravam o destino de seu povo, assassinado por autoridades, sacerdotes católicos e mestiços, aguardava o momento para atuar no extenso cenário das lutas sociais de sua pátria.
Tomás Catari
 Tomás Catari: a odisseia de um índio.

    A grande revolta indígena, na região andina, começou em 1780 liderada pelo cacique Túpac Amaru II. Simultaneamente, na Bolívia, então chamada Alto Peru, Tomás  Catari, um índio revoltado por ter o seu posto de cacique usurpado pelo mestiço Blas Bernal, na localidade de Chayanta, iniciou, em 1877, uma longa querela judicial na qual foi sempre prejudicado e várias vezes aprisionado pelo corregedor Alós Flores, com o apoio venal dos tribunais da Real Audiência de Charcas, na época sede do governo espanhol na Bolívia. Em face dos desmandos e da corrupção tributária de Blas Bernal, Tomás Catari polariza o descontentamento social na região, onde além dos impostos escorchantes, predominava a cruel obrigação da mita mineira de Potosi, aonde chegavam as grandes levas de mitayos peruanos para o trabalho mortal nas minas de Cerro Rico. Tomás Catari inicia a revolta liderando os ayllus (clãs de indígenas andinos) guerreiros, em San Pedro de Macha, no departamento de Potosi, não para derrubar o governo colonial como queria Túpac Amaru, mas para denunciar o poder local exercido por caciques mestiços e o corregedor da província pela conduta corrupta e fraudulenta e como usurpadores na cobrança dos impostos.[98] A fama e a coragem de Tomás surgiu em 1777, quando --- revoltado com os excessos da administração local, o desrespeito à sua hierarquia indígena (curaca) e a autonomia das comunidades agrárias  --- viajou 600 léguas,[99] ou seja, 3.600 quilómetros até Buenos Aires, a pé  --  porque aos índios era proibido andar a cavalo  -- para exigir respeito aos direitos indígenas ante as novas autoridades do Vice-reinado do  Rio da Prata, cuja autonomia, em relação ao Vice-reinado de Lima, fora decretada, no ano anterior, pelo rei da Espanha.

Se trata de una verdadera odisea para um indio sin recursos materiales, sin conocimiento del idioma, obligado a caminar a pie las 600 leguas que hay desde su pueblo, ubicado en la altiplanicie andina, hasta la capital del Vireinado. Llega a Buenos Aires a fines de 1778 .[101]

Tomás Catari voltou gratificado com o apoio às suas reivindicações, avalizadas e documentadas pelo Vice-rey Juan José de Vértiz. Contudo, ao chegar à Bolívia, foi detido sob o pretexto de perturbar a cobrança de impostos. Libertado meses depois, foi preso novamente em 1779 pelas denúncias e protesto contra o regime criminoso do trabalho indígena, mas no caminho conseguiu fugir pela ação dos seus seguidores. Posteriormente, em face da ameaça que sua grande liderança representava para as autoridades coloniais, é aprisionado novamente em 1780 e mantido em incomunicabilidade. Diante dessa nova injustiça contra seu líder, explode a revolta entre os indígenas da região. A prisão é destroçada e Tomás Catari é libertado. Enquanto aguardava ordem de Túpac Amaru  --- com quem estava em contato por emissários diretos  ---, para atacar La Paz, foi preso novamente, e de surpresa, por uma força mercenária comandada pelo mineiro Manuel Álvares Villarroel, tão explorado e tão andino como ele, e atirado a um precipício em Chataquila, em 15 de janeiro de 1781. [102] O assassinado de Tomás Catari levou a uma sublevação violenta na região de Potosi. O assassino, Álvares, mero instrumento das autoridades coloniais, foi morto pelas mãos dos índios enfurecidos e o próprio Vice-Rei de Buenos Aires mandou investigar a cumplicidade das autoridades no assassinato do caudilho.

        Além das informações que me deu o velho curaca, pouco se sabe sobre a origem de Tomás Catari. Embora tenha vivido numa comunidade aymara, seu sobrenome Catari é de origem quichua e significa réptil venenoso, assim como Túpac Amaru significa serpente do fogo. Os historiadores se ressentem de informações sobre a idade, a origem e afirmam que era analfabeto. [103]

        Era um índio pobre, mas prestigiado por amigos influentes de toda a província onde interpunha suas reivindicações em favor de seus direitos e das comunidades indígenas. Líder nato, a um gesto seu poderia levantar-se imediatamente 20 a 30 mil índios.

 En la información  sumária secreta mandada efectuar por Manuel de la Bodega el 12 de octubre de 1780, a fin de averiguar en qué medida los indígenas de su corregimiento estabam ligados con los de Chayanta, declaró el alcalde  indio Manuel Ari que aquéllos se levantaríam “al instante que se les prevenga por Tomás Catari”. (…) “No deja de ser digno de atención el hecho de que el corregidor Alós considere que Catari está en condiciones de movilizar entre 20 y 30 mil índios.[104]

    Por ter sido assassinado antes de explodir a rebelião no Alto Peru,  frustrou-se, historicamente ,  sua capacidade de movimentação militar e seu talento como um chefe guerreiro.

     Precursor e principal aliado de Túpac Amaru na grande revolta indígena do fim do século XVIII, sua grandeza estava no carisma da sua personalidade iluminada pelos ideais de justiça, um caráter inquebrantável, cristalino e puro e um espírito de luta social marcado por uma abnegação sem limites pelos direitos dos índios pobres e desprezados. Como não falava o castelhano, por certo não pode mostrar com palavras sua íntima imagem,

Pero fue, como hemos dicho, entre los suyos donde descolló y donde pudo mostrar sin intérpretes lo que valía; fueron también los indios quienes estaban en mejores condiciones que los españoles para apreciar sus aptitudes y virtudes. Y ellos, pobres y incultos, exteriorizaban su admiración por el caudillo a su manera, arrodillándose ante él y besándole la mano o el poncho que vestía, considerándolo redentor y casi una divindad. [105]

Cerco de la Paz

3. Túpac Catari  e o cerco de La Paz.

        Segundo os historiadores o nome de Túpac Catari era, até então desconhecido, quando surge como um destacado caudilho no cerco de La Paz, em Março de 1781, época em que se calcula que tivesse trinta anos de idade. Até então a única figura guerreira que ameaçava a capital do Alto Peru era o próprio Túpac Amaru, cuja estrondosa vitória, em 17 de Novembro do ano anterior, sobre as tropas espanholas em Sangarará, deixara o pânico nos documentos que naquela época circulavam entre as autoridades da Real Audiência de Charcas.  Pouco se sabe sobre a personalidade de Túpac Catari porque os documentos que a ele se referem foram escritos por seus inimigos e, portanto são marcados pela parcialidade e pelo ódio. Muitas informações provêm do Diário de Sebastián Segulora, comandante de La Paz durante o sitio da cidade. Contrariando as afirmações preconceituosas de Segurola  --- que o chamava de índio ordinário e de origem miserável --- opinião que foi repetida pelos historiadores oficiais ao se referirem circunstancialmente à rebelião de 1780-1781, no Alto Peru  ---,   e do Frei Matias Borda, do qual teria sido sacristão e que o desprezava chamando-o de índio ridículo, o historiador Boleslao Lewin, baseado em ampla documentação, nega que Tupac Catari  fosse um órfão desvalido e que tenha exercido os ofícios de sacristão e padeiro, mas que era um comerciante de coca – entenda-se folhas de coca, que era normalmente consumida para abrandar a fome desde os tempo do incário --  e de tecidos.[106] 

       Contrariando a opinião dos seus detratores espanhóis, Lewin cita, embora desconsidere as ressentidas opiniões que procuravam denegrir odiosamente a imagem de Túpac Catari- en  el origen del enorme ascendente de Tupac Catari sobre las masas indígenas, de cuyas vidas y haciendas disponía en forma ilimitada durante muchos meses, por más que hubo tentativa individuales de destituirlo de su cargo. [107] 

          A liderança e os objetivos estratégicos de Túpac Catari tiveram início quando ele organizou, com Bartolina Sisa, sua mulher, um exército de 40.000 índios que, no início de 1781, conquistou as províncias de Sicasica, Carangas Pacajes, Yungas Omasuyos e Chucuito.   Em seguida, o caudilho aymara avança em direção a La Paz e, em 13 de março de 1781, inicia o primeiro sítio à atual capital da Bolívia, onde foram mortos 10.000 espanhóis, numa população que contava 23.000 habitantes entre brancos e mestiços.  Cumpre aqui ressaltar que, a par do cerco de Cuzco por Túpac Amaru, o sítio de La Paz, por Túpac Catari, estão entre as ações militares mais destacadas na grande revolta indígena de 1780-1781.

        Diante da fome que começou a matar os habitantes de La paz, Túpac Catari propôs a entrega das armas e das autoridades para levantar o cerco. Diante do rechaço das exigências, o bloqueio continuou e era tal a coragem dos índios em seus ataques, que causavam assombro aos próprios inimigos. Contudo a falta de armas de fogo por parte do exército indígena impedia um ataque frontal às forças espanholas. Foi neste período que vários mestiços foram presos e fingiram aderir ao comando de Túpac Catari. Um deles Mariano Murillo, depois de descoberto, teve os braços cortados que foram enviados a comandante Segurola com uma carta de desafio aos espanhóis e de desprezo ao frade Matias Borda, coparticipante da traição.

       Diante do impasse, Ignácio Flores, presidente da Real Audiência de Charcas, chega, em 1º de julho de 1781, com um exército para socorrer La Paz. O exército indígena se retira estrategicamente para o alto da cidade, mas em 4 de agosto o exército de Flores se retira, deixando apenas 80 soldados veteranos e quatro companhias de milicianos. As tropas rebeldes iniciam o segundo cerco, de 64 dias, à La Paz, agora com o reforço de Andrés Túpac Amaru, sobrinho de Túpac Amaru, que depois de tomar Sorata, em 4 de agosto, inundando a cidade com a construção de um dique, tentou a mesma estratégia em La  Paz, mas a obra rebentou antes do tempo não causando o resultado esperado. Diante do agravamento da situação  em La Paz, as autoridades de Lima  e Buenos Aires enviaram seus exércitos para enfrentar as tropas indígenas.

4. A bravura de Bartolina Sisa. Tupac Catari é traído  e executado.

      Enquanto isso, Bartolina Sisa, à frente de um pequeno exército de aymaras com armas primitivas derrotara 400 espanhóis na Batalha de Chuquiago. Traída, foi aprisionada em 2 de julho de 1781  e entregue aos espanhóis. Indómita, diante das torturas, não se abateu até o momento da morte aos 26 anos. Executada quase um ano depois do marido, em 5 de setembro de 1782, Bartolina Sisa, tal como Micaela Bastidas, esposa de Túpac Amaru, teve um grande papel como combatente da rebelião. Ambas secundaram seus maridos na condução das tropas indígenas participando abertamente nos combates.

         Diante da chegada dos dois exércitos fortemente armados as tropas indígenas suspendem o cerco em La Paz, quando a cidade estava a um passo da rendição. Enquanto Andrés Túpac Amaru dirigiu seus índios para o Santuário de Peñas, Túpac Catari retira-se para os montes de Pampajasi, nos arredores da cidade, fustigando os espanhóis, mas em fins de outubro é fortemente atacado e se retira também para o Santuário de Peñas.

      O exército indígena avançou até Charcas onde foi derrotado pelas tropas realistas vindas de Buenos Aires. No início de Novembro, Túpac Catari dirigiu-se a Achacachi , na costa do Lago Titicaca, para refazer as tropas que lhe restavam. Os espanhóis recorreram então à traição para prender o grande caudilho aymara, entrando em contaco com seu amigo, o índio Tomás Inca Lipe, que na noite de 10 de novembro revelou o paradeiro de Túpac Catari, num lugar chamado Chinchaya. El traidor recibió en recompensa una medalla por su “lealtad” y el gobierno del pueblo de Achacachi, de donde fue oriundo y donde ejecutó la aleivosia.[108]

     Depois de interrogado e torturado por vários dias, Túpac Catari foi executado na capital do país , em 31 de novembro de 1781. Cortaram-lhe a língua depois de dizer Solamente a mi me matam... Volveré y seré millones. [109]  Amarraram-no a quatro cavalos e o esquartejaram com machados e espadas. Sua  cabeça ficou exposta na praça principal de La Paz e os braços e pernas foram expostos em outras cidades, durante 10 meses. A sua mulher e sua irmã Gregoria Apaza tiveram a mesma sorte meses depois. Seus restos foram queimados e as cinzas foram jogadas ao vento."
Manoel  de Andrade , in Nos rastros da Utopia, uma memória crítica da  América Latina  nos anos 70, Escrituras Editora, São Paulo , Brasil , 2014, pp. 211-221  

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95] A chicha é uma bebida fermentada produzida pelos povos indígenas dos Andes cuja fabricação remonta ao tempo dos Incas. Consiste na mastigação d o milho por mulheres jovens e cuspí-lo em um caldeirão de água fervida. Depois da alguns dias de fermentação a mistura se transforma chicha.
[96] Naquela época eu achei que havia muita fantasia nas suas palavras mas cerca de 30 anos depois me caiu na mão um livro curioso: A vida secreta das plantas, dos norte-americanos, Peter Tompkins e Christofher Bird, editado no Brasil, em 1988, pelo Círculo do Livro. A obra, quando lançada nos Estados Unidos ficou durante seis meses encabeçando a lista das mais vendidas. Em suas 377 páginas os autores falam dos pioneiros e das modernas pesquisas sobre as plantas enfatizando, contudo, sua descrição sobre as experiências de Cleve Backster, um técnico do FBI e perito em polígrafos (um aparelho para detectar a mentira), que, por volta de 1967, conectando os eletrodos de sua máquina às folhas de uma dracena, foi suspreendido com as mudanças gráficas do aparelho demonstrando reações semelhantes a um ser humano. Os registros produzidos da planta indicavam que ela tinha memória, pressentimentos e demonstravam emoções de prazer e de dor, de afeição e de medo conforme as experiências produzidas. Ante a ideia de Backster de queimar a folha da planta, esta entrou em pânico, demonstrando ter advinhado seu pensamento. Os autores, depois de vasta pesquisa, revelam que as plantas têm vida inteligente, apresentando seu trabalho como uma constatação científica e não como uma visão mística e ocultista.
97]Diferente da reforma agrária que começava a ser implementada no Peru, onde as fazendas seriam transformadas em unidades de produção coletiva, na Bolívia a real reforma agrária feita por Paz Estenssoro, em 1953, devolveu aos indígenas, em forma de lotes individuais para cada família, as terras do ayllu --  unidade familiar incaica  --  que lhes haviam sido usurpadas desde a conquista pelos espanhóis e repassadas aos fazendeiros criollos pelo sistema de encomiendas.
[98]    . Para se entender a economia, a sociedade e a exploração do trabalho indígena no sistema colonial espanhol é indispensável saber que a exploração das minas de prata foi a principal atividade econômica no Vice-Reinado do Peru. A mão de obra indígena era empregada na mita e na encomienda, que  eram formas diferenciadas de escravidão.A mita, instituída pelos incas, obrigava os homens (mitayos) das tribos dominadas a trabalhar em suas minas, e o sistema foi adotado pelos colonizadores, mas não somente para o trabalho nas minas e somente abolido em 1791. A encomienda, criada pelos espanhóis, era a exploração do trabalho de uma comunidade indígena por um colono, que em troca pagava um tributo, pela produção agrícola, à autoridade espanhola e se obrigava em troca a cristianizar os indígenas.
 A sociedade colonial era estratificada pelo nascimento e pela cor. Os chapetones, nascidos na Espanha, detinham os mais altos cargos coloniais. Os criollos eram os descendentes espanhóis nascidos na América, brindados com as grandes extensões de terra, a exploração das minas e os grandes cargos militares e administrativos. Os mestiços, filhos do branco com o índio, eram livres, e exerciam  atividades  comuns. A imensa maioria da população era indígena, submetida aos t
rabalhos forçados.
[99] O espaço limitado que disponho na organização desses relatos de viandante desmerece a gloriosa história da revolta indígena na região andina, no fim do século XVIII. Contudo é imprescindível trazer aos leitores brasileiros, ainda que em poucos traços, um quadro quase desconhecido desse heroísmo libertário contra o colonizador espanhol que aqui, no Brasil, só tem paralelo num único grande exemplo: o martírio solitário de Tiradentes.
[100] Para se ter uma ideia da distancia dessa viagem de ida e volta, imagine-se, no Brasil, uma pessoa fazer, à pé, um percurso equivalente de ida e volta de Porto Alegre, no extremo sul do país, a Recife, no Nordeste do Brasil.
[101]       LEWIN, Boleslao. La Rebelión de Túpac Amaru. Havana: Editorial de Ciências Sociales, 1972. t. I. p. 354.Se trata de uma verdadeira odisséia para um índio sem recursos materiais, sem o conhecimento da língua, forçado a andar a pé as 600 léguas  que existem entre sua aldeia, localizada no altiplano andino, e a capital do Vicereinado. Chega à  Buenos Aires em 1778.” (Tradução e nota do autor.)
[102]    Essa era uma triste característica das lutas indígenas no período colonial no altiplano e no Chile: índios na condição de servos e escravos, por dinheiro, covardia ou traição, delatam ou matam outros índios que lutam pela liberdade dos demais. Os grandes exemplos foram Lautaro, Tupac Amaru e Tupac Catari. Mas a história do Brasil registra também seus delatores. No passado Domingos Fernandes Calabar se uniu aos holandeses na conquista do Arraial de Bom Jesus, bastião da resistência luso-brasileira em Pernambuco. e Joaquim Silvério dos Reis entregou Tiradentes aos portugueses. Na atualidade a legislação brasileira resolveu premiar a delação através da lei 8.072, numa vergonhosa demonstração de que o Estado se mostra incapaz de investigar e punir os criminosos, incentivando o favor jurídico através da traição.
[103] Existem ainda poucos estudos sobre a revolta índígena de Chayanta e Sicasica, além da clássica La Revolución India do historiador boliviano Fausto Reinaga,  (La Paz: 1969) e a Historia de La Rebelión de Túpac Catari – 1781-1782, de Maria Eugenia Del Valle de Siles. (La Paz: 1990). O que existe é uma farta documentação à espera de pesquisadores e estudiosos, sobretudo, no Arquivo Nacional da Bolívia. Pelo que sabemos, alguns pesquisadores, ligados ao Departamento de História da Universidad Mayor de San Andrés, de La Paz, e entre esses Silvia Arce, Magdalena Cajías e Eugenia Muñoz, trabalham na investigação desses documentos. Em 1970, tive a oportunidade de ler, em La Paz, La Revolución Índia de Fausto Reinaga, cujas páginas abriram meu interesse pela história das rebeliões indígenas na região andina e particularmente pela figura de Túpac Amaru, o grande precursor da emancipação dos países americanos.
[104] LEWIN, Boleslao. Op. Cit., p.382.
"Na informação sumária secreta mandada efetuar por Manuel de la Bodega em 12 outubro de 1780a fim de verificar em que medida os indígenas do seu município estabam ligados aos de Chayanta, declarou o prefeito índio Manuel  Ari que aqueles se levantaríam  " no instante que sejam prevenidos por Thomas Catari"(...) " Não deixa de ser digno salientar o fato de que o corregedor Alós considere que  Catari está em condições de mobilizar entre 20 e 30 mil índios." (tradução e nota do autor)
[105]Mas foi, como dissemos, entre os seus, onde se destacou e onde ele pode mostrar, sem intérpretes, o seu valor; foram também os índios que estavam em melhores condições do que os espanhóis  para apreciar as suas aptidões e virtudes. E eles, pobres e incultos, exteriorizavam sua admiração pelo caudilho a sua maneira, ajoelhando-se diante dele e beijando-lhe a mão ou o poncho que vestia, considerando-o um redentor e quase uma divindade.” (tradução e nota do autor)
[106] LEWIN, Boleslau. Idem., p. 527
[107] LEWIN, Boleslau. Idem., p. 529.  “
“A origem da enorme ascendência de Túpac Catari sobre as massas indígenas, de cujas vidas e  fazendas dispunha de forma ilimitada durante muitos meses, por mais que houvesse tentativa individuais para destituí-lo de seu cargo”
[108] LEWIN, Boleslau. Idem., p. 545.O traidor recebeu como recompensa uma medalha  por sua “lealdade” e a prefeitura do povoado de Achacachi, de onde era oriundo e onde executou sua deslealdade.
[109] SILES, María Eugenia del Valle de.  Historia de la Rebelión de Tapac Catari – 1781-1782. La Paz, Editorial Don Bosco, 1990.

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