sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Gare marítima (cont.)

Gare marítima (cont.)
por João  de Melo 
"A custo lograra o chefe Matos vencer a relutância de Mariano em conceder a entrevista. Resistiu-lhe do princípio ao fim, arisco e indisposto com a insistência dele, e num crescendo de vozes, argumentos e refutações de parte a parte. Ameaçou desligar-lhe o telefone na cara e deixá-lo a falar sozinho. Qual deles o mais teimoso, deram largas a insultos e a acusações mútuas – até ambos caírem em si, envergonhados, com pedidos de desculpa pelos excessos de cada um. Acabaram a admitir que tinham admiração um pelo outro, dois açorianos de nome feito e nome honrado, David Matos, da ilha Terceira. a chefiar a redacção de um jornal de prestígio nacional, e Mariano Franco, de São Miguel – cada qual na margem oposta do pensamento político. Valia-lhes que nenhum deles cultivava as rivalidades que persistem entre a Terceira e São Miguel, Naião e Rabo‑Torto para lá, Corisco mal‑amanhado e Japonês, para cá – umas guerrinhas estúpidas, em nada compatíveis com um patriotismo açoriano.
Foi aí que o outro lhe expôs as razões da sua reserva. Tinha-se na conta de um homem sem história na ilha, e com pouco ou nada para contar. Anos volvidos sobre tudo quanto fora dito e ficara por dizer, não lhe parecia razoável nem oportuno vir agora a público e defender-se do passado e das suas razões. A que título e propósito o faria? Sem interesse por nada e coisa nenhuma, entregara-se à paz rústica dos seus campos, a ouvir a música bucólica dos chocalhos no meio da bruma e a ver com enlevo as suas vacas a remoer, a enxotar as moscas, a pastar o trevo e o azevém que mandara semear nas terras agrícolas de outrora. Isto dizendo, soltou uma risada escarninha, que mais pareceu ao Matos uma mordidela irónica do que uma manifestação de desprezo.
– O mais – concluiu, já com uma penumbra de melancolia na voz – são águas passadas. E não movem moinhos.
 A seu ver, a chamada «geração seguinte», nascida dos sacrifícios dos seus progenitores, não chegara a existir enquanto tal em Portugal. Depois da sua, nenhuma outra soube viver a nova e a velha realidade. Os filhos e os netos de hoje limitam-se a extorquir benefícios e a obter o que pretendem de pais, avós e amigos. Não sobra da cabeça deles qualquer memória histórica nem lugar para nada, nem motivações de espécie alguma para as causas comuns.
– Falar a essa geração inexistente para quê?,
se afinal ninguém a educara a ouvir nem a respeitar os mais vividos. Tinha as suas contas saldadas. Pagara-as ele nos pelourinhos da justiça, que o  condenou por danos, ofensas e dívidas que não contraíra – só para poder voltar a casa, sentar-se no chão, estender-se à larga na sua cama, até se lhe povoar a cabeça de pensamentos futuros.
Quis, porém, o Diabo que as iras da besta maligna do Matos o persuadissem a defender publicamente a sua honra. Intuíra, e bem, que só as questões da honra e do bom-nome operariam nele a cedência à confissão da sua vida. Aproveitou para o convencer a tornar público por que motivos andou ele conhecido no país inteiro por «bandido» e por «terrorista». Os leitores do Quotidiano queriam saber quem atentara à bomba contra alvos escolhidos; quem ameaçara pessoas, com o dedo aferrado ao gatilho da pistola ou de metralhadora em punho – nesses dias de guerrilha urbana que não tivera quartel nem cabeça, nem frente nem retaguarda. E se fora ele quem fizera explodir bombas artesanais nas casas de alguns políticos, nos jardins do palácio, numa fábrica, no aeroporto e no Coliseu durante um comício eleitoral; e se disparara sobre as casas onde então residiam outros dignitários da ilha: o juiz da comarca judicial, o comandante militar e o chefe da polícia, os representantes da chamada «potência ocupante». Imagine-se lá, Portugal uma potência continental! "
João de Melo, in Livro de Vozes e SombrasPublicações Dom Quixote,Junho 2020, pp.21,22,23

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