segunda-feira, 22 de junho de 2020

Sérgio Rubens Sossélla

Sérgio Rubens Sossélla, poeta paranaense,
patrono da cadeira nº 2 da Academia
de Letras e Artes  de Paranavaí
Sérgio Rubens Sossélla *
por Manoel de Andrade
“Conheci o Sossélla em 1962, no primeiro ano de Direito da Universidade Federal do Paraná, mas foi somente no ano seguinte que nos aproximamos. Eu começava a escrever poesia e ele, crítica literária. Seu primeiro livro, publicado em 1962, chamou-se 9 artigos de crítica que ele autografou para mim, em 20 de Setembro de 1963, com as seguintes palavras: “Ao amigo e colega Manoel de Andrade, oferece o autor com abraços”. Tratava-se de textos que eu já tinha lido nos jornais de Curitiba. Na época, ele estava preparando seu segundo livro que se chamaria: Apontamentos de Crítica (1). Os 9 artigos de crítica falavam de música, literatura e cinema e começava ali a sua grande paixão pelo contista português Fialho de Almeida. Em suas páginas escreveu  indignado: [...] “Incrível o pouco caso manifestado por críticos, historiadores e editores portugueses ao genial cinzelador dos ‘Ceifeiros’. Um escritor que orgulharia qualquer povo, esquecido, completamente esquecido em sua pátria. O esquecimento voluntário é um crime.” Lembro-me de que uma vez o encontrei exultante. Trazia nas mãos dois amarrotados volumes de Os gatos, que havia achado num sebo (1). Era uma edição portuguesa do fim do século XIX. Nem ele mesmo acreditava que aqueles livros tivessem vindo parar em Curitiba. Só aqueles que amam os livros sabem o prazer de encontrar uma obra rara de um autor preferido.
Na década de 60, Sossélla escrevia semanalmente na coluna DP Domingo do jornal Diário do Paraná que fazia parte da grande rede dos Diários Associados. Trocávamos mútuas opiniões sobre os textos que escrevíamos. Lembro-me do primeiro poema que publiquei em 17 de Julho de 1963, no jornal Estado do Paraná. Chamava-se “Praias” e foi ele quem revisou o original, sugerindo-me pequenas modificações. Em fins de 1965, o Grémio Clóvis Bevilaqua, criado para organizar nossa formatura em 1966, passou a editar uma publicação académica chamada O Grêmio. Era um boletim informativo-cultural, cujo primeiro presidente foi o colega Fausto Luiz Sant’Ana e sua principal finalidade era organizar os fundos para a  graduação. O primeiro número saiu em Novembro de 1965. Na parte literária, trazia um trecho autobiográfico de Thomas Mann e um poema político meu chamado “Epinício”, que também passou pelo crivo do Sossélla. Creio que ele publicou alguns textos nos números seguintes. Ao término das aulas, saíamos quase sempre juntos e íamos directo para a Livraria Ghignone, a uma quadra e meia da Faculdade. Lá chegavam outros colegas de turma como o Alaor Galhardo, o José Arruda, também apaixonados por livros. Era ali que encontrávamos os intelectuais Nelson Padrela, o Jamil Snege, Walmor Marcelino e o Aristides Vinholes. O Sossélla, muito mais que eu, era literalmente um “rato de livraria”. Não era raro nos encontrarmos, também, nos poucos sebos que Curitiba tinha naquela época. No começo dos anos sessenta, o Concretismo estava dando as cartas na literatura e eu acabei entrando naquela “canoa furada”, onde a mera formalidade gráfica, a  visualidade e a própria eliminação do verso sacrificavam o real encanto e o lirismo da poesia. A nova cartilha passava pelo poema “Un coup de dés” de Mallarmé, o “Finnegans Wake”, de Joyce, os cantos de Ezra Pound e pelas experiências futuristas e dadaístas. O Sossélla, literalmente mais crítico que eu, não só passou imune por sua bizarra influência, mas mostrou a inadequada pretensão poética do movimento em seu terceiro livro Apontamentos de crítica (3). No texto “Concretismo: significação poética” ele argumenta que a poesia feita em São Paulo pelo grupo Noigandres atrofiava o significado da poesia, descontextualizando o sentido das palavras. Essa consciência crítica e essa visão antecipada da sua incoerência como expressão da poesia era já um prenúncio da fugaz existência literária que teve o Concretismo. Este era um assunto polêmico na época, um feudo intelectual, mas Sossélla teve a coragem e agudeza de colocar o dedo na ferida. O alerta contra o excessivo intelectualismo na poesia foi dado também pelo poeta Ferreira Gullar que se identificando com o momento histórico pelo qual passava o Brasil, desde o golpe de 1964, abandonou o formalismo concretista e retomou a linguagem poética, identificando-a com as causas políticas. Mas não foram muitos os poetas brasileiros que abandonaram o mero intelectualismo que então grassava não só no Concretismo, mas também na Poesia-práxis e no Poema/processo, para fazer esta opção pelo social e isso eu senti aqui, em Curitiba. Em 1965, quando o regime militar já era abertamente denunciado pelas prisões e torturas, participei da Noite da Poesia Paranaense, no Teatro Guaíra, e o único poema – declamado entre os 14 poetas participantes – que ousou encarar a ditadura chamava-se “A náusea”, onde eu perguntava:
[...] saberás conter essa indignação
 somente no lirismo dos teus versos,
 ou irás colar teu escarro no pátio sangrento
 dos quartéis? [...]
O Sossélla estava lá, mas como espectador, porque ele não trocara ainda a condição de crítico pela de poeta e seu primeiro livro de poesia, Sobrepoemas, somente seria publicado em 1966. Ele não era, ideologicamente, tão radical, mas ambos partilhávamos da mesma revolta contra a ditadura, embora ele nunca tenha expressado, pelo que eu li de sua poesia naqueles anos, qualquer engajamento nos seus versos. No começo de 1966, começou a ser publicada em Curitiba a Revista Forma, concebida pela genialidade gráfica de Cleto de Assis e a invejável intelectualidade de Philomena Gebran. A revista, ainda que de vida curta, foi um marco de requintada cultura. O Sossélla e eu tivemos nossos textos honrados pelos seus diretores. No primeiro número o Cleto ilustrou os versos do meu “Poema brabo” e no segundo, o  texto-montagem “My name is Orson Welles” do Sossela o qual passou a integrar o Conselho de Redação da Revista. Até aquele ano de 1966 convivíamos quase diariamente, já que cursávamos o último ano de Direito e partilhávamos culturalmente os mesmos caminhos. A partir de 1967, já não nos víamos com tanta frequência. Ele trabalhava na Biblioteca Pública e eu no Departamento de Estradas de Rodagem, lugares bem distantes, na geografia urbana daquela época. O golpe militar de 1964, à medida que os anos passavam, também começou a definir claramente os rumos a serem trilhados pelos intelectuais. Alguns optaram por colocar sua arte a serviço da luta contra a ditadura e essa foi minha opção como poeta. Em outubro de 1968, escrevi um poema chamado “Saudação a Che Guevara”, pregando a luta armada. Esse poema foi panfletado em universidades, centros acadêmicos e sindicatos e quando em dezembro veio o AI-5, passei a ser procurado pelo DOPS. As pessoas estavam sumindo e muitas delas jamais  reapareceram. Nesse contexto de terror e pânico, fugi do Brasil em março de 1969 e nunca mais vi o Sossélla.
Na tarde de terça-feira, 19 de abril de 2011, o artista gráfico e editor Cleto de Assis, o jornalista e escritor Hélio de Freitas Puglielli e eu participamos de um estudo em grupo, da obra de Jamil Snege. Comentei com ambos que me fora pedido um texto sobre o Sossélla e perguntei que relações tiveram com ele. O Hélio me disse que, no início da década de 60, foi surpreendido, nos corredores da antiga Secretaria de Viação e Obras Públicas, por um rapaz magro e de óculos, voz grossa, que lhe solicitou a publicação de “uma crônica hebdomadária” no jornal em que ele era o redator. Tratava-se do Sérgio Rubens Sosséla, que, nas palavras do Hélio “tornou-se um grande poeta, cuja obra ainda há de ser reconhecida como importante contribuição à literatura brasileira. Advirta-se que logo ele perdeu o hábito de arcaísmos, como o que usou para pleitear a publicação de uma crônica semanal.” Os arcaísmos a que se refere o Hélio devem-se, com toda certeza, à influência do estilo literário de Fialho de Almeida. Influência que ele perdeu por conselho de seu amigo, o escritor Ernani Reichmann. Já o Cleto de Assis preferiu me mandar um email onde afirma que
Minha amizade com Sérgio Rubens Sossélla foi daquelas que consideramos como de curta comunicação, mas de intensa voltagem. Lembro-me de sua figura franzina, ainda estudante mas já vestido como jurista, de gravata e pasta de couro, a procurar-me para tratar da edição de um ensaio seu sobre A Procissão de Eus, do escritor paranaense Milton Carneiro. Desde logo foi possível perceber que, diante de mim, estava um homem inquieto, imensamente interessado com a dinâmica literária. Seu pequeno livro tentava ler as entrelinhas do amigo intelectual mais idoso e sofrido, transformando o primeiro texto numa espécie de poema exegético em prosa. Aquela análise crítica, que logo iria ao prelo da pequena gráfica na qual eu tentava criar uma editora, em companhia de Philomena Gebran, seria o primeiro laço com o nascente escritor, crítico e poeta. A seu pedido, desenhei também a capa. Passamos a conviver nas tertúlias artísticas, a nos encontrar no cine-clube do Santa Maria, a dividir conversas longas e interessantes com amigos comuns. Mas foi rápida a nossa comunicação interpessoal, devido a diferentes geografias às quais fomos ejetados, nos anos  seguintes. Acompanhei, no entanto, a sua progressão profissional e artística, por meio de notícias de jornais e fala dos amigos, até seu exílio final no interior do Paraná, que não chegou a desvanecer a sua inquietude e a prolífera produção literária.
Quando por razões familiares, voltei ao Brasil, em meados de 1972, não encontrei mais o Sossélla em Curitiba. Soube que era juiz em Jacarezinho. A situação do país passava, politicamente, por sua fase mais tenebrosa. Era a época da Guerrilha do Araguaia e a ordem já não era mais prender os “subversivos”, mas executá-los. Embora no anonimato social e literário, alguns meses depois que cheguei, soube que os agentes do DOPS já estavam à minha procura. Isolei-me mais ainda. Muitas coisas mudaram nos meus interesses intelectuais e fiquei cerca de 30 anos longe dos contatos literários, voltando a escrever somente em 2002. Creio que foi no início daquele ano que consegui o telefone do Sossélla em Paranavaí. Tivemos quase duas horas de conversa. Eu falando de minha volta à poesia e ele comentando sua intensa vida literária e a centena de livros publicados. Ficamos de nos rever em Curitiba. Mas esse ansiado reencontro não aconteceu. Em 2003 dois grandes amigos mudaram-se para uma outra dimensão da vida. Em 16 de maio partiu o narrador e poeta Jamil Snege e em 18 de novembro seguiu o crítico e poeta Sérgio Rubens Sossélla. Os poetas habitam na aldeia da  esperança. Não morrem porque não deixam o sonho morrer. Eles vivem nas palavras que deixaram, na memória e na saudade dos amigos e dos amores, porque nada, segundo Shakespeare, separa aqueles que se amam.
Manoel de Andrade, in "Palavras no espelho", Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, 2018, pp. 193-199
(1) - sebo corresponde a alfarrabista, em Portugal
 Nota
*- Estas informações sobre Sérgio Rubens Sossélla  foram-me solicitadas em Março de 2011, pela professora Gersonita Elpídio dos Santos, para sua dissertação de mestrado em Letras, pela Universidade Estadual de Maringá, que resultou no livro Silêncio, sombra e solidão na poesia de Sérgio Rubens Sossélla, publicado em 2013 pela Editora Massoni.
Breves notas biográficas sobre Sossélla
"Sérgio Rubens Sossélla foi um poeta, crítico e magistrado, nascido em Curitiba, no dia 27 de Fevereiro de 1942.  Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná, actuou como juiz em alguns municípios do Estado, vindo a aposentar-se, a pedido, em 1986. Após o abandono  das actividades jurídicas, dedicou-se única e exclusivamente à literatura. Foi um dos poetas mais produtivos do Brasil, tendo produzido  para além de 300 publicações, a maioria editada pelo próprio autor. Aposentou-se em 1986 e,  em seguida, construiu a Vila Rosa Maria, na cidade de Paravanaí, uma biblioteca com mais de 25 mil livros, onde se dedicou à poesia e literatura integralmente até ao fim de sua vida, em 2003.
Faleceu no dia 18 de Novembro de 2003. Deixou um volumoso legado literário , com algumas obras  inéditas. "

5 comentários:

  1. Recordar ė viver..., e relendo esta postagem sobre o Sossėlla, ressurgem tantas e tantas gratas lembranças da longínqua vida acadêmica e do fervor literårio daqueles anos. Nesse período de pandemia essas memórias passam a ter um significado ainda maior quando recordamos de um tempo em que convivīamos nos saguões da Universidade, nos teatros e nas livrarias cheias e saíamos pelas ruas em multidões estudantis para protestar contra a ditadura. Obrigado editora, obrigado Livres Pensantes por levar até Portugal os rastros biográficos deste grande poeta que estudou e escreveu com grande paixão sobre a obra deste ilustre escritor e jornalista português Fialho de Almeida.

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  2. Honra-nos poder rememorar um passado de tertúlias literárias em que a livraria era um dos locais de encontro, discussão e partilha.
    O agradecimento pertence-nos.
    Até sempre, poeta!

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  3. Muito legal! Obrigado por compartilhar as histórias. Sou filho dele, aqui de Paranavaí. Um abraço p/ vcs!

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  4. Sossela, que grata coincidência ver este comentário do filho de meu grande amigo postado justamente no Dia dos Pais. Estou gratificado por saber que meu texto sobre teu pai chegou, depois de tanto tempo e do longínquo Portugal, até o coração da família Sossela.

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  5. Bom dia a todos...
    Fui enfermeira e confidente, com grande orgulho e saudades que lembrei-me de Sérgio Sosséla,conseguiu abrir meu olhar para poesia, e tive o privilégio de escutar muitas de suas histórias sobre a magistratura. Meu saudoso abraço...Eloisa!

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