sexta-feira, 26 de junho de 2020

A Dor do Luto

"Há quase trinta anos, num romance, tentei imaginar o que seria para um homem de sessenta e tal anos  enviuvar. Escrevi:

Quando ela morre, de início não nos surpreendemos. Parte do amor  é preparação para a morte. Sentimos a confirmação do amor , quando ela morre. Tínhamos razão. Isso faz parte.
Depois vem a loucura. E depois  a solidão: não a solidão aparatosa que antevíramos, não o martírio singular da viuvez, mas solidão somente. Esperamos  uma coisa quase geológica - vertigem num desfiladeiro a pique - mas não é assim; é só infelicidade, regular como um emprego. [As pessoas dizem] vai sair deste estado... E saímos mesmo, é verdade. Mas não saímos como o comboio que sai do túnel e irrompe nas Downs para  luz do sol e para a descida veloz e estrepitosa até ao Canal; saímos como a gaivota que sai de uma maré negra; ficamos como a gaivota que sai de uma maré negra; ficamos  cobertos de alcatrão e penas para a vida inteira.

Li esta passagem no funeral dela, com a neve de Outubro sobre o chão, a minha mão direita a segurar o livro aberto ( que lhe era dedicado). O meu viúvo de ficção tinha uma vida - e um amor - diferente do meu e uma viuvez muito diferente. Mas só tive de suprimir  algumas palavras de uma frase , e fiquei surpreendido com o que julguei ser a minha precisão. Só mais tarde  a dúvida própria do romancista se instalou: talvez , mais do que inventar a dor exacta da minha personagem de ficção, eu me tenha limitado a prever os meus sentimentos  prováveis - uma tarefa mais fácil.
Durante três anos , e mais,  continuei a sonhar com ela  da mesma maneira, segundo a mesma narrativa. Tive então uma espécie de metassonho, que parecia sugerir um fim  para este tipo de trabalho nocturno.  E , como todos os bons finais, não o vi aproximar-se. No meu sonho, estávamos juntos, a fazer coisas juntos , num espaço aberto , felizes - tudo da maneira a que me habituara - quando de repente ela agora sabia que estava morta.
Devia ficar satisfeito com este sonho? Porque esta é  a questão final, aflitiva e sem resposta: o que é ter "sucesso" no luto? Consiste em lembrar ou em esquecer ? Em estar parado ou seguir em frente? Ou nalguma combinação dos dois? A capacidade de continuar a viver como ela quereria que vivêssemos ( embora esta seja uma zona ardilosa, em que os pesarosos podem outorgar-se  livre-trânsito)? E depois? O que acontece ao coração - de que precisa e o que procura?  Uma forma de autossuficiência  que evita a neutralidade e a indiferença? Seguida de uma nova relação que tirará força à memória da que se perdeu? Isto é como pedir o melhor  de ambos os mundos - mas, visto que acabámos de aguentar o pior de um mundo só, podemos sentir que temos este direito. Mas o direito  - a crença num sistema de recompensa cósmica ( ou mesmo animal) - é outra ilusão, outra vaidade. Porque há de existir um padrão, logo aqui, neste lugar?
Há momentos que parecem indicar algum tipo de progresso. Quando as lágrimas  - as lágrimas diárias, inevitáveis - param.  Quando a concentração volta e um livro consegue ser lido como dantes.  Quando o terror  do foyer desaparece.  Quando conseguimos desfazer-nos de bens ( Orfeu , se as coisas tivessem corrido de outra maneira, teria dado aos pobres aquele vestido encarnado). E para além disto? Que esperamos, que procuramos? O tempo em que a vida sai da ópera  e volta à ficção realista. Quando a ponte sob a qual  ainda passamos  de carro, regularmente, volta a ser só uma ponte.  Quando anulamos retrospectivamente os resultados daquele exame em que alguns amigos passaram e outros reprovaram. Quando a tentação do suicídio desaparece finalmente - se é que alguma vez isso acontece. Quando o mundo  volta a ser "só"  o mundo e a vida parece outra vez normal, verdadeira.
Estes podem parecer indicadores claros, quadrados à espera  de um visto. Mas no meio de qualquer  triunfo há muito insucesso, muita recaída. Às vezes queremos continuar a amar a dor. E depois , para além disto, aparece outra questão bem delineada sobre a nuvem: o sucesso na dor, no luto, na mágoa é uma realização ou uma simples e dada condição que agora é nova? Porque aqui  a noção de livre-arbítrio parece irrelevante; a atribuição de virtude e finalidade - a ideia de recompensa pelo luto - parece deslocada. Pode ser que desta vez a analogia  com a doença seja válida. Estudos de doentes com cancro mostram que a atitude de espírito tem muito pouco efeito no resultado clínico. Podemos dizer que estamos a combater o cancro, mas é o cancro  que simplesmente nos combate; podemos pensar  que o derrotámos , e ele retirou-se para se reorganizar.  É só  o universo a fazer o seu trabalho e nós somos o trabalho de que ele é feito. E talvez seja igual com a dor. Imaginamos que lutámos contra ela, que fomos resolutos, superámos a mágoa, raspámos a ferrugem da nossa alma, mas o que aconteceu  foi que a dor se  mudou para outro lado, ganhou novo interesse.  Não fomos nós que mandámos vir as nuvens e não temos poder para as dispersar. Só aconteceu que de algum lado - ou de nenhum lado - uma brisa inesperada surgiu e estamos  de novo em movimento. Mas para onde nos leva?  Para Essex? Para o mar do Norte? Ou, se o vento for de norte, então talvez, com sorte para França.
                                                                                            J.B.
                                                              Londres , 20 de Outubro de 2012"

Julian Barnes, in Os Níveis da Vida, Quetzal Editores, Novembro de 2013,  pp. 106, 107, 108, 109

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