quarta-feira, 18 de março de 2020

A «Trégua de Deus»

Ao meu amigo Willie Heath
Morto em Paris a 3 de Outubro de 1893

                    Do seio de Deus onde repousas, revela-me as verdades
                   que dominam a morte , que também impedem de a temer e
                   quase no-la fazem amar.



"Os antigos gregos  ofertavam aos seus mortos bolos, leite e vinho. Seduzidos  por uma ilusão mais requintada, senão mais sensata, nós ofertamos-lhes flores e os nossos livros. Se este te ofereço é, primeiro que tudo , por ser um livro de imagens .
(...) A tua vida, tal como a desejavas, seria uma daquelas obras que requerem uma alta inspiração.Tanto quanto da fé e do génio, ela pode vir do amor. Nela e nas suas proximidades residem forças ocultas, auxílios secretos, uma «graça» que não existe na vida. Tal como os amantes  quando começam a amar, tal como os poetas  no tempo em que cantam, os doentes sentem-se mais perto da própria alma. A vida é uma coisa dura  que aperta muito connosco e nos magoa na alma. Nos momentos  em que ela nos alarga a rédea, podemos sentir clarividentes doçuras. Quando em criança , a que mais miseranda me parecia, entre todas as personagens da história sagrada, era Noé, por causa do dilúvio, que o obrigou a ficar fechado na arca durante quarenta dias. Compreendi então que Noé nunca mais pôde  ver o mundo a não ser da arca, embora ela fosse fechada e a terra estivesse às escuras. Quando começou  a minha convalescença, a minha mãe, que nunca me largou e que mesmo durante  a noite se mantinha  junto de mim ,«abriu a porta da arca» e saiu. Mas, tal como a pomba, «voltou naquela mesma noite». Depois sarei completamente  e ela, tal como a pomba, « nunca mais voltou». Tive de recomeçar a viver, afastando-me de mim, passando a ouvir outras palavras mais duras do que as da minha mãe; além disso, as dela, até ali sempre tão doces, não eram já as mesmas, impregnava-as a severidade da vida e do dever que ela me queria ensinar. Doce pomba do dilúvio, ao ver-te partir , como pensar que o patriarca não terá sentido alguma tristeza à mistura  com a alegria de ver renascer o mundo? Doçura da suspensão de viver, da verdadeira «Trégua de Deus» que interrompeu o trabalho, os maus desejos. «Graça»» da doença que nos aproxima das realidades de além-morte -  e as suas graças também, graças «desses vãos ornamentos e desses véus que pesam», dos cabelos que mão importuna «teve o cuidado de reunir» , suaves fidelidades de uma mãe e de um amigo que muitas vezes nos apareceram como o rosto da nossa tristeza  ou como o gesto da protecção implorada pela nossa fraqueza,  e que terminarão assim que chega  a convalescença, muitas vezes eu sofri por vos ver tão longe de mim, todas vós, exilada descendência da pomba da arca. E quem, meu querido Willie, não conheceu momentos assim, em que desejaria estar onde tu estás? Assumem-se com a vida  tantos compromissos que chega uma hora  em que, sem coragem para os honrarmos todos  , nos voltamos para as tumbas, chamamos a morte,« a morte que  vem socorrer os destinos que têm dificuldade em cumprir-se.» Mas se ela  não nos desliga dos compromissos tomados com a vida, não pode desligar-nos dos que tomamos connosco e sobretudo do primeiro de todos, que é o de vivermos para valer e merecer. " 
Marcel Proust, in Os prazeres e os dias, Editorial Estampa, pp 11,12 e 13

Sem comentários:

Enviar um comentário