segunda-feira, 30 de março de 2020

Reconciliação

XVI
"Aparece , reaparece  a palavra reconciliação. Durante muito tempo alumiava-me com ela, bebia e comia de ela.  Libertação era a sua irmã e a sua antagonista. O herege que abjura os seus erros e regressa à igreja reconcilia-se; a purificação de um lugar sagrado que foi profanado é uma reconciliação.  A separação é uma falta, um extravio. Falta: não estamos  completos; extravio: não estamos no nosso sítio. A reconciliação une o que foi separado, faz a conjunção  da cisão, junta os dispersos : voltamos  ao todo e assim regressamos ao nosso lugar.  Fim do exílio. Libertação abre outra perspectiva: ruptura dos vínculos e ligações, soberania do arbítrio. Conciliação é dependência , submissão; libertação é auto-suficiência, plenitude do  uno, excelência do único. Libertação : prova , purgação, purificação. Quando estou só não estou só: estou comigo; estar separado não é estar cindido: é sermos nós próprios. Com todos , estou desterrado de mim mesmo; a sós estou em mim todo. Libertação não é unicamente o fim dos outros e do outro, mas sim o fim do eu. Retorno do eu - não a si mesmo:  ao mesmo,  regresso à mesmice.
Libertação é o mesmo que reconciliação? Ainda que reconciliação passe por libertação e libertação por reconciliação, cruzam-se apenas para se separarem: reconciliação é identidade na concordância , libertação é identidade na diferença.  Unidade plural , unidade unificada. De outra maneira: da mesma maneira. Eu e os outros, os meus outros , eu em mim mesmo, no mesmo. Reconciliação passa por dissenção , desmembramento, ruptura e liberação. Passa e regressa. É a forma original da revolução , a forma através da qual a sociedade se perpetua a si mesma  e se recria: regeneração do pacto social, retorno à pluralidade original. No início não havia Uno: chefe, deus, eu; por isso, a revolução é o fim do Uno e da unidade indistinta , o começo  (recomeço)  da variedade e as suas rimas , aliterações e composições.  A degeneração da revolução , como se pode ver nos movimentos revolucionários modernos , todos eles sem excepção  transformados em cesarismos burocráticos e em idolatria institucional do Chefe  e do Sistema, equivale à decomposição da sociedade, que deixa  de ser um consenso plural , uma composição no verdadeiro sentido da palavra, para se petrificar na máscara do Uno.  A degeneração consiste no facto  de a sociedade repetir infinitamente a imagem do Chefe, que não é outra coisa senão a máscara da descompostura: a desmesura e impostura de César. Mas não houve nem há um uno: cada um é um todo.  Mas não há todo: falta sempre um. Nem entre todos somos um, nem cada um é um todo. Não há um nem todo: há uns e todos.  Sempre o plural , sempre a pletora incompleta, o nós em busca do seu  cada um: a sua rima, a sua metáfora, o seu complemento diferente.
Sentia-me separado, longe - não dos outros nem das coisas, mas sim de mim mesmo. Quando me procurava por dentro, não me encontrava; saía e também não me reconhecia fora. Dentro e fora encontrava sempre outro. Ao mesmo sempre outro. O meu corpo e eu, a minha sombra e eu, a sua sombra.   As minhas sombras: os meus corpos: entre outros. Dizem que há gente vazia : eu estava cheio, repleto de mim. No entanto, nunca estava em mim e nunca podia entrar em mim: havia sempre outro. Era sempre outro. Suprimi-lo, exorcizá-lo, matá-lo? Assim que o via , desaparecia. Falar com ele, convencê-lo, estabelecer um pacto? Procurava-o aqui e surgia além. Não tinha substância , não ocupava lugar. Nunca estava onde estava eu ; sempre além: cá; sempre cá: além. O meu previsível  invisível, o meu visível  imprevisível. Nunca o mesmo sítio: fora era dentro, dentro era outra parte, aqui era parte nenhuma. Nunca um sítio. Desterros: lonjuras: sempre além. Onde? Aqui. O outro não se moveu: nunca me movi do meu lugar.  Está aqui  Quem ? Eu mesmo: o mesmo. Onde? Em mim: desde o início caio em mim e continuo a cair. Desde o início. Eu sempre vou onde estou, nunca chego onde sou. Sempre eu sempre noutra parte: o mesmo sítio, o outro eu. A saída está na entrada ; a entrada- não há entrada, tudo  é saída. Aqui dentro é sempre fora , aqui é sempre além, o outro sempre noutra parte.  Além está sempre o mesmo: ele mesmo: eu mesmo: o outro. Esse sou eu: isso.
Com quem podia reconciliar-me: comigo ou com o outro -- os outros? Quem eram, quem éramos?Reconciliação não era nem ideia nem palavra: era uma semente que , dia após dia primeiro e depois hora após hora, tinha crescido até converter-se  numa imensa espiral de vidro por cujas veias e filamentos corriam luz, vinho tinto, mel fumo , fogo água do mar e água do rio, neblina, matérias ferventes, torvelinhos de penas. Nem termómetro nem barómetro:central de energia que se transforma em pulverizador  que é uma árvores de ramos e folhas de todas as cores, fábrica de brasas no Inverno e fábrica de frescura no Verão, sol de claridade e sol de sombra, grande albatroz de sol e ar , moinho de reflexos, relógio em que cada hora se contempla nas outras até se anular. Reconciliação era uma fruta  - não a fruta  mas sim a sua madureza  mas sim a sua queda. Reconciliação era um planeta ágata e uma pequena chama , uma rapariga, no centro desse berlinde incandescente.  Reconciliação era certas cores entretecidas  até se converterem  numa estrela  fixa à cabeceira  do ano ou à deriva em aglomerações tíbias nos estribos das estações ; a vibração de um grão de luz  encerrado  na pupila de um gato tombado num ângulo do meio-dia; a respiração das sombras  adormecidas aos pés do Outono desfolhado; as temperaturas  ocres, as correntes cor de tâmara , avermelhadas , incandescentes  e as poças verdes , as  bacias  de gelo , os céus  errantes  e em vestes  de realeza; os tambores  da chuva : sóis  do tamanho de um quarto de hora mas que contêm todos os séculos ; aranhas  que tecem redes translúcidas para bichos infinitesimais , cegos e emissores de claridade , folhagens  de água, folhagens de pedra, folhagens magnéticas. Reconciliação era matriz  e vulva mas também pálpebras , províncias de areia. Era noite. Ilhas , a gravitação  universal , as afinidades electivas , as dúvidas da luz que às seis da tarde não sabe se há-de ficar  ou se há-de ir. Reconciliação não era eu.  Não era vocês nem casa, nem passado ou futuro.  Não era além. Não era regresso, volta ao país de olhos fechados. Era sair para o ar fresco, dizer «bom dia»."
Octavio Paz, in O Macaco Gramático, Bibliotex Editor, pp.77-80

Sem comentários:

Enviar um comentário