quinta-feira, 26 de março de 2020

Uma teoria da vida

"Uma teoria da vida que não vem acompanhada de uma crítica do conhecimento é forçada a aceitar, tais e quais, os conceitos que o entendimento põe à sua disposição: não pode fazer mais que encerrar os factos, por bem ou por mal, em quadros preexistentes que ela considera como definitivos. Obtém assim um simbolismo cómodo, talvez mesmo necessário à ciência positiva, mas não uma visão directa de seu objecto. Por outro lado, uma teoria do conhecimento que não reinsere a vida na evolução geral da vida não nos ensinará nem como os quadros do conhecimento se constituíram, nem como podemos ampliá-los ou ultrapassá-los. É preciso que essas duas investigações, teoria do conhecimento e teoria da vida, se encontrem e, por um processo circular, se impulsionem uma à outra indefinidamente"( p.13-14).
[...]Quanto mais numa sociedade humana escavarmos até à raiz das obrigações diversas para chegarmos à obrigação em geral, mais a obrigação tenderá a tornar-se necessidade, mais se aproximará do instinto no que tem de imperioso ( p.38).
[...] entre a sociedade em que vivemos e a humanidade em geral há o mesmo contraste que entre o fechado e o aberto; a diferença entre os dois objectos é de natureza, e não simplesmente de grau (p.41).
[...]Porque é somente através de Deus, em Deus, que a religião convida o homem a amar o género humano, como é também somente através da Razão, na Razão por meio da qual todos nos comunicamos. Que os filósofos nos fazem olhar a humanidade e nos mostram nela a eminente dignidade da pessoa humana, o direito de todos ao respeito. Nem num caso nem no outro se chega à humanidade por etapas, atravessando a família e a nação. É preciso que, de um salto, nos transportemos mais longe que ela e a atinjamos sem a termos tomado por fim, ultrapassando-a. ( p.42)
(Bergson observa como, em todos os tempos, apareceram seres humanos excepcionais, encarnando essa forma de moral que ultrapassa o domínio da obrigação e alcança o reino da absoluta liberdade. Os sábios da Grécia, os profetas de Israel, os monges budistas, os santos cristãos etc. são casos dessa moral aberta e de uma religião dinâmica.
Desse modo, enquanto a moral fechada se realiza na impessoalidade, a moral aberta aparece em personalidades que a vivem e se fazem exemplo para os outros. A própria existência de pessoas com essa qualidade espiritual difunde o apelo por um amor incondicional por suas simples presenças. E o apelo não precisa recorrer a artifícios retóricos, o que ocorre nas formas de moral e de religião baseadas no cálculo e no controle racional. O carácter exemplar das grandes personalidades morais provoca o apelo que suscita um salto de natureza na atitude moral humana: do amor fechado ao amor pela humanidade, estendido ao amor à vida em todas as suas formas.*)
[...)A natureza deste apelo, só a conheceram inteiramente os que experimentaram a presença de uma grande personalidade moral. Mas cada um de nós, nos momentos em que as suas máximas habituais de conduta lhe parecem insuficientes, se perguntou já o que este ou aquele teria dele esperado em semelhante ocasião. Poderá ter sido um familiar, um amigo, quem assim evocávamos por meio do pensamento. Mas poderá tratar-se também de um homem que nunca vimos, cuja vida nos foi simplesmente contada, e a cujo juízo submetemos depois em imaginação a nossa conduta, temendo da sua parte uma censura ou orgulhando-nos a sua aprovação. "( p.43)
Henri Bergson, in A evolução criadora. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005
*Dante Augusto Galeffi, in Religion and science: difference and repetition - an investigation starting from the moral and religious conception of Henri Bergson

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