terça-feira, 3 de novembro de 2015

Uma prisão sem grades

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"Nunca mais esquecera a oferta de Carlos Lacerda em mostrar-lhe a propriedade. Já ensaiara algumas vezes embrenhar-se pelas alamedas com a ajuda das irmãs gémeas, mas assim que percorria os primeiros metros escutava as palmas das amigas. Eram o sinal da presença de  Genoveva. Então  retornava para junto da mansão, simulando apenas um pequeno passeio. E lá estava Genoveva conversando com as gémeas, tentando convencê-las de que queria inteirar-se da saúde de Gemma, pois  andava sempre preocupada com o bem estar dos hóspedes.
O tempo ia passando e a propriedade continuava um mistério. O fascínio de a explorar era cada vez maior. Tinha necessidade de sentir o cheiro da terra cultivada, de olhar as copas das árvores que se erguiam lá no fundo.  
Apesar da família Lacerda desvalorizar a atitude de Genoveva , não tinha ainda sido capaz de se  libertar do temor estranho que esta  sombra  permanente lhe provocava. Os outros hóspedes sentiam o mesmo. Tinham já feito conjecturas sobre a melhor maneira de a ludibriar, mas todas tinham sido infrutíferas.
Genoveva protegia um mistério ou defendia um segredo. Era uma barreira implacável para quem se atrevesse a ir para além dos limites que ela impunha.
Concluiu que todos a receavam e que estavam seguros que ela escondia vigorosamente qualquer coisa.
Assim, quando Carlos Lacerda a convidou para ir na manhã seguinte ao chalé a fim de convidar o amigo para o concerto de Fados de Coimbra, aceitou de imediato. Idalina que estava com ela foi igualmente convidada e nem sequer hesitou para anuir.
Tomás e Luísa Albuquerque iriam também. Partiriam por volta das dez horas da manhã, pelo que o encontro seria no terraço.
Nessa tarde, o tema da conversa com as gémeas e Teresa Gusmão foi sobre a excursão ao chalé. Todas elas gostariam de a acompanhar, mas não tinham forças para um grande passeio.  Teresa Gusmão estava limitada pela locomoção deficiente e as gémeas não se expunham a grandes esforços receando o agravamento da saúde de Gemma. Preferiam apoiá-la na retaguarda  como o vinham fazendo.
À noite sonhou com a quinta da infância. Percorreu todos os caminhos, acompanhada pelos cães que com ela iam saudando a vida numa alegria incontida  até chegar ao rio e espojar-se naquele tapete verde imenso que o ladeava. Então, era o labirinto do devaneio onírico  com a fantasia do real almejado. E quando acordou, já Idalina estava pronta para sair para o pequeno almoço.
Tivera uma noite longa e apaziguadora. Sentia-se em paz. Estava preparada para a descoberta.
O pequeno almoço foi tomado com um prazer que há muito não experimentava. Mas, quando chegou ao salão sentiu uma dor pungente por todos aqueles que ali ficavam e não podiam sonhar como ela por uma manhã de novos horizontes. Viver num horizonte fechado ou ter perdido o horizonte era uma condenação abominável.
Colocou Teresa Gusmão no terraço e esperou com Idalina e as gémeas a chegada da comitiva exploradora. 
Emília Navarro foi a primeira a chegar , esboçando um lindo sorriso:
- Muito bom dia! Então sempre vai conhecer um pouco da propriedade!  É uma pena que não se afoite mais, pois nada a impede de a explorar. Eu não os posso acompanhar. Tenho um compromisso com a escrita. Lamento muito porque gostaria de lhe mostrar os meus locais preferidos. Fica, porém, para uma próxima “expedição”. Se tiverem tempo, visitem a capela. É magnífica, além de ser um local de grande valor arquitectónico e artístico,  também faz bem à alma.
Por que razão Emília parecia insinuar que ela tinha relutância em embrenhar-se sozinha na  propriedade. Consideraria talvez que a sua relação com o desconhecido era problemática e que não ultrapassara as imediações do Lugar porque isso representava  uma enorme temeridade?!
Como era possível apagar a ameaça que representava Genoveva. Que cegueira era aquela que a impedia de enxergar a real Genoveva? Ou seria Genoveva ainda mais astuciosa com estes hóspedes especiais? Tomaria outras precauções, ou afivelaria mil e uma cândidas máscaras?
E que pena só agora todos se oferecerem para lhe mostrar a propriedade. Trazia há muito o desejo de a visitar estampado nos olhos, na boca, no rosto… E se isso não bastasse, todo o seu ser era atirado para lá do horizonte percepcionado pela vista . A saudade do reencontro com a terra era já uma força recuperada. Não esmorecera porque era uma lutadora. A sobrevivência habitava-lhe o corpo e enchia-lhe a alma.
- É muito difícil passear nesta propriedade. Quando cheguei ao Lugar, a Directora alertou-me para que não me afastasse muito, pois a propriedade era muito grande e poder-me-ia perder. Claro que não me assustei porque sou uma provinciana habituada a longas caminhadas pelos campos e jamais me perdi. Na primeira tentativa que efectuei para descobrir este espaço, mal tinha dado os primeiros passos já Genoveva me abordava para que não prosseguisse sem a sua companhia, apesar de  nesse dia ser impossível fazê-lo por razões que não recordo de tão vãs  que eram. – dizia Idalina. – Mais tarde solicitei-lhe que me acompanhasse numa visita pelas alamedas que enveredam para o Sul da propriedade e novamente se mostrou gentilmente indisponível por tão importantes afazeres que acabei por  concluir ser impossível transpor a “barreira Genoveva”.
- No entanto, aconselhou Idalina a não tentar afastar-se e a esperar que ela lhe mostrasse a propriedade. Prometeu que  o faria dentro de pouco tempo como era habitual fazê-lo com os demais hóspedes. – acrescentou Antonia. – Mas não  lhe revelou    que  prometia sempre o mesmo, e nunca o cumpria. O papel que ela desempenha é puramente obstrutivo e controlador. Ela veda qualquer um  de avançar para além daquilo que ela delimita como território próprio.
- Todas nós consideramos muito estranha esta atitude. Acreditamos que não se trata de um acto preventivo, mas antes de um deliberado acto restritivo da nossa  autonomia. Genoveva pretende impor-nos restrições que não são compreensíveis, nem aceitáveis. Somos quase obrigadas a pensar que há qualquer coisa de muito misterioso no seu comportamento. – declarou Gemma .- A nossa amiga tal como nós cresceu numa quinta e, por isso, negar-nos a  liberdade de respirar o ar no meio deste espaço, de olhar o céu através das árvores, de escutar os ruídos dos ramos uivando com o vento, de sentir os odores inconfundíveis da terra, de gritar por aí fora a redenção da vida,  de,  enfim, poder celebrar em cada dia o despertar de um outro novo dia é uma aberração inqualificável.
- Estamos numa prisão sem grades que nos disponibiliza apenas um reduzido e limitado “recreio”, onde Genoveva é o  carcereiro . –volveu Antonia. – São poucos os hóspedes que podem fazer caminhadas pela propriedade, mas até a esses lhes é vedada essa possibilidade. Genoveva controla com tal determinação que concluímos que pretende  manter-nos afastados de  um alvo qualquer desconhecido .
- Realmente não compreendo o que se passa. Eu nunca me senti vigiada por Genoveva, embora tenha de confessar que ultimamente quase não tenho saído da mansão. Devemos, contudo, indagar o que está a acontecer, pois a propriedade é espantosa e devem usufrui-la como podem e quiserem. Vou estar atenta e investigar. Genoveva foi sempre uma personagem estranha, soturna, mas com esse comportamento passa a ser uma ameaça nas nossas vidas. E isso não é admissível . – concluiu Emília Navarro.
Aos  poucos foram chegando. Um a um iam sentando-se até que às dez horas, Carlos Lacerda iniciou a expedição.
Seguiram, então, pela alameda que Genoveva tomava todos os dias, à hora da merenda, levando um cesto na mão.
À medida que avançavam o arvoredo tornava-se mais denso, mas era possível avistar, a norte, campos cultivados e algumas estufas destinadas a culturas mais sensíveis.
Carlos Lacerda ia acrescentando algumas informações sempre que as alamedas se bifurcavam, até que numa clareira surgiu o chalé rodeado por pequenas árvores e alguns arbustos. Era uma construção antiga e rústica com  janelas em madeira envernizada e uma linda porta primorosamente trabalhada.
Junto aos muros, havia vários canteiros repletos de flores: rosas, malmequeres, jacintos e muitas hortênsias de cores extraordinárias e invulgares. Num pequeno retalho, pejavam alguns pés de formosas violetas. Eram todas elas obra do inquilino do chalé.
Carlos Lacerda bateu à porta e, em seguida, entraram sem que alguém aparecesse. Estavam numa sala ampla com uma grande lareira de pedra. Os tectos eram suportados por robustas traves de madeira e nas paredes exibiam-se algumas pinturas em óleo sobre tela ou  em  tapeçaria . Pela  sala estavam dispostos  sofás e cadeirões que contribuíam para  uma atmosfera confortável. Num canto, via-se uma linda chaise longue”.
De uma porta lateral que estava aberta podia-se antever uma biblioteca onde se descortinavam estantes fechadas com prateleiras cheias de livros. Na mesa da sala também estavam  espalhados alguns livros, muitos deles com marcações bem  assinaladas. O amigo de Carlos Lacerda gostava de livros e de leituras.
Quando Carlos Lacerda começava a verificar se o amigo realmente estava ou não em casa e se preparava para percorrer as outras divisões do chalé,  surgiu, de supetão, Genoveva  arfando  violentamente. Carlos Lacerda estremeceu de espanto por a ver ali."
Maria José Vieira de Sousa, in " O Lugar, memórias de um romance", Junho de 2008

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