segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A propósito do novo livro de Eugénio Lisboa

                            Um bom livro é a mais pura essência da alma humana.
                                                                                   Thomas  Carlyle

Eugénio Lisboa acaba de publicar o V volume das suas Memórias, Acta Est Fabula - Memórias V - Regresso a Portugal: (1995-2015),   com  a chancela da Editora  Opera Omnia. 
Um livro que pretende encerrar a narração do percurso vivencial do autor, desde o dia em que nasceu, 25 de Maio de 1930, até 20 de Abril de 2015, data da última entrada do seu Diário que, juntamente com um belo poema, fecha este V volume. E ao fechá-lo, dá fim ao relato de  uma longa e extraordinária história verídica . Aconteceu . O narrador viveu-a intensamente: Acta est Fabula!
O volume V das minhas memórias aproxima-se do fim. E ocorre-me tudo quanto lá deveria ter posto e não pus. O que mostra como a nossa vida, na sua riqueza, não cabe nunca, no papel de um livro, mesmo avantajado, mas podemos pouco.(p.343)
Suspeitamos que muito ficou por contar, embora o autor se tenha socorrido frequentemente do seu precioso Diário (inédito) para completar e alternar com a narração e que, pela sua forma diarística, reproduz, com autenticidade colorida e  despretensiosa, os dias de uma intensa vida. Vida que nos surge como um romance. “Autobiography is the purest romance. Fiction is always close to reality than fact.” - assinala o autor de " The books in my life”,  Henry James.  
Eugénio Lisboa na casa de S. Pedro do Estoril
O grande Prémio da Literatura Biográfica APE foi atribuído ao primeiro volume de  "Acta est fabula". No Discurso da entrega do  Prémio,  (Castelo-Branco, 4 de Março de 2014), Eugénio Lisboa afirmou: “(…) o carinho e o investimento emocional que pus neste, em particular, quero dizer, neste primeiro volume das minhas sonhadas e arquitectadas memórias em cinco volumes, foi tão grande, que o reconhecimento a ele dado pelo júri me caiu fundo, no coração. É, para mim, um livro especial, como são e serão os restantes volumes da saga. Andei anos a magicá-lo, a sonhá-lo, a fruí-lo, antes de me meter a escrevê-lo. É que iria falar, nele – falar-vos, nele – de algo muito importante que me aconteceu, há muitos anos, em África: ter ali nascido e ter, para sempre, ficado espantado por isso me ter acontecido, a mim: ter nascido e ter nascido, ali. O meu livro – e os dois volumes que se lhe seguiram e os dois que se lhe hão-de seguir – falam o tempo todo – mesmo quando o não dizem claramente – desse espanto inaugural, que nunca mais me abandonou, ao longo do caminho da vida. O Alto Mahé, a Rua Norte, o Largo João Albasini, a Estrada do Zixaxa, o Cine-Variedades, onde se inventou o cinema, mesmo em frente à imponente Casa das Tias, a Rua Mendonça Barreto, no Alto Mahé, de onde eu via o mundo todo, nas páginas dos livros que devorava, o liceu, no outro extremo da 24 de Julho, o Cabo Submarino, as matinées do Scala – tudo marcas profundas que o espanto de as ter recebido, como dom dos deuses, sem bem saber porquê, gravou a fogo na minha memória. Ficaram cá, dentro de mim, e eu não gostaria de ficar egoistamente com elas, de as não partilhar convosco, antes de me ir embora para paragens de que não há nunca notícia.”

E recebemo-las com  o mesmo  espanto.  Um espanto que cresce a cada página deste novo volume, onde  Eugénio Lisboa rememora vinte anos da sua vida.  Mas vinte anos repletos de actividade, de acontecimentos, de testemunhos  e de pungentes situações que, por vezes,  o marcaram dolorosamente. Páginas construídas numa linguagem clara , transparente e melodiosa.   Páginas  que  se iniciam com a viagem de regresso a Portugal ( Maio de 1995) , após dezassete anos de diplomacia cultural, como Conselheiro Cultural da Embaixada Portuguesa, em Londres.
Praia de S. Pedro do Estoril
Saímos do ferry, em Santander, com o carro pejado de livros e objectos. (…)Íamos regressar a casa. Mas, em boa verdade, o que significava, para nós, regressar, e o que significava, por outro lado, casa? O meu Portugal, de origem, fora Moçambique, onde nascera e vivera a maior parte da minha vida, e o da Antonieta fora também Moçambique, apesar de nascida em Lamego: em Lourenço Marques, assentara, muito nova, raízes, pelo menos tão fundas como as minhas. E, então, os dezassete anos passados, vividos e fruídos em Londres? Não tínhamos, ali, também deixado crescer fortes raízes? Este nosso retorno, o que estávamos agora a fazer, não seria, nesse caso, mais um novo exílio, antes de acharmos , eventualmente, uma “casa” (uma “pátria”)? Ulisses fora mesmo para sua casa, onde o aguardava Penélope. Tróia não lhe fora “casa”, fora só lugar de luta e astúcia. Nós íamos, igualmente, é certo, para uma casa que tínhamos, em S. Pedro do Estoril, com o mar em frente, o que não era pouco.
(…)Mas deixáramos para trás a “capital da memória” (Lourenço Marques) e também a outra capital de outra memória (Londres). Que “retorno” era então este, visto isso? Vínhamos, desta vez, para ficar: talvez isto desse alguma força e legitimidade ao conceito de “retorno”. Porém, nunca, antes, tinha firmado aqui raízes com intenções de para sempre. De 1947 a 1955, vivera aqui 8 anos, frequentando o curso de engenharia (com um ano de interrupção) e fazendo o serviço militar. Mas esses oito anos nunca tinham sido vistos, por mim, como uma implantação definitiva neste solo metropolitano: estava de passagem – uma passagem prolongada, mas passagem – sempre com o regresso às origens, na mira. Depois, em fins de 1976, passara por Lisboa, a caminho de Estocolmo. E, em fim de 1977, viera, de Estocolmo para Lisboa, a caminho de Londres. Portugal, resumindo, nunca fora poiso definitivo, embora com algumas raízes culturais e não só. Fora, sobretudo, lugar de trânsito, por vezes de duração prolongada. Só agora ia ser sítio de ficar. Mas, arrancados a uma Londres que nos fixara, nos ofuscara e nos seduzira, as feridas iam levar algum tempo a sarar. Voávamos, por assim dizer, com asas amarradas. Íamos para uma casa que teríamos que transformar em casa.
(Há, no entanto, uma correcção a fazer, ou antes, uma ênfase importante a indicar: se, materialmente, Portugal nunca fora, para mim, uma casa de se ficar nela, espiritual e culturalmente, não há dúvida de que nele profundamente me instalara: a língua portuguesa, a literatura portuguesa [Camões, Fernão Lopes, Fernão Mendes Pinto, António Vieira, Garrett, Camilo, Herculano, Eça de Queirós, Antero, António Nobre, Cesário, Pessoa, Sá-Carneiro, Pascoaes, Raul Brandão, Régio, Sérgio, Sena, Sophia, muitos outros] foram-me, desde muito cedo, casa de bom acolhimento e, mesmo, uma das minhas casas mais próximas e mais necessárias. Destes autores – e de outros, repito – me alimentei, com uma força de adesão, que mos tornou, para sempre, uma parte inalienável de mim próprio).(pp.15,16)

A erudição de Eugénio Lisboa ressalta em toda esta obra memorialística. Transpira, com assertivo recato, nas reflexões que levanta sobre o panorama literário e cultural de Portugal e do mundo. É um erudito que, com alguma  displicência  mas em  náusea iminente , se insurge contra  a ascensão e a apologia da mediocridade. A obra literária é secundarizada para dar lugar aos ganhadores de vendas. Não importa o valor intrínseco da obra ,  a expressão de Arte que representa, mas sim os cifrões que a mediatização da obra fazem crescer. Embrutecem-se mentes pela manipulação de uma falsa e pífia literatura .
"O êxito passou a ser a Estrela Polar desta sociedade. Tudo se mede pelo “êxito”. O êxito de vendas (de livros, por exemplo) faz passes magnéticos até aos novos-ricos boçais que enchem as universidades. José Rodrigues dos Santos, o Dan Brown do Tejo, vai, por convite, a universidades respeitáveis, onde debita banalidades redondas e troça de autores que vendem menos do que ele. E é recebido como se o seu “produto” fosse coisa de levar a sério: não tarda muito, será alvo de uma dissertação de mestrado ou, mesmo, upa-upa!
Os clássicos vão sendo arredados das escolas e substituídos pela algaraviada chula dos jornais: sempre está mais à la page. É mais moderno, é “do nosso tempo”, meu! Mesmo homens inteligentes e de alguma qualidade, mesmo filósofos, mesmo gente que se supunha de algum “panache” não resistem ao canto da sereia das “Olás!” e das “Gentes”. Paga-se reverencioso tributo a quem é muito conhecido apenas por ser muito conhecido. Os bárbaros, afinal, não estão à porta para o saque previsto, porque foram apanhados pela globalização e fazem como toda a gente: abandalham-se e drenam a sua energia numa bacanal sem estilo nem propósito. Cercadores e cercados fazem parte do mesmo apocalipse. Os “chineses” invadem mas dissolvem-se no meio da chicana dos invadidos. As civilizações caem sem luta. E não há; à vista, civilização que substitua outra civilização.
Roger Martin du Gard – que Régio, muito injustamente “pretendia” não admirar – e André Gide, seu grande amigo, experimentaram -  e sobre isso escreveram -  isto mesmo, este sentir que o mundo em que, no final da vida, se encontravam a viver , já não era o deles. (Passo a traduzir:) “O meu tempo passou, estou a sobreviver-lhe. Assisto de longe à renovação, como espectador afastado e atento”, escrevia o autor de Les Thibault, no seu Journal, em 1944. Para eles (Martin du Gard e Gide) parte importante dos seus últimos anos passaram-nos no meio do grande e devastador conflito que foi a 2ª guerra mundial, com a França ocupada pelo inimigo. Depois deste sismo, nada ficaria na mesma. Num admirável artigo dedicado às duas obras-testamento de Gide e de Martin du Gard, respectivamente, Thésée e Maumort, André Alessandri escreve (eu traduzo): “Desmorona-se todo o mundo no qual eles acreditavam, no qual o seu gosto da independência e a sua paixão pelo individualismo se movimentavam à vontade.  A Segunda Guerra Mundial marca, para eles, o fim de todo um estado de coisas, de toda uma cultura, de que eles terão sido, de alguma maneira, os últimos representantes e que poderemos chamar humanista, no duplo sentido das humanidades da Renascença e do humanismo do século XIX. (…)  Ao ler Jean-Paul Sartre e os autores da nova geração, [Martin du Gard] experimenta, cada vez mais, a impressão de ser um anacronismo.”
De há um tempo a esta parte, tenho vindo a sentir o mesmo. E não foi preciso passar por uma guerra mundial. O que se passa por esse mundo fora, com a destruição de todo um tesouro arqueológico, por fanáticos religiosos de um certo “Islão”, sob a patética impotência de uma ONU-para-inglês-ver e de um mundo ocidental mais atento aos “mercados” do que aos verdadeiros valores – provoca, em mim, cada vez mais uma grande náusea de viver num mundo como este. A razão ou, antes, o uso dela é cada vez mais o apanágio de cada vez menos gente. Mesmo aqui, em Portugal, alguns “campeões” da desvalorização da razão – que qualificam estupidamente de “mito” – vão fazendo escola e afortunada clientela. No século XXI – no século XXI! – o fanático aderir a balelas coloridas e obviamente inverificáveis demonstra , de forma cristalina, que a humanidade, em média, progrediu, intelectualmente, muito pouco, da Idade Média para cá. (...)
Para que serviram, afinal, Sócrates, Descartes, Galileu, Newton, Voltaire, Goethe, Bertrand Russell e outros semelhantes? Para que serviu, ao longo dos séculos, o exercício esforçado da razão, que conseguiu, por um lado, colocar homens na Lua e sondar, de perto, outros planetas, mas não consegue, por outro, evitar o fanatismo, aquecido ao rubro, de religiões assassinas?
Com o aproximar da velhice, estas questões deixam de ser pura especulação sem dor e tornam-se carne dilacerada e espírito em agonia. A náusea, de que falava Sartre, instala-se, para ficar. O desconforto é enorme: o mundo à nossa volta torna-se intoleravelmente estranho, verdadeiramente, um reino estrangeiro. Sentimo-nos de saída."(pp190-192)
 
Momentos de intensa afectividade recheiam algumas das páginas deste V volume. Eugénio Lisboa fala da amizade. Evoca, com dor e carinho , os familiares e os amigos que foram desaparecendo:

Nalguns dos anos, sobre que passo sem aqui os registar, fui tendo mais perdas de amigos e familiares (…)“Da minha casa paterna e materna, já não resta ninguém: a tia Maria faleceu em Setembro de 1977.O meu pai faleceu em Joanesburgo, em 1976. A minha mãe foi-se, há seis anos. O meu irmão foi hoje. Estou eu agora, na primeira linha, sem ninguém a servir de escudo. Ça arrivera quand ça arrivera.(p.333)

E continua. Num discurso despido, límpido, mas fortemente emotivo e comovido, enumera, um a um , os amigos  que deram sabor aos dias.
Mas o melhor de tudo foi o convívio reatado com amigos de longa data. (p.333)
A todos convoca e requisita  para os expor  numa imensa galeria, organizada em torno da data do encontro, da data do conhecimento quando a soberana e gostosa  amizade se foi compondo. São os amigos dos tempos de Lourenço Marques e os novos amigos do regresso a Portugal, sem esquecer os que ficaram em Inglaterra e espalhados pelo mundo.

A amizade afaga-nos vários territórios: o sentido de segurança e de pertença, o grão e o gosto da conversa, o dar e receber, sei lá! De tudo isto até talvez não fosse o menos importante o prazer que nos traz a conversa que recheia o convívio. Dizia Somerset Maugham, esse encantador de serpentes, por via das suas inesquecíveis “short stories”, tão bem observadas, arquitectadas e contadas: “A conversa é um dos maiores prazeres da vida. Mas precisa de lazer.” (p.335)

Num balanço modesto, Eugénio Lisboa recorda a sua produção literária durante a época abarcada por este tomo das suas memórias. Um balanço impreciso porque não inclui as diferentes e ricas intervenções em eventos literários ou culturais; as  clarividentes recensões críticas; os preciosos prefácios a obras literárias; o raciocínio claro , a informação ímpar e esclarecedora, o carinho e o investimento emocional  em muita produção escrita de cariz diverso, nomeadamente epistolar; e também  o pensamento,  as ideias, vertidas em entrevistas que compõem documentos valiosos para compreensão futura do sec. XX e XXI.
Durante estes 20 anos, desde a minha saída de Londres, publiquei onze livros de que me não envergonho e centenas de artigos, dos quais, bem mais de uma centena e meia ainda não foi recolhida em livro. Dos onze livros, um foi de poesia científico-filosófica, outros foram de ensaios e três, de memórias. As memórias, como se pode ver pelas páginas do meu diário, que nelas transcrevo, foram longamente sonhadas, meditadas e estão a ser, finalmente, consumadas.
Assim se foram escoando os anos, cujos sobressaltos fui registando, com alguma irregularidade e não poucas lacunas, no meu diário, que um dia será publicado na íntegra. Vou agora fechar este quinto volume com mais algumas transcrições, colhidas um pouco ao acaso do meu apetite, no meu errático mas encorpado “jornal”.
Penso publicar, no próximo ano, se ainda por cá andar, o registo das minhas muitas e variadas viagens feitas durante este período ente 1995 e 2015, as quais não encontraram aqui espaço onde se encaixassem. (p.343)

Eugénio Lisboa é a referência do saber , do engenho , do labor. A sua obra  tem a incondicional e ilimitada  dimensão de uma genialidade que se mantém criativa, operante  apesar do fluir  imparável do tempo.
Em 25.5.2011 , dia do seu aniversário , registava no Diário: Oitenta e um anos. Nunca, mas nunca, imaginei viver tanto tempo. Mas, por outro lado, nunca, em época alguma, pensei – acreditei – estar a aproximar-me do fim. Mesmo agora, a cabeça diz-me que não posso ter, à minha frente, muitos anos de vida. O resto de mim não sente o mesmo. On va voir ce qu’on va voir. (p.328)
Eugénio Lisboa
Em 2015, aos 85 anos,  mantém a disciplina de um sábio que não espera os aplausos para continuar a erigir um assombroso  legado , feito de espanto em espanto, para  nosso desassombro e fascínio. Um legado que desafia quem tenta resistir às teias  asfixiantes  e castradoras   lançadas pelos grandes porteiros  da futilidade, da mediocridade.
Eugénio Lisboa escreve as páginas mais belas   de uma  vida que qualquer cidadão do mundo poderia ter vivido. Mas ninguém a viveu como ele. Apenas ele, Eugénio Lisboa, a viveu de um modo singular. Todavia, permite a qualquer um experimentar um dos maiores prazeres literários  na leitura dessas páginas escrevividas.
Desvendá- las. Lê-las é o desafio que se propõe a cada um.  Aceitá-lo é ter a certeza de se ficar mais rico.
“Usamos os livros  como espelhos , olhando para dentro deles,  apenas para nos  descobrirmo-nos  a nós mesmos “- afirmou o perspicaz  ensaísta norte-americano, Joseph Epstein.
Com a leitura destas Memórias , descobre-se  quão importante é dar sentido a uma vida para que ela tenha um  significado perene  e aferível por qualquer geração. É a melhor lição de vida que se pode oferecer. Assim o  fez Eugénio Lisboa.
Acta est Fabula!

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