quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O verso foi um canto


“[...] quando lemos versos que são realmente admiráveis, realmente bons, temos a tendência para o fazer em voz alta. Um verso bom não permite ser lido em voz baixa, ou em silêncio. Se pudermos fazê-lo, não é um verso válido: o verso exige ser pronunciado. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto.”Jorge Luis Borges

Não queiras vê-lo,
Nem perguntes o que eu fiz
Quando há pouco fui olhar-me
Depois de falar contigo
E em que chorei de saudade!
Quebrei-o porque não quero
Aceitar a realidade!

Não digas, — não vás supor
Que foi uma cobardia,
Ou nervos, ou pessimismo,
Ou uma simples fantasia!...

Não, amor: o nosso drama
— O meu!, tem essa tragédia
Da consciência que eu ponho
Sem querer, sem a chamar,
Para ouvir o que eu digo
E para ver o que eu faço...

Sou o rastro de um sorriso,
Um gesto do teu cansaço...
Sou a música perdida
De um lamento que foi alma
Na letra de uma cantiga
Cantada por um mendigo
Numa estrada solitária
Onde não passa ninguém!

Quebrei-o e fiz muito bem.

Quebrei-o como quem parte
A vida que idealizou:

— Não posso ver-me qual fui,
Não quero ver-me qual sou.
António Botto, Curiosidades Estéticas (1924) poema 24 ,in "Canções e Outros Poemas", Ed. Quasi, 2008

Mãe!

Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!
Almada Negreiros, in " A Invenção do Dia Claro", 1921, Olisipo, Guimarães

Quatro coisas são precisas

Quatro coisas são precisas 
Ao amor para durar:
Firmeza, galantaria,
Ter pena, saber chorar.

Ó mar, dá-me uma moreia!
Ó silva, dá-me uma amora!
Ó meu amor, dá-me a vida!
Que a morte não se demora...

Bate, coração de ferro,
O maior que houve em mulher!
Ama contra tudo e todos,
E seja o que Deus quiser...

Quando a flor da faia abriu
Passámos rente do muro.
«Juras que és minha?» disse eu;
E tu disseste-me: «Juro!»

Quando morrermos, meu Deus,
Faz pão co ela e comigo;
Pàdeja os bons namorados
Como um punhado de trigo!
Vitorino Nemésio, in " Festa Redonda", Livraria Bertrand, 1950

1 comentário:

  1. Quatro poetas!... Nenhum deles necessita de qualquer comentário, que seria insípido e redundante. Lê-los, através destes poemas, é um privilégio. Dir-me-ão... E Borges? Tudo na oralidade, como na escrita de Borges é Poesia.

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