segunda-feira, 30 de setembro de 2024

No último dia de Setembro

III – O tempo dos afectos
  
“De pequeno não me lembro de mim, mas lembro-me dum ser extasiado, que abria os olhos atónitos para o mundo, todo frenesi e paixão...”
Raul Brandão,   Memórias

(...) A minha família completou-se definitivamente, com o nascimento do meu irmão mais novo.  Nasceu em Setembro, no último dia de férias, na praia  onde passávamos férias.
Nesse ano, regressámos mais tarde à quinta. Acabámos por ter férias prolongadas. Recordo perfeitamente este nascimento, embora ele tenha nascido durante a noite. Sei que acordei e vi uma das salas iluminada. Curiosa e inquieta, resolvi ir investigar o que se passava.
Na sala, estavam a minha tia Chi, irmã de meu pai,  e a sobrinha mais velha, a Lai, filha do meu tio Eduardo, um dos irmãos de meu pai e meu padrinho. Na minha cabeça, tanta gente acordada, foi uma confusão , embora eu nunca acordasse  durante a noite. Dormia encantada a noite inteira, como convinha a uma criança feliz.
Ao verem-me, meia estremunhada, esfregando os olhos devido ao brilho agressor das luzes,  levantaram-se e vieram buscar-me.  Então, com muito carinho, e naquele jeito, que os adultos compõem para darem as notícias às crianças, informaram-me do nascimento do meu irmão. Não sei bem o que senti. Dizem que bati palmas e que logo me pediram para não fazer barulho para ele não acordar.
Fui pé ante pé, em procissão, com algumas recomendações  até ao quarto dos meus pais. A minha mãe estava deitada. Olhava-me e acenava-me para que me aproximasse. Num bercinho, junto dela, lá estava o meu irmão. Lindo, de rosto redondinho, parecia um daqueles bonecos que o meu pai nos trazia de Espanha. Fiquei muito quietinha junto às grades a observá-lo. Ele dormia e dormia.
Naquele momento, senti-me muito importante: era a primeira de todos a conhecer o nosso novo irmão. E não sei por que razão fiquei convencida de que ele sabia dessa proeza.  Não é que acordou passados alguns segundos e ,  simulando  olhar para mim,   lançou-me  aquele  doce sorriso que me cativaria para sempre . (Ainda hoje, o meu irmão mais novo tem um sorriso doce.)
Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi", pp. 27, 28

1 comentário: