segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Notas de Viagem


 
Notas de Viagem
por Eugénio Lisboa
 
Viajar é quase como conversar com
homens de outros séculos.
    Descartes
 
"Em 1989 e, depois, até à minha saída de Londres, em 1995, viajei muito, quase sempre “em serviço”, isto é, não em liberdade de turista, que deambula sem programa.
Viajar não é necessariamente um ganho. Pode até ser um desperdício, uma futilidade, uma falsa aprendizagem, uma chatice. O filósofo americano Henry David Thoreau avisava que “não vale a pena dar a volta ao mundo, para contar o número de gatos que há em Zanzibar.” E um outro senhor, Emile Ganest, escreveu esta coisa imortal e já citada um milhão de vezes pelos que se chatearam em viagem: “Um turista é um fulano que faz milhares de milhas de automóvel, para se fazer fotografar à frente do carro.” Eu felicito-me por não ser esta espécie de viajante. Andei por todo o mundo e tirei disso prazer fundo e vasto proveito. Vi cidades, campos  (“eram campos, campos, campos…”, diz o Manuel da Fonseca, algures, num poema seu…), montanhas, praias. Sobretudo, cidades: é onde gosto de ir porque é onde estão as coisas de que gosto: teatros, cinemas, galerias, museus, salas de concerto, livros. A Rose Macauley, que andou por Portugal, observava: “A grande e recorrente questão no que toca o estrangeiro é: vale a pena ir lá?” A resposta que eu dou, para quase todas as minhas viagens, é: “Sim, valeu a pena.” (Tive a sorte de nunca ter ido à Albânia…)
Em 1989, estive em Zurique, em Lisboa, em Portalegre, em Nápoles e no Maputo. Transcrevo algumas páginas dos meus apontamentos diários, relativos a estas viagens.
Zurique
ZURIQUE
 
28.1.89 – Desde o dia 26, em Zurique. Instalado nos Arquivos de Thomas Mann, que ontem de manhã percorri – não sem emoção. Neste mesmo edifício, esteve Goethe que, mal aqui chegou, dizem, abriu as janelas.. Livros e manuscritos do “mágico”. Cartas, caricaturas. A sua secretária e uma das suas cadeiras. Tudo legado a Zurique, última etapa do percurso  do autor de Tonio Kröger – obra que tanto perturbou e iluminou a minha adolescência.
Ontem, dois seminários sobre Régio, na Universidade. Alunos atentos, estimulados e interessantes – num excelente português. Os seminários interessaram-lhes vivamente – não se trata de “wishful thinking”. Vieram dizer-me, no fim, que tinham ficado impressionados com tanta clareza e com a riqueza dos pontos de vista. Tentar ver claro é um dos meus objectivos. Citei-lhes Wittgenstein: o que não se consegue dizer com clareza não merece ser dito.
Zurique tem “charme”. Mas é uma terra para gente com dinheiro. Que conforto! Até dos eléctricos se pode dizer que são de luxo.
Ontem à noite, convidado por um casal suíço, jantei com eles, na companhia da leitora (Maria Isabel Ravara, excelente promotora de cultura portuguesa and a very nice person) e outro casal português residente na Suíça. Restaurante magnífico, acolhedor, outrora frequentado pelo escritor suíço Gottfried Keller. Contaram-me, dele, uma história saborosa. Keller bebia o seu bocado (o que o não impediu de se tornar um clássico) e era, ao tempo, uma figura conhecidíssima, em Zurique. Uma noite, um bocadinho “tocado”, a caminho de casa, dirigiu-se a um polícia e perguntou-lhe: “Sabe dizer-me onde fica a casa de Gottfried Keller?” O polícia olhou para ele, perplexo, e exclamou: “Mas o Senhor é Gottfried Keller…” Resposta do escritor: “Disso, ainda me lembro. Do que não me lembro é do sítio onde fica a minha casa…”
Visita à exposição de Egon Schiele, na Kunsthaus. Se a hecatombe da Europa se não tivesse dado em 1914, teria sido mal empregada tanta profecia de fim iminente. O nosso apocalipse está ali todo, previsto para quem queira servir-se. (…)
Lembro-me de o Mário Botas me dizer, em Londres, que admirava muito o Egon Schiele. Percebe-se porquê: a pintura do Botas deve imenso à do Schiele. De ambos se exala, em vida, uma podridão de morte. Os casais de Schiele não fazem amor: apodrecem abraçados, com um ar de espanto mitigado.
Lisboa
LISBOA
 
5.2.89 – Na passada semana, no regresso de Zurique, 3 dias em Lisboa. A minha visita coincidiu com o falecimento do Fernando Namora. Era para ir vê-lo na 2ª feira à tarde (dia 30), mas, por inviabilidade da Zita, marquei para o fim da tarde de terça feira. Já não foi possível porque morreu nesse dia, ao meio dia e quarenta. Isto é, já não o vi com vida. De certo modo, ainda bem. De Dezembro para cá, a devastação física deve ter sido considerável. (…) Fui à Basílica da Estrela, na terça feira, por volta das seis: ali se encontrava o caixão, aberto, suficientemente alto, para não se ver o morto. A Zita perguntou-me: “Quer vê-lo?”, ao que respondi, prontamente: “Não.” Ela percebeu e aceitou.
Os nossos jornalistas são ou autênticos pulhas ou irremediavelmente estúpidos. Foram pedir, of all people, ao Vergílio Ferreira, um depoimento. Depois de tudo quanto, entre ele e o Namora, se passou, não podiam ter escolhido pior. Aliás, o depoimento do Vergílio Ferreira, no que respeita ao que o futuro dirá da obra do companheiro do neo-realismo, é um monumento de perfídia.
Ao chegar a Londres, telefonema do Telegraph, a pedirem-me um obituário. Tentaram, primeiro, o Hélder Macedo, que me passou a bola. Para ele, o Namora não bebia do fino. Marxismo, sim, mas devagar: Vasco Gonçalves com perdizes e champagne. (…) É curioso o desprezo dos nossos intelectuais de esquerda pelos escritores de esquerda, que o povo ama e venera! No Ferreira de Castro, no Redol, no Namora [e, mesmo, um bocado, no Torga]  - é malhar, sem piedade! Falta-lhes “chic”, um ingrediente obrigatório, como se sabe, da esquerda exigente… (…) 
Em Lisboa, fui ao Nacional ver o Fausto, do Pessoa. Tirando o cenário do Lagarto (notável), o resto é uma estopada monumental, que o Estado vai mandar a Madrid e quereria levar a Edimburgo (os deuses não permitam). O Ricardo Pais é um bluff considerável, mas muito apaparicado. Das suas encenações, retenho sempre – e sobretudo – a impressão de um incomensurável arbitrário. (…)
Vou lendo Camilo e coisas sobre Camilo, com vista à redacção de uma “entrada” para o meu Dicionário. Fiquei com quase todos os peixes graúdos: Camilo, Antero, Fialho, Pascoaes, Pessoa, Cortesão… Mas também com alguns menores, que me sabe bem fazer: Augusto de Castro, Júlio Dantas, José Duro, etc. Tudo gente em quem o Vergílio Ferreira não pegaria, nem com pinças: para ele, nada abaixo de Ésquilo ou Dante. Cada um mede-se com quem julga que pode! (Mas ele pegou no Sartre, convencido de que era peixe graúdo…)
O Vasco Pulido Valente e outros profetas do nosso mundinho cultural especializam-se numa espécie de estilo apocalíptico: passam por cima das coisas, deixando tudo incinerado. O assalto é tão brutal e tão demolidor, que todo o mundo se encolhe. E aquilo, como faz estragos e ruído, passa, aos olhos estarrecidos do lusíada superficial e papalvo, por inteligência. É, pelo menos, de momento, a inteligência que está de serviço. Como diz não sei quem, “wrong but strong”.
 
PORTALEGRE
 
9.4.89 – (…) Saiu mais um livro meu, sobre o Régio [José Régio ou A Confissão Relutante], com algum ruído e televisão pelo meio (entrevista de meia hora). Fui a Portalegre para participar numa sessão dedicada ao Régio e inserida na “semana aberta” do Presidente Mário Soares. Lá li um poema que dediquei a Maria Barroso, inesquecível intérprete de Benilde. Em Lisboa houvera, como disse, lançamento do livro, na Livraria Barata, com televisão a registar. Tudo bem. Mas a crítica, como de costume, vai ser pouca ou nenhuma. Acabo de dar uma entrevista ao Europeu, a pretexto da saída do livro: lavagem do fígado, dizendo tudo com um desbocamento que não é de uso entre “diplomatas”… A entrevista não me vai, é claro, fazer nenhum bem. Mas, também, o mal que me pode fazer já não é nenhum. Maior desatenção do que aquela que me têm prestado já não é possível. Curiosamente – e por falar em desatenção – andei a ler, para fins prefaciais e de publicação, o Diário (manuscrito) do Régio. Ali se queixa, alongada e minuciosamente, da pifieza da crítica portuguesa, relativamente à sua obra, em especial à de ficcionista e, muito em particular, à Velha Casa. O que é um facto. Quem ler aquilo e se lembrar da glória de que o Régio, apesar de tudo desfrutou [desde relativamente cedo], vai falar de narcisismo e exagero. E, no entanto, ele tem razão. Em Portugal, a glória pode não significar uma atenção crítica continuada, meticulosa e profunda. As pessoas tornam-se famosas “by word of mouth”, sem que, muitas vezes, se cheguem a saber que o são ou por que o são.
O que o Régio demonstra, mais uma vez, no seu Diário – e de modo fulgurante e, por vezes, assustador – é o seu espantoso poder de penetração psicológica.
Outro ponto me surpreendeu: não notara, em nenhum outro ponto da sua obra, ou mesmo em conversa com ele, que a irresolução do problema religioso fosse tão profunda. Supusera que o seu cair para o agnosticismo fosse francamente mais decisivo. Foi-o, intelectualmente. Também sabia que, emotivamente, sempre se “consolara”, pensando em ou dirigindo-se a Deus. Mas não o supusera capaz  de se ajoelhar e rezar Padres-Nossos, como se esse ritual pudesse fazer sentido [sem o resto]… Não que isso o diminua: eu simplesmente não o imaginara. (Isto mostra como, até num homem superiormente inteligente, a inteligência pode vergar-se a forças obscuras!)
Outra coisa que aconteceu nestes últimos meses: o Congresso dos Escritores de Língua Portuguesa. Muito escritor não foi lá. Suponho que o Congresso, por qualquer razão bizantina, não era “in”. Qualquer coisa nesse género. Mas gostei de lá encontrar os meus compatriotas de Moçambique. Estragaram-me com mimos. Às vezes, sabe bem verificar que ter sido antipaticamente honesto, durante tantos anos que lá vivi, deu os seus frutos. Dizem-me que a minha Crónica dos Anos da Peste (dois volumes) é lá uma espécie de bíblia muito disputada. Talvez isso justifique, afinal, uma segunda edição… [2014: Essa segunda edição foi feita, em 1996, pela IN-CM].
Nápoles
NÁPOLES
 
24.9.89 – Nápoles. Ontem, visita a Herculano. Duas horas e meia entre fantasmas, entre opulências que foram e já não são. A vida corria normal, ao pé do mar. Dezoito horas depois, tudo eram ruínas e uma cidade fantasma para turistas-a-haver. 
(...)

1.5.89 – Ontem, visita a Amalfi. Costa deslumbrante, mesmo debaixo de chuva.
Tenho descansado, dormido e lido, como há muito não fazia. E um ou outro poema, sob o impacto de Herculano. Amanhã, se o tempo deixar, Pompeia.
 
Leio contos de Peter Ustinov. Releitura da Poética da Música, de Stravinsky, como preparação para as lições que vou dar em Lourenço Marques, no final do mês.
Hoje, de manhã, passeio pelas ruas de Portici. Os homens reúnem-se no meio das praças, de pé, aos grupos, falando e convivendo. Inconcebível, para ingleses, para quem o convívio é no “pub”, emborcando quantidades inimagináveis de cerveja.
Em Itália e, em especial, em Nápoles, como em Portugal, a mãe é fundamental: é mesmo o centro do universo. Nos países nórdicos, a mãe é descartável. É um obstáculo a remover – e a remover, cedo. 
Stravinsky diz mais ou menos isto, com que estou de acordo: as revoluções destroem. E a arte é, por definição, construção. Falar de arte revolucionária é um contra-senso. Inovação é uma coisa; a audácia é uma coisa; a revolução é outra.
 
3.5.89 – Ontem, visita a Pompeia. Ruínas, ruínas, ruínas. Turistas, turistas, turistas (sobretudo alemães: intensos, meticulosos, sem humor, barulhentos). Talvez por haver tanta gente, o passado não entrou em mim com a mesma força que se verificara em Herculano (nessa visita, estávamos apenas eu e a Antonieta). Excepto num ou noutro momento privilegiado, em que o espectro de uma cidade morta se projectou contra o plúmbeo vivo das colinas em volta. Aí, a magia voltou: uma magia fúnebre, a um tempo ameaçadora e atraente. (Um anfiteatro que já não funciona; um teatro onde já se não representa: imagem do imenso desperdício que é a aventura humana. Ter imaginado; ter construído; e ter abandonado.)
Hoje, irei ver Nápoles, mais de perto.
Em Nápoles, a manhã toda e parte da tarde. Almoço num restaurante junto ao Castelo de S. Elmo. Passeio pelas ruas, visita aos claustros da Igreja de Sta. Clara. Igreja de Jesus Novo. Livros: J. L. Borges, Giono (Voyage en Italie).

Nápoles: bela, a baía, as colinas, o Vesúvio. Pouca luz, hoje, apesar das gabarolices dos napolitanos.
Stendhal, falando da cidade: “c’est, sans comparaison, la plus belle ville de l’univers”. Os napolitanos estão de acordo com veemência. Alguns nunca daqui saem , a não ser   para breves férias, ainda mais ao sul (e sempre em Itália). Têm um paraíso que não trocam por aventuras incertas. Parecem ter pena da humanidade que vive fora de Nápoles. Goethe dizia que o napolitano está convencido de estar na posse do paraíso, tendo, portanto, uma triste ideia das terras mais ao norte: “Sempre neve, case di legno, gran ignoranza, ma danari assai” (“Sempre neve, casas de madeira, grande ignorância, mas dinheiro em abundância”).
Claude Roy, falando de Pompeia, sem solenidade: “La vulgarité romaine et l’Ange de la mort par les cendres et la cave. Ils allaient mourir, et buvaient, bâfraient, baisaient. Le rond des gobelets sur le comptoir du marchand de vin, qui n’a pas eu le temps de passer le torchon humide. Bonne humeur déjà italienne. Pompée c’est du Pagnol sur fond de chants fúnebres.” (“A vulgaridade romana e o Anjo da morte pelas cinzas e a cave. Iam morrer, e bebiam, empanzinavam, fornicavam. A marca circular do fundo dos copos no balcão do comerciante de vinhos, que não teve tempo de limpar com o esfregão húmido. Bom humor, já italiano. Pompeia é [Marcel] Pagnol sobre fundo de cantos fúnebres”). Isto  é escrito por um homem [Roy], com um diagnóstico de cancro, isto é, com morte pendente e à vista. Chapeau bas!
A comida: os napolitanos comem o dobro do que é necessário. Depois de uma pasta abundante (aperitivo), vai um bife suculento, acompanhado de incomensuráveis frituras. Sobremesa: que tal um bom e avultado gelado? A vida é uma alegria. Tudo rima com tudo e a mamã está ali para o que der e vier. Se, logo à noite, o Nápoles bater o Stutgard (em futebol), Deus existe e o universo está certinho.
De Nápoles, Flaubert guarda recordações diferentes (talvez Deus não exista assim tanto…) e mais picantes: “On m’a proposé des petites filles de dix ans, oui, monsieur, des enfants de bas âge, dont les nourrices sont sans doute en même temps les maquerelles. On m’a même proposé des mômes, Ô mon ami. Mais j’ai refusé.” (Carta a Camille Rogier, 11.3.1851).
Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula. Memórias - IV - Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo . Londres .( 1976-1995)", Editora Opera Omnia, Outubro de 2014,  pp.399-406

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