quarta-feira, 11 de setembro de 2024

As Ilhas Desconhecidas

 

Os olhos de Raul Brandão correram Portugal e Ilhas para pintá-los em magistrais telas de palavras. Deixou uma obra singular que só uma sensibilidade profunda é capaz de tecer, assim o comprova o excerto  do livro "As Ilhas desconhecidas ", que se apresenta.
Guilherme d'Oliveira Martins classifica-o  como uma obra-prima com os seguintes argumentos:   . 
 UMA OBRA - PRIMA
"No início das Memórias, Raul Brandão (1867-1930) define o seu modo de ver, a sua atitude: “Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra”. E isto plenamente se manifesta em As Ilhas Desconhecidas – Notas e Paisagens, sem sombra de dúvida uma das obras-primas da literatura de viagens em língua portuguesa, facilmente ombreando com os melhores clássicos. Com efeito, ainda hoje, é impossível compreender os Açores moderno, sem trilhar os passos e entender as apreciações do escritor nessa viagem realizada de junho a agosto de 1924, ao encontro de um mundo de magia e mistério. Ligam-se a natureza, as pessoas, as tradições e a história, e o que resulta é um panorama que naturalmente nos atrai, numa identificação em que nos tornamos participantes num extraordinário laboratório onde o povo açoriano se singulariza nas suas qualidades, através de um melting pot baseado numa rica simbiose entre natureza e sociedade.
Guilherme D’Oliveira Martins , em “A vida dos Livros”, e-cultura, Maio de 2018
As Ilhas Desconhecidas
Notas e Paisagens
por  Raul Brandão

                             AOS MEUS AMIGOS DOS AÇORES
EM TRÊS LINHAS
"Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha... Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nas leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!...
1926.
R.B. 
Lisboa

DE LISBOA AO CORVO
 8 de Junho, 1924
A BORDO DO «S. MIGUEL»
Enquanto a gente vê terra, não tira os olhos – não pode – dum resto de areal, dum ponto violeta que desmaia e acaba por desaparecer na crista duma vaga. Um ponto e acabou o mundo. O nosso mundo agora é outro. Durante um momento calamo-nos todos a bordo. A abóbada esbranquiçada fecha-se e encerra o disco azul onde espumas afloram nos redemoinhos que nos cercam: só uma gaivota teima em nos acompanhar descrevendo círculos por cima do navio. O ruído da hélice e a vasta desolação monótona... A vida a bordo dos vapores perdeu todo o interesse da antiga navegação à vela: é a vida a bordo do Hotel Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos navios com as vergas rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe àquele mastro real. o que vale é a agitação tremenda que não cessa, a água em vagalhões cada vez mais cinzentos e maiores, que as velhas de penante e plumas, sentadas de bombordo a estibordo, e que se atrevem com o oceano Atlântico, fazem o possível por amesquinhar. Mas vem a tarde, vem a noite nesta desolação amarga: o mar carrega-se e cospe-nos salpicos; paira no céu uma tinta que se entranha nas águas e as escurece. Ar lívido, água revolta e uma grandeza com que não posso arcar. Mais escuro... Já se não vê a ondulação perpétua; só se ouve o ruído da hélice incansável e o do esgoto rape-querape, como uma grande vassoura sobre as águas. Isto acaba por uma coisa negra e desmedida, por uma coisa ameaçadora e cheia de vozes, que o Hotel Francfort não consegue fazer esquecer com toda a sua banalidade. As estrelas nos ares agitados parecem outras estrelas, o céu outro céu e as forças desencadeadas do caos nunca as senti tão perto como hoje, nesta voz monótona que sai do negrume, nesta massa que nos mostra os dentes no alto das vagas entre as chapadas de tinta na imensa solidão desolada. Isto acaba pela treva absoluta. Está ali – está ali presente toda noite que não tem fim. Nós bem fingimos que não vemos a solidão trágica, o negrume trágico, mas eu tenho-o toda a noite ao pé de mim. Toda a noite esta coisa complicada que é um transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas. Todos os passageiros se fingem despreocupados. Só acolá, sob o castelo da proa (3ª classe), embrulhada num xale e sentada sobre um baú de lata, aquela mulher do povo sente como eu o terror sagrado do mar – e não o oculta. Olha petrificada. Aqui só há uma coisa a fazer, é a gente entregar-se... 
9 de Junho 
Mas hoje acordo, subo ao convés e tenho uma alegria frenética. Tudo isto, todo este azul, toda esta frescura, me entra em jorro pelos olhos dentro e pela alma dentro. A tinta azul não só ondula – estremece em pequenos grãos vivos, duma acção extraordinária, e o mundo sempre novo que me rodeia penetra-me do seu bafo e comunica-me a sua vida. Tomo posse do barco. Primeiro é a vigia que me encanta, aquela pupila redonda e azul que me fita logo que acordo e por onde o mar espreita para dentro do camarote. Depois é a pequena cela toda branca onde todas as coisas estão nos seus lugares medidos e calculados. A cabina reduz de propriedade e a sua beleza geométrica consiste em não ter de mais nem de menos: é o espaço exacto para a vida do passageiro ou do frade. Quando saio do camarote acho-me logo no convés. Este mundo muito limitado corre-se nalguns minutos. No castelo da proa, entre cabos embreados, ceroulas penduradas numa corda, e gente de terceira classe, é que a vida pitoresca do barco se revela melhor. Marinheiros preparam os cabrestantes para a descarga de amanhã, o carpinteiro de bordo prega tábuas e a tinta azul corre aos lados do vapor misturada de espuma à superfície. Olho o imediato na ponte dirigindo a manobra. Volto e acabo por me fixar durante alguns momentos na coberta pintada a ripolém, camada de branco, camada de verniz – cheira a alcatrão e a iodo – com os olhos presos na massa uniforme e fugidia, que se distingue do céu por ser mais condensada e mais azul. O panorama é imutável, metade céu e metade mar, e lá em baixo no costado o jorro do esgoto continua a desfazer-se em milhares de pérolas líquidas; é a alma do barco que resfolga.
Para compreender melhor este engenho, hotel e máquina ao mesmo tempo, tenho de descer ao interior e ver-lhe as tripas. Quando se abre a portinhola de ferro o quadro muda instantaneamente. Lá vai o hotel e o navio! – o que tenho diante de mim é um vasto espaço de paredes indecisas que a luz coada por papel oleoso ilumina – grande nave onde se agitam esqueletos esbranquiçados. Desço pela escada de caracol entre os cabeçorros de aço e engrenagens que mexem as pernas de aranhiços, braços que se movem por todos os lados, a escorrer óleo, fazendo gestos desajeitados. Todas estas peças que trabalham desordenadamente, subindo e descendo reluzentes de gordura, vão e vêm, remexem em conjunto para o mesmo fim. Os degraus da escada queimam, o ar quente irrespirável vibra, entrecortado às vezes dum resfolgar mais fundo que abafa os outros ruídos. Este complicado maquinismo ilumina o barco, transforma a água e faz mover as hélices. Complicado e delicado. – Deitado no beliche, diz o maquinista, eu sei perfeitamente qual é a máquina que se desarranja e não trabalha como deve. – Mas a alma do transporte é o fogo. É o fogo que faz girar os dois grandes veios de aço, que atravessam o barco em toda a sua extensão até às hélices. Entreabre-se uma pequena porta de ferro e recuo sufocado. A tragédia do navio que se transformou em máquina está aqui: para que o hotel viva, digira e se mova, é preciso que alguém sofra. Estou dentro dum grande poço de ferro onde a atmosfera é irrespirável. Duas paredes lisas de alto a baixo, cinzentas, e sem uma falha. A luz vem de cima, claridade duvidosa e suja, e quando aqueles homens, que se agitam lá dentro, abrem a porta da fornalha, um jorro vermelho ilumina, cresta e deslumbra. No chão ardem escórias, um fogueiro negro e curvado atira lá para dentro pazadas de carvão, e logo a portinhola bate com estrondo contra a alta parede de ferro. Fujo. Enquanto lá em cima todos nós vivemos no Hotel Francfort de Santa Justa, os outros cá em baixo vivem no Inferno.
10 de Junho
Ainda de noite, acordo, com o cheiro a terra. Salto do beliche e subo ao convés, que os marujos lavam a jorros de água. Luz cinzenta, luz doirada – transparência azul boiando cheia de cintilações ao longe, e depois mais luz viva que nasce e estremece diante da grande massa escura que sai do mar sob a magia do nascente: tenho diante de mim dois morros espessos, um mais próximo, recortando o negrume no céu doirado, e o outro ao fundo, todo roxo e picado de luzinhas como se lhe tivessem soprado faúlhas que se pegam e reluzem. A primeira luz ilumina a imobilidade cinzenta do mar, e, à medida que o vapor desfila na base do maciço negro e disforme, desdobram-se os planos e aparece intacto todo o pano de fundo. Um hálito azul... Mais claridade estremecendo – esta primeira luz delicada e viva, quando acorda a terra e acorda o mar com o céu todo doirado e virgem para as bandas do nascente e nos deita o bafo à cara. A frescura que nos trespassa torna-nos também etéreos. Para acolá está tudo ainda doirado e confundido, o morro maior e mais negro, e ao pé de mim cinzento e azul. Andam nas águas reflexos e espumas, e no fundo, donde o vapor saiu, ainda a luz do 56!, que se irisa nas águas, se mistura com a névoa e com um pouco de fumo da máquina que ficou suspenso e imóvel no ar. Há um momento único, um momento doirado, mar e céu doirado e casto, e outro em que tudo fica pálido e cinzento. Há um momento em que desejo que isto não mexa mais... Fundeamos e a Madeira abre-nos os braços, com a ponta do Garajau num extremo e a ponta da Cruz no outro extremo. Adivinho as casas, que por ora são fantasmas e descem lá do alto até à praia. Agora o tom cinzento desapareceu, domina o azul e o oiro, e na minha frente o grande anfiteatro verde dos montes ergue-se como um altar até ao céu. É uma serra a pique, é uma serra voluptuosa e verde que se oferece lânguida e verde. Ao meio um grande monte entreaberto; por trás a montanha enorme e escalvada. Algumas colinas vão terminar no farol e no forte sobre um penedo destacado e corroído.
Fico todo o dia a bordo, deslumbrado, contemplando a Madeira, a embeber-me no espectáculo da luz, que passa do cinzento ao azul, que ganha todos Os tons e se modifica a todos os momentos, até ao fim da tarde, em que o mar se torna diáfano e os montes transparentes, com uma grande nuvem pousada em cima. Vejo perder a cor, desfalecer, sumir-se a terra, que no escuro cheira cada vez mais a fruta e me inebria. Já o primeiro plano está roxo, o segundo é uma mancha enorme e indecisa, e o mar no poente arfa como um seio, ainda iluminado. À medida que o vapor se afasta, a montanha que me atrai parece mais negra e maior: – sobe, ergue-se e chega ao céu.
Largamos e vem a tarde, vem a noite, e o cair da noite no mar é um espectáculo trágico. Este movimento que não cessa, das ondas avançando em colunas cerradas, umas atrás das outras, sempre, põe-me diante do que mais temo no mundo – do universo como mistificação e acaso... Lá vão as cores – as tintas – o doirado... Sou aquele fragmento de tábua que as ondas levam sem destino, sempre no mesmo negrume, no mesmo movimento perpétuo e inútil... Não é só a ameaça, a grandeza da noite, do mar, das vozes; é outra coisa pior que se afirma – a tragédia do universo descarnada e posta a nu diante dos meus olhos. Com todas as suas complicações e o seu génio, as suas máquinas portentosas, com as suas ideias e a arquitectura que tem erguido  e que chega aos céus – o homem, nestes momentos, sente que vale tanto como um cisco para esta coisa imensa e negra, para esta agitação incessante. Isto é pior que implacável, é pior que ameaçador: – não nos conhece. De noite todo o barco geme. De quando em quando uma onda maior bate no costado – pah! ... Sinto-a contra mim, deitado no beliche, com um lamento que se prolonga e me enche de pavor. Pah! ... – é o negrume, o mar imenso e desconhecido, todo o mar. E o ah arrasta-se e desgrenha-se na noite, no vento, na profundidade. ...Uma manhã transparente que hesita e flutua como um ser delicado, envolta em neblinas. Céu dum azul-pálido, forrado no horizonte de nuvenzinhas claras. Mar desmaiado, que não foi feito para se ver mas para respirar, esparso, quieto e fundido. Ao fundo uma mancha indecisa, envolta em névoa, que logo se resolve em poeira esbranquiçada... Há nas coisas uma hesitação, uma mescla, um abrir, como no princípio do mundo quando a água, a luz e a terra não estavam ainda separadas pela mão de Deus. A tinta é muito pouca – quase nada de cor e de sonho. Santa Maria desvenda-se entre as névoas: um monte alongado com uma parte mais baixa e a Vila do Porto saliente, tudo azul emergindo do azul. À medida que o S. Miguel se aproxima, reparo que a ilha é doirada, com sombras a escorrer pelos montes abaixo. Alguns riscos mais carregados, algumas manchas roxas que pouco a pouco se acentuam. Fico perplexo e só quando chegamos quase à fala da povoação, Vila do Porto, é que compreendo: a ilha é um torresmo de pedra negra, de areia negra, como se tivesse passado pelo fogo do Inferno, mas o torresmo está coberto de giesta rasteira e doirada, de giesta em flor, que cheira a uma légua de distância.
Subo por um caminho entre figueiras-do-diabo e solteiras, como se chamam aqui as sardinheiras, que crescem por todos os lados. Colinas, campos de pastagem, e ao longe um pico mais alto donde se descobre toda a ilha. Povoação de duas ou três ruas e casinhas, com a igreja, a ossada dum convento e o solar humilde de Gonçalo Velho. É isolado e triste – mas pedras, campos e furnas estão cheios de asas e de gritos: os escarnentos, negros como melros, passam no ar com o biscato no bico, e a babosa enche este negrume cinzelado de oiro e de perfume. Há momentos em que se encobre o Sol e o torresmo sai mais negro do mar: só fica o cheiro que impregna a terra e o céu.
É aqui que os barcos de três velas vêm buscar o barro em bolas, para S. Miguel fabricar grandes talhas, canecas porosas, vasilhas de todas as formas e feitios. Santa Maria não só fornece os oleiros dos Açores mas fabrica também cântaros, púcaros, caboucos, numa ruazinha escondida da vila. Processos primitivos: o homem numa oficina escura prepara e amassa o barro, a que outros Vão lentamente dando feitio no engenho. Trabalha a mão e o pé: o pé na grande roda que faz girar o prato com o barro ainda informe, e a mão dando-lhe a forma.
Que importa que isto seja um ermo onde até às vezes a água falta, sendo preciso para matar a sede trazê-la em navios de S. Miguel? Aqui se vive e aqui se morre. E devo dizer que desta ilha silvestre duas coisas ficarão para sempre na minha memória: o púcaro de barro poroso que torna a água fresquíssima, e o cheiro a giesta que a embalsama. Fiquei-a conhecendo para o resto da minha vida pela ilha que cheira bem...
À tarde, pelas sete horas, temos outra ilha à vista, sob grossas nuvens amontoadas, tudo da mesma cor, nuvens e ilha. Ao largo um pôr do Sol dramático enche o horizonte, doira os bordos dos cerros e irrompe pelos interstícios caindo em feixes sobre as águas. Assisto ao desenlace deste drama mudo e extraordinário, quando ao mesmo tempo o ar se incendeia cor de cobre e na vasta solidão de estanho correm jorros de oiro fundido. Já no horizonte outra ilha se estende em biombo, baixa e enorme, toda da mesma cor. Mas o que me interessa é a luz que mudou, é o céu que mudou – a luz delicada dos Açores, o céu dos Açores carregado de humidade e forrado de nuvens que um pintor imitaria na tela com pequenos toques horizontais cor de chumbo, carregando-os e amontoando-os cada vez mais até à linha do horizonte. E é esta luz que me acompanha e nunca mais me larga, a mim que vivo de luz límpida, e que acordo todas as manhãs com o pensamento na luz... Ilumina S. Miguel (13 de Junho), coada pelo céu pardo, e Ponta Delgada estendida à beira da doca, com um grande monte violeta ao lado. Ilumina na madrugada de 15 a Terceira, ao pé dum pinheiral e duma fortaleza, e atabafa-me quase até ao fim da viagem – céu inalterável, névoa que se chama alforra, luz discreta em que as coisas perdem a importância e o relevo.
As manhãs são extraordinárias. Tons neutros – quase o mesmo tom apagado – névoas esbranquiçadas e moles... Neste ar parado o próprio som amortece: envolve o mundo uma pasta de algodão em rama, um vapor incorpóreo que apaga as cores, imobiliza a paisagem e faz do mar atmosfera. É um eterno dia de finados, recolhido e atento, em que o vento pára e não sopra. Branco e quieto, branco e mole, branco magoado, claridade tão íntima que eu próprio desfaleço. E ao mesmo tempo esta luz, que sais de pequeninas nuvens amontoadas no céu, revela-nos aspectos delicados em que nunca reparámos: se o céu está velado, o mar deixa de ter peso e estanha-se até ao horizonte enublado e fundido; o branco desfaz-se na água como no ar e basta um fio de azul coar-se pelas nuvens para que a vida exausta sorria com receio, num sorriso amortecido que logo a transforma e logo a medo desaparece. Certos aspectos da terra ficam sonâmbulos, outros fantasmagóricos e prestes a evaporarem-se nos ares ao primeiro bafo. ...
Pouco e pouco a luz insinua-se. Mais tons esbranquiçados e cinzentos, sombras pálidas com reflexos molhados. No céu há um fundo de oiro ténue misturado ao branco, pasmado e triste, e que mal se distingue. As coisas acentuam se um pouco – mas a esta luz delicada a mudança faz-se também duma maneira delicada. Todo o movimento é nas pontas dos pés. O branco-gris transe de roxo, deixando as sombras desmaiadas; o branco-branco amarelece e logo se queda arrependido, o azul distingue um pouco sobre o ar, e lá para os fundos os verdes diluídos estremecem duvidosos da cor que hão-de tomar – azul ou roxo... É um momento único em que no branco uniforme se geram novas tintas quase imateriais e o céu se defende e concentra todo em branco, com uma série de cinzentos em que o oiro tenta penetrar. Então a paisagem e até a vida parecem fluídas e abstractas: o panorama largo, a cinzento e branco com manchas leves derretidas, flutua no mar infinito e cinzento, emborralhado e cinzento...
Abstracção e sonho. Porque neste amanhecer perpetuo a gente sonha mais do que vê. Divaga. Pouco e pouco a paisagem fica azulada – dum azul desmaiado, dum azul com água. Divaga toda azul num mundo de sombras brancas, de hálitos tépidos, de penas que esvoaçam.. É alguma coisa de perfeito, de incriado e sereno...
O que eu gostava de dar esta vida que não acaba por desvendar-se e que por isso mesmo possui um  encanto superior – todo em branco e cinzento amortecidos! E ainda os efeitos são o menos – a vida íntima desta luz extraordinária é que é tudo. Tão pouco! tão imaterial! tão exalação e alma! Só abstracção e receio... É outro mundo, que nos deixa perplexos. É outro mundo, em que os sentimentos devem ser mais amortecidos – povoados por fantasmas que sorriem e desaparecem. Há pedaços de mar virginais: não se sabe se de espuma se de cinza – e pedaços de terra misteriosos. Um mundo só branco e cinzento, um mundo baço, que não pode revelar-se, irresoluto– e cujo encanto se comunica mais pela alma do que pela vista...
O navio fundeia na Terceira, num vasto semicírculo, fechado ao norte pelo monte Brasil e do outro lado pela ilha das Cabras. Está um calor surdo. Demoro-me a olhar a cidade, donde irrompe uma pirâmide amarela, o monumento a D. Pedro IV. Num plano mais afastado alguns montes escalvados. É Braga, Braga com mais regularidade nas ruas, mais cai nas paredes, e que lhe deu na veneta para ser praia, estendendo até à beira-mar os seus conventos e as suas igrejas pesadas, com um forte em cada extremidade. Na rua andam mulheres de capote negro, apertado na cinta e formando concha sobre a cabeça, e raparigas do povo com o lenço atado só com um nó e deixando ver as madeixas: – são as solteiras; as casadas escondem todo o cabelo e atam duas vezes o lenço no pescoço. Foi aqui que vi as mais lindas figuras de mulheres dos Açores – tipos peninsulares, de cabelos negros e olhos negros retintos.
Tomei por uma estradinha ao acaso, onde florescem, nascendo nos muros, as chagas e os alfinetes cor-de-rosa. Atravessei a Urze tão branquinha, os caminhos humildes de Figueiras Pretas e Bico de Cabo Verde, recolhida entre pinhais e acácias, a que chamam pau-de-toda-a-obra. Fui seguindo entre sarças da ilha. No caminho uma carreada – bois luzidios com ponteiras doiradas nos chifres e homens desempenados e fortes à frente dos carros. Entro no quintal dum amigo. Gostei sempre de me perder nas quintas e nos jardins entre quadros rústicos de lavoura. Sentei-me num pomar de deliciosas nêsperas amarelas e maduras, a vermelha mais ácida, e a branca mais doce e que se desfaz em sumo na boca. A vegetação reluz envernizada de novo. Espreitei o recanto abrigado da vinha baixa, que produz com duas castas, a Isabela e o Vermelho, o vinho de cheiro e o branco que tem fama. E depois passei por o jardim silencioso e húmido, pelas ruas altas de faias de Holanda. E neste ar tépido, nesta luz difusa, apareceram-me as japoneiras gigantescas em pirâmide, o goifão branco com a flor amarela ou leitosa abrindo ao meio das folhas estendidas à superfície das águas verdes e podres das bacias; a aromática espirradeira, que deixa cair as pétalas vermelhas, uma a uma, num canteiro de relva, desfalecida como se a sangrassem. Isto cresce diante dos meus olhos numa atmosfera quente e numa luz tão verde que chega a dominar o cinzento. Os jardins são sempre uma obra de arte, e quanto mais desordenados, mais belos. Devo até dizer que me encantam ainda mais que os jardins imponentes, onde a arquitectura se sobrepõe à natureza, e que mie infundem respeito – os quintais com couves e flores, onde me sinto mais à vontade. Acabo de descobrir agora, mesmo aqui à direita, uma horta. Sento-me na rua onde cresce a malva vidrada ao lado da salsa. Há por aí abóboras e flores, milho e hortenses e um banquinho de pedra onde se ouve .a água correr. É um pingo, mas enche-me de saudade... Só falta uma rapariga que se ponha a sorrir para a gente. Falta um vestido branco a aparecer e a desaparecer por trás dos laranjais. Nem vivalma. Tenho de subir lá cima, a este ponto da quinta dos Prazeres onde se descobre o mar e a terra. Vê-se ao longe S. Jorge e Pico, e mais perto as lavouras dum verde negro e satisfeito, e entre as casinhas brancas de S. Mateus a singular igreja erguida à Fome e à Miséria. Descobre-se a Terra Chã, e ao fundo a pesada lomba de Santa Bárbara. Despenham-se as verduras até ao mar. Saio devagarinho, para não acordar os grandes fetos senhoris, um arbusto todo vermelho que se chama cardeal e que olha para mim cheio de flores (e eu não sei o que lhe hei-de dizer) – devagarinho, para não perturbar este silêncio verde onde a gente tem a impressão de mergulhar em carne mole, aquecida numa atmosfera de estufa com os vidros embaciados. Sinto que me invade o torpor açoriano, e dizem-me que, quando vem o tempo de o incenso dar flor, toda a ilha fica tão perfumada que se não pode dormir. Ouve-se um gemido de volúpia (são os gérmenes que entreabrem) e o ar morno é uma carícia de pele de encontro à nossa pele e que pesa sobre o peito como um bloco.
Embarco com a mesma luz. Estranho-a e só mais tarde lhe acho o encanto. Dez, onze horas da manhã, e sempre o mesmo tom e a mesma claridade suave; a água, dum verde-escuro ao pé do morro, estremece em reflexos cinzentos para o largo, e a grande baía cinzenta confunde-se com o céu, que se não despega da grossa mancha enublada barrando todo o horizonte. Mas neste cinzento que parece uniforme reflecte-se o verde húmido do grande monte imóvel, tremulam outros verdes com reflexos metálicos e cores apagadas a que se mistura um pouco do azul que irrompe a custo das nuvens. Reparo melhor... Estes montes violetas até à ilha das Cabras, toda violeta, e que me seduzem tingidos de violeta no mar cinzento, saem dum líquido quase imaterial que é ar e céu. E estas cores um pouco tristes acabam por me deixar cismático... Vou sentindo melhor a luz dos Açores, a luz atenuada, os montes emborralhados, o ar atabafado e magnético, uma trovoada sempre suspensa, as ilhas com uma nuvem pegada nos altos e as mulheres encapuchadas. Tudo se harmoniza. É meio-dia. O azul quer ser azul, mas não o consegue, a terra deseja a luz, e a luz apenas se entreabre e desaparece; as águas fluidas, o horizonte vago arripiam-se, vão transformar-se a nossos olhos e quedam-se logo num receio... Silêncio. Uma cor que não chega a ser cor, que é resignação e saudade e que me obriga a falar mais baixinho...”
Raul Brandão
, in As Ilhas Desconhecidas, Quetzal Editora, pp.2-9

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