quarta-feira, 31 de julho de 2024

Venezuela

Retrato do tirano 

É próprio do tirano vir dizer
que a vítima da sua tirania
é que é culpada  de cometer
o mal que ele traz à sua agonia.
(...)
Eugénio Lisboa, soneto, modo de usar

A Venezuela tem preso  o olhar do mundo por causa de uma história inacabada e sempre reiniciada: a luta pela liberdade. Um país que   tem estado subjugado por um regime totalitário que não abdica do poder, asfixiando as vozes de todos aqueles que não cessam de o contestar. Simular eleições, em processo de falsa transparência, é a artimanha utilizada para manter a tirania vigente.
Nestes dias  , as ruas deste país enchem-se de gente que reclama os resultados de um acto eleitoral .  A falência das instituições é uma realidade que faz da Venezuela um país à deriva do arbítrio  de um só.
Como é bizarro e deveras confrangedor, existir um pais tão rico e  belo  onde a dignidade humana não é o valor mais importante para quem governa.
Eis um filme panorâmico deste país que sublinha a  sua grandiosidade paisagística. 
"Filmado pelo extremamente talentoso @EllisvanJason, enquanto caminhava pela selva venezuelana, durante duas semanas. A Venezuela e Angel Falls, a cascata mais alta do mundo,  nunca foram documentadas desta forma antes. Prepare-se para explodir a sua mente, avisa a Scenic Relaxation Film."

Mar, rio e céu

Mar, rio e céu
por Raúl Brandão 
"É que tudo, até as coisas, num dado momento, foram para mim seres de uma vida extraordinária; um ser esplêndido, o rio, a que me entrego dentro de quatro tábuas; o cabedelo cheio de mistério, onde ponho os pés com terror; o largo, o profundo mar, que me levou alguns dos meus, constante preocupação dessa gente e que de quando em quando os mata à minha vista. As figuras em sonhos tornam-se a debruçar para mim, estendendo-me outra vez as mãos... E é sonhando também que me recordo de certas coisas sem importância: do jeito que era preciso dar às portas manhosas, para as poder abrir, de uma expressão de que me separam léguas de esquecimento, de pequenos nadas que duram um segundo, um olhar ou um sorriso molhado de ternura. Acontece que às vezes acordo tendo diante de mim intacto um rosto consumido pela terra. Os meus mortos estão cada vez mais vivos. É saudade, mas não é só saudade. Isto vem de muito fundo. Os meus actos são guiados por mãos desaparecidas e minha convivência é com fantasmas. Este cheiro de alcatrão vou levá-lo nas narinas para a cova; esta paisagem – mar, rio e céu – entranhou-se-me na alma, não como paisagem mas como sentimento. Ressuscito as horas que perdi debruçado no velho muro e sinto o grão de pedra onde punha as mãos quando contemplava a engenhoca do meu vizinho António Luís."
Raúl Brandão, in Memórias, Aillaud Lisboa Bertrand

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Se eu soubesse...

MEMENTO MORI

Este mar não vai desaparecer.
O que vai desaparecer sou eu.
Este mar vai continuar a ser.
Deixar de vê-lo é destino meu.
 
Continuará a espelhar o sol,
que, de mim, para isso, não precisa.
Estender-se-á como vasto lençol
o mar que tem grandeza por divisa.
 
O mundo existia antes de mim,
porque há ser que convive com não ser.
Haverá mundo, depois do meu fim
 
e ser que ignora o meu não ser.
Está bem assim porque é natural,
embora pareça demencial.

                       
19.01.2023
Eugénio Lisboa

Sentir
 
Se eu soubesse sentir o que sinto,
se o que sinto fosse de se dizer,
se não fosse que, ao dizê-lo, minto,
a vida seria outro viver.
 
Porque sentimos mais do que sentimos
e muitíssimo mais do que dizemos.
Sentimos só o que consentimos
e do que sentimos pouco sabemos.
 
O que sinto é uma caverna escura,
onde se esconde o que se não diz:
se senti-lo já é uma loucura,
 
dizê-lo, só à custa de ardis.
Sentir está sempre além do que sentimos
e, deste, tantas vezes, nós fugimos.
                     11.01.2024
Eugénio Lisboa

domingo, 28 de julho de 2024

Ao Domingo Há Música


Qui n' a pas vu le jour  se lever sur la Seine
Ignore ce que  c' est que ce déchirement
Quand prise sur le fait la nuit qui se dément
Se  défend  se défait les yeux rouges obscène
Et Notre-Dame sort des eaux comme un amant.
   Louis Aragon, Le paysan de Paris chante


Paris será sempre uma das mais belas cidades da Europa. Quem a conhece sabe-lhe os encantos . O fascínio que exerce tem raízes profundas e de múltiplos desafios.
Há dois dias, 27 de Julho de 2024, mostrou-se ao mundo feérica da sua grandeza, a  estender-se garbosamente  no longo rio que margina bairros cheios de História, quase num alarde provocador e  altivo de um passado rico e marcante .
Foi a abertura dos Jogos Olímpicos. Paris  engalanou-se num grandioso espectáculo .
Como a festa já tinha sido iniciada, outros eventos já tinham ocorrido, tal como este que se apresenta. Um espectáculo musical  de pré-abertura , protagonizado por um talentoso cantor, Slimane,  que representou a França, no concurso europeu da canção.

Slimane, em  Live Symphonique,   na Basilique de St Denis, JO Paris 2024 (pré-ouverture).
 
E aquela que é considerada a  melhor interpretação  da década,  Céline Dion, em  "L'hymne à l'amour", na Tour Eiffel, a última canção  do espectáculo da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, JO PARIS 2024 .
 

sábado, 27 de julho de 2024

Ler ou não ler um romance daqueles !

A douta e sempre perspicaz visão dos acontecimentos faz parte da riqueza da obra que  Eugénio Lisboa nos legou. Há seis  anos, Eugénio Lisboa registou no seu Diário estas palavras que marcavam a actualidade educativa. O Ministério da Educação anunciara a retirada da grande obra de Eça de Queirós "Os Maias", do programa de Português do Ensino Secundário. A celeuma levantou-se e, mais tarde, o ME acabou pela não supressão  dessa obra queirosiana,  da lista de obras previstas para esse ciclo de ensino.

S. Pedro, 27.07.2018 – Grande celeuma à volta da iminente supressão de Os Maias, como leitura obrigatória, no secundário. A reacção negativa de muitos alunos à leitura deste enorme – e grande! – romance revela, sobretudo, uma grande ausência de bons hábitos de leitura. Um aluno habituado a ler não deixaria de se sentir empolgado pela leitura desta obra-prima.
Dou aqui a minha própria experiência com Eça de Queirós. Notar que eu me tornara, desde cedo, um bom leitor. Lia muito e lia com apetite. Mas tive, com Eça, um mau começo. Ainda muito novo, para aí com 11 anos, tentei ler o único Eça que havia na estante lá de casa: A Cidade e as Serras, num exemplar bastante desgastado. Ora este romance não era de todo indicado para um rapazinho de onze anos, que preferia, de longe, Emílio Salgari, Júlio Verne ou mesmo Júlio Dinis. A Cidade e as Serras afigurou-se-me, nessa altura, em bom e expedito português, uma verdadeira chatice. E esta rejeição ficou a marcar-me por muito tempo. Eça aborrecera-me… Li, depois, Herculano, Garrett, Júlio Dinis, Stendhal, Charlotte Bronte, Balzac, Voltaire, Dostoiewsky, Tolstoi, Turguenev e por aí fora. Mas nunca me passou pela cabeça voltar a Eça… Foi só, já com 20 anos, era eu, então, estudante de engenharia, que, encontrando-me retido em casa devido a um acidente de bicicleta, me resolvi a experimentar a leitura de Os Maias, numa edição em dois volumes, que adquirira antes, sem grande convicção. E era tal a minha desconfiança em relação ao que ia ler, que nem me dei ao cuidado de fazer uma leitura ortodoxa, a partir do começo do livro. Abri displicentemente o segundo volume e pus-me a lê-lo… e fui lendo, empolgadamente, até ao fim! Ali chegado, não me contive: peguei no 1º volume e li o romance todo – repetindo a leitura do 2º volume – do princípio ao fim, empolgado e surpreendido. Alguém fora capaz de escrever, em português, um romance daqueles! É desta espécie de deslumbramento que se vão privar todos aqueles que agora poderão já não ler Os Maias e que, provavelmente, nunca mais os lerão, no resto das suas vidas. Ficando marcados pela ideia de que o romance é “aborrecido”, o mais natural é que nunca voltem a ele. Como nunca voltarão a muita outra boa literatura, porque nunca chegaram a adquirir bons hábitos de leitura.
(Nota: além da tentativa de ler A Cidade e as Serras, eu tive, na minha adolescência, um outro encontro com Eça: a leitura do conto “José Matias”, que me intrigou e perturbou… Mas não foi suficiente para “apagar” a má impressão deixada por aquele romance…)"
Eugénio Lisboa, em verbete  inédito da obra diarística "Aperto Libro"

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Sobre o amor

Sobre o amor
por Ferreira Gullar
“Houve uma época em que eu pensava que as pessoas deviam ter um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo, o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma defesa intolerante contra os levianos e que refletia sem dúvida uma enorme insegurança de seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o passar dos anos a ideia foi abandonada, a vida revelou-me sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma.
Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de contornos imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento radical — falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode uma coisa ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a natureza do amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento, também às vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto núcleo de fogo.
O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por definição, anti-burguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o amor institucionalizado, disciplinado, integrado na sociedade. O casamento é um contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se sentem atraídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma coisa simples, mas não é, pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e deveres perante os homens e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar (ou a ambos), a simples assinatura do contrato já muda tudo. Com o casamento o amor sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o envolvia, para entrar nos trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que, adultos, abandonem a casa para fazer sua própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal. Mas, não radicalizemos: há exceções — e dessas exceções vive a nossa irrenunciável esperança
Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventura sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar adultério – o assim chamado -, que é quase sempre decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com fritas.
Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive, como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos. O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer.
A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se habitua à antiga banalidade. Foi Gogol, no Inspetor Geral quem captou a decepção desse despertar. O falso inspetor mergulhara na fascinante impostura que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado, trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor está para chegar. Ele se assusta: mas então está tudo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico Buarque: sofrendo normalmente.
Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda-roupa, a cómoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tudo impregnado da ausência do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objeto, e te fere, inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali esteja o sonho ainda, mas exatamente porque já não está: esteve. Sais para o trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia, tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias do jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ônibus, carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades. E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas, ocultar os objetos ou, pelo contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar­-se? Mais dia menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida vibrando outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a pensar: quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como outra qualquer.
E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa? E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas coisas… Na cama era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e pensar que quase morro!…
Isso dizes agora, comendo um bife com fritas diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com a vida. Ou não."
Ferreira Gullar, in A estranha vida banal”,  Editora José Olympio – 1989,

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A caminho...



Canção a Caminho do Céu
 
Foram montanhas? foram mares?
foram números...? – não sei.
Por muitas coisas singulares,
não te encontrei.
 
E te esperava, e te chamava,
e entre os caminhos me perdi.
Foi nuvem negra? maré brava?
E era por ti!
 
As mãos que trago, as mãos são estas.
Elas sozinhas te dirão
se vem de mortes ou de festas
meu coração.
 
Tal como sou, não te convido
a ires para onde eu for.
 
Tudo que tenho é haver sofrido
pelo meu sonho, alto e perdido,
– e o encantamento arrependido
do meu amor.
Cecília Meireles, in  Flor de poemas,  3ª ed., Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro,  1972, p. 93
Era…

Era o Oceano
Sem água, sem vaga
a acabar
o Mar do meu olhar.
 
Era o areal
Sem espuma, sem maresia
a fugir
a praia do meu dia.
 
Era o azul
Sem  traço, sem tom,
a perder
a cor do meu céu.
 
Era a chuva
Sem força, sem bátega
a abafar
o desenho do meu  corpo
 
Era o vento
Sem rumo , sem tino
a levar
o sonho do meu destino
 
Eras tu
Sem ti, sem mim
a apagar
o brilho da minha vida.
MJVS,  in "Dias da Poesia", 06.03.2015

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Otto René Castillo, poeta e guerreiro guatemalteco

Otto René Castillo
Otto René Castillo, poeta e revolucionário guatemalteco
Quem acede aos registos literários sobre Otto René Castillo depara-se com esta informação: "poeta y revolucionario guatemalteco. Murió asesinado por el ejército de su país el 19 de marzo de 1967 en la Sierra de las Minas."
Manoel de Andrade, poeta brasileiro, que tal como Otto Castillo, viveu a experiência do exílio na América Latina , escreveu um excelente artigo sobre este heróico poeta do qual transcreveremos alguns excertos. " O sonho e o martírio de um poeta" é o título do artigo que faz parte de um extenso livro, sobre as memórias da sua diáspora por um continente mergulhado no despotismo dos "tempos sujos" da ditadura, onde a luta também era feita pelos poetas guerrilheiros. Esse  livro ,"Nos rastros da utopia, uma memória crítica da América Latina, nos anos 70", tornou-se um importante  e valioso documento dessa época  , editado pela Escrituras Editora, em 2014. 


Intelectuais apolíticos

Um dia
os intelectuais
apolíticos
do meu país
serão interrogados
pelo homem
simples
do nosso povo.


Serão perguntados
sobre o que fizeram
quando
a pátria se apagava
lentamente,
como uma fogueira frágil,
pequena e só.

(...)
Ninguém lhes perguntará
sobre suas justificações
absurdas,
crescidas à sombra
de uma mentira rotunda.
Nesse dia virão
os homens simples.
Os que nunca couberam
nos livros e versos
dos intelectuais apolíticos,
mas que vinham todos os dias
trazer-lhes o leite e o pão,
os ovos e as tortilhas,
os que costuravam a roupa,
os que manejavam os carros,
cuidavam dos seus cães e jardins,
e para eles trabalhavam,
e perguntarão,
“Que fizestes quando os pobres
sofriam e neles se queimava,
gravemente, a ternura e a vida?”
Intelectuais apolíticos
do meu doce país,
nada podereis responder.
Um abutre de silêncio vos devorará
as entranhas.
Vos roerá a alma
vossa própria miséria.
E calareis,
envergonhados de vós próprios
Otto René Castillo
Sierra de las Minas, Guatemala

Otto René Castillo: O sonho e o martírio de um poeta
por Manoel de Andrade
"Em meados de 1969, um exilado político guatemalteco me contou, em Santiago do Chile, a incrível história de um poeta queimado vivo em seu país. Em fins de 1970, quando de minha passagem pela Nicarágua, alguns intelectuais de esquerda e militantes sandinistas também comentaram sobre o poeta-guerrilheiro Otto René Castillo, supliciado até a morte pela ditadura da Guatemala, em 1967. Mas foi com os relatos dos poetas salvadorenhos que passei a construir a imagem heroica desse grande revolucionário.
Cheguei em San Salvador em janeiro de 1971 e, pelas referências que levava, de pronto fiz contato com alguns poetas salvadorenhos. A poesia borbulhava na Capital e uma jovem geração de excelentes poetas comandava a vida intelectual do país. Conheci alguns deles, e partilhei bons momentos de literatura, política e debate ideológico com Manlio Argueta, José Roberto Cea, Roberto Armijo, o veterano Tirso Canales e, o mais jovem deles, Alfonso Quijada Urias. Todos, na época, na média dos 30 anos e quase todos, com várias premiações em diversos certames literários centro-americanos. Esses poetas, — integrantes de um grupo de brilhantes poetas, que ficou conhecido como a “Geração Comprometida”— alistaram seus versos nas trincheiras das lutas sociais e muitos deles foram perseguidos, encarcerados, torturados e exilados por empunhar a bandeira de um dos povos mais oprimidos e massacrados da América. Guardo há quarenta anos as palavras fraternas que Tirso Canales escreveu ao me presentear a coletânea poética De aqui em adelante, onde partilha suas 200 páginas com Argueta, Armijo, Cea e Quijada Urias. Foram ele e Manlio Argueta que me falaram da solidária relação ideológica e literária que os ligou a Otto René Castillo em San Salvador, onde chegou exilado, em 1954, após o golpe do coronel Carlos Castillo Armas contra o governo democrático de Jacobo Arbenz, na Guatemala.
Filho de uma família de classe média, Otto René Castillo nasceu em 1936 em Quetzaltenango, a segunda cidade do país. Sua precoce militância estudantil e revolucionária o obriga, com apenas 18 anos, a fugir da Guatemala e asilar-se em El Salvador, onde sobrevive trabalhando como vigia, pintor de parede e vendedor de livros. Apesar das dificuldades, ingressa na Universidade e entra numa fecunda fase de organização política e produção poética, despertando a atenção dos círculos de cultura salvadorenha ao ganhar, com apenas 19 anos, o Prêmio Centro-Americano de Poesia o qual lhe abre as portas da imprensa para a publicação de seus poemas. Sua poesia dessa época traz a marca de uma profunda nostalgia da pátria, cantando a dor de seu povo oprimido e a condição em que sobreviviam as comunidades indígenas, secularmente exploradas pelas oligarquias agrárias e as grandes empresas bananeiras norte-americanas. (...) Apesar da sua juventude, revela-se um intelectual influente, enfatizando a necessidade de engajamento da arte e da literatura com as circunstâncias político-sociais por que passava o cenário centro-americano da época, governado pelos títeres do imperialismo norte-americano como os Somosas, Duvaliers, Trujillos etc. Com esse espírito, desfralda a bandeira da poesia com as cores das lutas sociais, seguindo os sulcos das primeiras trincheiras poéticas abertas no Continente, por César Vallejo, Miguel Hernandez, Nicolas Guillén e Pablo Neruda.
Seus três anos de exílio em El Salvador foram assinalados por uma intensa atividade política e literária. Nesse período, por várias vezes cruzou clandestinamente as fronteiras da pátria para manter-se informado dos planos revolucionários, cujas sementes de justiça social e liberdade germinariam alguns anos depois, nos embates da longa Guerra Civil, que por 36 anos mergulharia o país nas águas sangrentas de um imenso massacre social.
(...) ao terminar seus estudos na Alemanha, regressa em 1964 a seu país, reiniciando sua apaixonada militância política e cultural ao partilhar as atividades clandestinas da luta armada com a direção do Teatro Municipal da Cidade de Guatemala. Contudo, no ano seguinte, quando se preparava para filmar, nas montanhas, as atividades guerrilheiras das Forças Armadas Rebeldes (FAR), é preso e novamente enviado para o exílio. Pela sua capacidade e coerência ideológica, as organizações revolucionárias da Guatemala o nomeiam representante do país no Comitê Organizador do Festival Mundial da Juventude a realizar-se na Argélia e, com essa missão, percorre a Alemanha, Áustria, Hungria, Chipre, Argélia e Cuba, onde se detém por alguns meses a fim de vivenciar toda a rica experiência social e política com que a Revolução Cubana instalava o socialismo no país.(...)ao chegar à Guatemala em 1966, Otto René Castillo retoma a bandeira pela dignidade do seu povo. De uma pátria onde 90% da população não tinha terra para semear sua própria sobrevivência. Uma pátria de excluídos, socialmente abandonados à própria sorte e onde 70% de seus irmãos não aprendera a ler. Ele sabia que sem a guerra ninguém iria repartir a terra e é nesse impasse na história de seu povo que incorpora-se às Forças Armadas Rebeldes (FAR) comandadas por César Montes, ocupando-se do setor de Propaganda e Educação da Frente Edgar Ibarra. Cerca de um ano depois, em março de 1967, quando parte da Frente deslocava-se pelo relevo selvagem, no leste montanhoso do país, confrontou-se com inimigos fortemente armados e, nesse combate, caiu Otto René Castillo e sua companheira, a guerrilheira Nora Páiz. O enfrentamento se deu em Sierra de las Minas, entre a coluna guerrilheira e as tropas mercenárias do governo de Julio César Méndez Montenegro. Conta-se que, nesse embate, somente teria sobrevivido Pablo Monsanto que, cerca de 40 anos depois, disputou, pelas forças de esquerda, a presidência do país."

domingo, 21 de julho de 2024

Ao Domingo Há Música



Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
           Florbela EspancaLivro de Sóror Saudade

De  tudo se enche a vida. Frágil, precária compõe-se de  momentos ora de grande força  ora de intensa debilidade  que relegam a certeira finitude de que,  desde o seu devir, vem ferida. E são esses grandes momentos que lhe dão  a cor e o sal  . Entre eles, estão fascinantes momentos  provocados por  vozes de gente que soube dar à música  a  magia , o encantamento  que nunca cessarão  de nos tocar. Uma dessas vozes maiores   foi Luciano Pavarotti ( 1935-2007).  O mundo rendeu-se-lhe e o espólio que lhe deixou continuará a fasciná-lo.
Ei-lo em alguns dos célebres concertos que partilhou com outros cantores amigos.

Zucchero  e Pavarotti , em Miserere. num concerto no  Royal Albert Hall, Londres.
 
 Luciano Pavarotti James Brown , em It's A Man's World.
 
Eric Clapton ,  Luciano Pavarotti e  East London Gospel Choir, em  Holy Mother .
 
Luciano Pavarotti  e  Lucio Dalla , em Caruso.
  

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Viajar pelo Mundo

 Na viagem, um homem tem de levar consigo saber, se quer trazer saber.
                Samuel  Johnson, James Boswell, Life of Jonhson
 
Around The World 4K - Scenic Relaxation Film .(Filme panorâmico de relaxamento com música calmante.)
" A nossa terra é o lar de inúmeros lugares belos. Desfrute deste filme cénico de relaxamento em 4K com imagens de todo o mundo. Das falésias marítimas das Ilhas Faroé às montanhas da África do Sul, este filme mostra a nossa Terra de um novo ponto de vista. Locais: Venezuela, Ilhas Faroé, Sardenha, Dolomitas, Suíça, Noruega, Havai e África do Sul."

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Um mundo para mim II


Chalets da Praia da Polana, Lourenço Marques

Começar (cont.)
por Eugénio Lisboa
“Lembro‑me, lembro‑me...de um mês que passámos na praia, num daqueles chalets baratos, de aluguer, logo no começo da estrada que levava ao Palmar. O meu irmão Fernando fora operado e o médico aconselhara um mês de praia, para recuperar. Como os casinhotos pertenciam à Câmara, o preço era baixíssimo e a minha mãe lá faria a ginástica financeira necessária para aguentar o barco a flutuar (mal). O meu pai ia todos os dias aos Correios e voltava à noite (ele nunca soube o que fossem férias e rosnava quando os seus subordinados as pediam). A vida no pequeno chalet era também uma experiência: não havia quartos, dormíamos todos no chão e gostávamos! Passávamos o dia na praia e grande parte dele dentro de água. Haveria tubarões? Mesmo que houvesse, achávamos que se não viriam meter connosco. Comíamos com um apetite voraz, depois de passeios pelo Palmar, que era, para nós, uma espécie de reinvenção do Paraíso. O oceano atraia‑nos e, ao mesmo tempo, amedrontava‑nos. Certo dia, de maré viva, ficámos dentro do chalet, transidos, perante aquela ameaça monstruosa, mesmo ali em frente, a dois passos de nós. E acabaria por chegar‑nos a notícia de dois irmãos que se tinham metido num barco, para irem à pesca, a cavalo naquelas ondas gigantescas. Acabaram devorados por uma onda maligna e monstruosa. O pavor da notícia quase destruiu a magia das férias. De repente, a praia, o chalet, a alegria das refeições, a vitalidade dos corpos – tudo se iluminou de uma luz sinistra. Nada era seguro, nada duraria, éramos umas pobres jangadas mal aviadas e vulneráveis à violência infame do oceano encolerizado. A vida aconchegada com a família e os amigos era boa mas estava ameaçada.
O poeta americano Carl Sandburg diz, do mar, uma coisa terrível, que eu, naquela altura, não conhecia, mas que exprime muito bem aquilo que então sentia: “O mar”, dizia ele, “fala uma língua que as pessoas bem educadas não repetem. É um calão de colossal hiena, sem respeito por ninguém.” Olhava‑se para aquelas ondas gigantes e percebia‑se que, com aquilo, não havia diálogo possível. Nem pedido humilde nem oração (para os crentes) que pudesse valer. Aquilo saía para fora da nossa compreensão. Tinha aparecido de repente, sem aviso, uma massa gigantesca e boçal, feroz e impiedosa. Vinha de propósito para nos desarrumar certezas e, desapiedadamente, destruir o prazer de existir. O Índico zangado e de dimensões obscenas foi uma das mais cruéis revelações da minha infância. Quando aquilo acabou, dirigi‑me à praia, tacteando a areia a medo e a olhar o mar com ar desconfiado: e se aquilo, inesperadamente, se zangasse de novo? E eu nem tivesse tempo de fugir? Perdera, de todo, a confiança.
Outra experiência, ainda durante o período do Largo Albasini, contribuiu para reforçar a intuição que já tivera da nossa vulnerabilidade e efemeridade. Como disse, a nossa casa situava‑se a um nível mais baixo que o do Largo e das ruas. A suster as terras, tinham construído um muro de betão: entre o nível mais alto e o nível mais baixo, junto ao muro, havia um desnível de um pouco mais de um metro. Um dia, encontrava‑me eu e os meus irmãos sentados em cima do muro, a vermos a banda passar, quando, subitamente, vindo da Latino Coelho, em direcção ao Largo, vimos um motociclista, conduzindo a uma velocidade desvairada. Entrou no Largo, descontrolado, e, para nosso pavor, vimo‑lo dirigir‑se para cima de nós.Mal tivemos tempo para saltar para o nível mais baixo e vê‑lo passar por cima das nossas cabeças, indo‑se estatelar contra uma pequena árvore, que logo ficou cheia de sangue. Escapáramos por um triz, mas podíamos perfeitamente não ter escapado. A nossa infalibilidade de seres protegidos saía dali completamente esfacelada. Confirmávamos, mais uma vez, que a vida afinal era uma lotaria e não era garantido que nos saísse sempre o bilhete premiado...”
Eugénio Lisboa, in “Acta Est Fabula Memórias – I  - Lourenço Marques (1930- 1947)” , Opera Omnia Editora, Novembro de 2012 , pp. 34-35

terça-feira, 16 de julho de 2024

Um mundo para mim

 Lourenço Marques, Moçambique
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por Eugénio Lisboa
"O nosso mundo – o meu e dos meus irmãos, o Fernando, mais velho do que eu um ano, e o Ilídio, mais novo também um ano – era o do Largo João Albasini, do Alto‑Mahe, com incursões pela Latino Coelho, paralela à 24 de Julho, para o lado do aeroporto e das Mahotas. Na Latino Coelho, havia a loja do sr. Pimentel, onde passávamos as tardes a “lançar” piões, que ele nos deixava “experimentar”, ainda que não tivéssemos dinheiro para consumar a compra. É que não tínhamos mesmo cheta. Namorávamos os piões, os amendoins e as castanhas de caju, mas era tudo platónico.
Havia, também, a praia, enorme, de boa areia fina, e um Índico que nunca mais acabava. Falar do mar é um risco, porque acabamos a fazer retórica barata e o mar não o merece. O gozão do Flaubert, caçoando com as banalidades sumptuosas que os poetas para aí virados debitam de vez em quando, aludindo ao mar, dizia do líquido elemento, no seu Dictionnaire des Idées Reçues: “Donne de grandes pensées”. Grandes pensamentos, acho que o Índico não mos deu, por então, mas deu‑me grandes visões e estranhas ambições. Um dia, cavalgaria o oceano e iria por ali fora ver outras terras e outras gentes. Estava‑me prometida uma grande viagem.
Nestes anos de infância e, depois, de alguma adolescência, eu e os meus irmãos tínhamos, aparentemente, pouco a que nos agarrar, visto que não havia dinheiro e a minha mãe se via obrigada a fazer malabarismos com o pouco que havia. Mas nunca nos faltou boa comida nem atenção à saúde (na Cruz do Oriente, no Alto‑Mahe, e no Hospital Miguel Bombarda, porque era de borla). Não se compravam livros (só uma ou outra vez, às escondidas...), não tínhamos telefonia (nós dizíamos “rádio”), nem telefone, nem dinheiro para diversões e a roupa passava de uns para outros. Mas tínhamos espaço e todo um mundo para observar (e, às vezes, “conquistar”) e com que aprender. O Largo João Albasini era um mundo prodigioso e a vizinhança de outro que não ficava muito longe dali: o mercado indígena, o Xipamanini. Muitos anos mais tarde, já depois de licenciado em engenharia, casado e com filhos, levei ao Xipamanini os célebres Jograis de S. Paulo e, mostrando‑lhes aquele mundo, perguntei candidamente ao Ruy Afonso, o criador do grupo: “Ruy Afonso, o Xipamanini não faz lembrar o Brasil?” Ao que o jogral respondeu:“Não faz lembrar... O Xipamanini é o Brasil!”
Quando, aos domingos, íamos ao Xipamanini, sentia que entrava num mundo de magia: a batata‑doce, o piripiri, a tcintchiva, os gigantescos bolos mata‑fome faziam‑me salivar. As capulanas de cores muito acesas, os instrumentos musicais de sonoridades estridentes e reboladas, tudo ali nos dizia África e não Europa (e, contudo, o que nós sonhávamos com a Europa!)
O clima de Lourenço Marques era (e é...) um clima subtropical: quente ou muito quente, durante nove meses, e temperado, nos restantes três. A humidade relativa, no verão, atinge os 98%. A estação das chuvas é o verão, sendo o “inverno” um período delicioso: sol e temperaturas amenas. O governo em Lisboa, a bem da unidade do Império, decretara que o ano lectivo nas colónias deveria sintonizar com o da metrópole: abertura das aulas em Setembro, fecho em Junho‑Julho, o que levava os alunos a terem aulas no pior período do ano (calor, humidade e chuva) e férias no mais ameno. Sem qualquer justificação: de facto, se o ano lectivo decorresse entre Março e Novembro, poupavam‑se as crianças e os adolescentes à tortura de terem aulas em clima tão agressivo. Havia, é claro, os alunos do 7.º ano que, terminando o curso liceal em Novembro, só no ano seguinte, em Outubro, poderiam ingressar na universidade, em Portugal (visto que, em Moçambique, não existiam, nessa altura, estudos superiores). Mas os alunos que, por ano, iam estudar para Portugal eram tão poucos que não se justificava sacrificar tantas centenas por causa de um punhado: até porque o ano de atraso na carreira dos finalistas poderia ser aproveitado no reforço da aprendizagem e numa melhor preparação para a entrada na universidade. Porém, como é, de resto, frequente – e não só em ditadura! – a ideologia passa à frente dos interesses da saúde, do conforto e da razão.
Seja como for, durante todo o período da minha infância e adolescência, nunca dei por que o clima me incomodasse. Nunca tinha conhecido outro, portanto... Mesmo quando, após uma correria ou uma zaragata, em pleno verão, ficava a pingar suor, com a camisa encharcada e  as faces a arder, não me parecia que houvesse ali qualquer particular desconforto. Era assim o mundo ou, pelo menos, aquele que eu conhecia. Pegar no cão e “fazer” a pé a compridíssima 24 de Julho, até à praia e volta, ao meio dia, com o sol a pino e a castigar com força – era canja!
         (Faço aqui uma interrupção porque me assaltam escrúpulos.Lanço, neste papel, memórias que me parecem importantes – a mim. Escrever memórias é tentar imprimir a marca de eternidade a momentos, para nós inesquecíveis e inesquecidos, intensos, mágicos, às vezes, quase insuportavelmente vivos... mas que serão, para outros, provavelmente despidos de interesse. Captar a atenção destes, a sua cumplicidade, atrai‑los a esta narrativa de minúcias e convence‑los de que estes momentos foram realmente algo de especial – eis a tarefa gigantesca do memorialista. Tarefa impensável, se calhar impossível, mas que, de quando em quando – uma vez num milhão – resulta... A loucura está em convencermo‑nos de que a nossa vez é essa “uma num milhão”. É que é mesmo muito difícil dar, com palavras, a intensidade das emoções que nos assaltaram numa idade em que elas nos marcam como nunca mais voltará a acontecer. Diderot dizia que, para falar de Mozart, seria preciso mergulhar a caneta no arco‑iris. Eu não sei onde seria preciso mergulhar a caneta com que agora tento ressuscitar todos os grandes momentos iniciáticos da minha infância e adolescência. Mas tento, de qualquer modo, fazer o melhor que posso: até porque me parece que não há arco‑iris que me resolva a dificuldade...)
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias – I  - Lourenço Marques (1930- 1947), Opera Omnia Editora, Novembro de 2012 , pp.30-33

domingo, 14 de julho de 2024

Ao Domingo Há Música

Celebra-se , hoje,  o  Dia Nacional de França  que  tem como origem a  tomada da Bastilha,  a 14 de Julho de 1789, durante a Revolução Francesa. Por todo o país , há  eventos celebrativos . 
A França foi pioneira nos direitos humanos ao fixar-se nas três grandes balizas : Liberdade, Fraternidade e Igualdade. Tem vivido momentos de grande expectativa que têm sido  ultrapassados por essa  força humanística que sempre a animou.
Fomos à memória musical do nosso tempo francês. Encontrámos alguns nomes da canção francesa que encheram muitos dos nossos dias.

Françoise Hardy , uma talentosa voz francesa que  nos deixou no início de Junho passado , em L'Amitié, (remix 2011 / 2023).

    

L' Amitié

Beaucoup de mes amis sont venus des nuages
Avec soleil et pluie comme simple bagage
Ils ont fait la saison des amitiés sincères
La plus belle saison des quatre de la terrre

Ils ont cette douceur des plus beaux paysages
Et la fidélité des oiseaux de passage
Dans leur coeur est gravée une infinie tendresse
Mais parfois dans leurs yeux se glisse la tristesse

Alors ils viennent se chauffer chez moi
Et toi aussi tu viendras

Tu pourras repartir au fin fond des nuages
Et de nouveau sourire à bien d'autres visages
Donner autour de toi un peu de ta tendresse
Lorsqu'un autre voudra te cacher sa tristesse

Comme l'on ne sait pas ce que la vie nous donne
Il se peut qu'à mon tour je ne sois plus personne
S'il me reste un ami qui vraiment me comprenne
J'oublierai à la fois mes larmes et mes peines

Alors peut-être je viendrai chez toi
Chauffer mon coeur à ton bois

Comme l'on ne sait pas ce que la vie nous donne
Il se peut qu'à mon tour je ne sois plus personne
S'il me reste un ami qui vraiment me comprenne
J'oublierai à la fois mes larmes et mes peines

Alors peut-être je viendrai chez toi
Chauffer mon coeur à ton bois

Alors peut-être je viendrai chez toi
Chauffer mon coeur à ton bois

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Georges Moustaki, em  Chanson pour elle.
Slimane le Chœur Symphonique de Paris , em  Les moulins de mon cœur. Composição de Alan Bergman,  Marilyn Bergman e Michel Legrand.
 
Léo Ferré , em Avec le temps (enregistrement TSR, 1973).
 
Charles Aznavour, em Hier encore. Música e letra de Charles Aznavour.