segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

O primo negro

Luanda , Avenida Marginal
Ilha de Luanda 
O primo negro
por Manuel S. Fonseca 
" Nunca fui capitão do mato, mas quando ouvi o capitão Vinicius dizer que era o branco mais preto do Brasil, quis ser como ele. 
Nas praias de Luanda , da Ilha ou das Palmeirinhas, também tive tardes de Itapoã, um remanso de fazer todo o homem  um santo, calor sem tamanho, imóvel e moreno encontro de céu e mar. Era adolescente , mas as minhas noites já eram de copos e farras,  iguaizinhas  às que cantaram o poeta angolano Mário António , o brasileiro Jorge Amado. Sei é que , naquele Salvador da Bahia que Luanda fingia ser , me entrava já pela língua dentro o sotaque de musseque. Branco na poesia, mas negro de mais no coração, dizia Vinicius. Eu praticava. 
Tinha visto  The Nutty Professor. Jerry Lewis era, nesse filme,  um deplorável professor. Nocturno e perverso, fascinava-se pelas lindas  e loiras alunas, mas o  seu desengraçado físico tornava ridícula qualquer tentativa de sedução. Apostado em desamargurar a mente e o baixo-ventre , ele inventa e toma uma poção que o transforma em Buddy Love, fatos faiscantes, voz sedutora como a de Dean Martin.
Não era cantar o que me interessava. Sonhava fundir-me no povo que eu achava ser o meu povo. Ia a casa dos meus amigos africanos, eles vinham à minha.  Era bonito, mas não se pode confundir esse convívio com a poção de Jerry Lewis. Por mais  que convivesse, por mais que torrasse ao sol, era só um branco com sotaque  e, vá lá, um brilhozinho negro no coração.
A poção chegou na forma de um primo. Vejamos. Numa família beirã de emigrantes , os ramos esticam-se, tentaculares. Havia primos no Brasil e em França, um tio da marinha mercante no Pacífico.  Até que, da ilha equatorial de São Tomé, chegaram notícias  de outro ignorado primo que mandou o filho visitar-nos. Não foi Jerry Lewis que nos entrou pela casa dentro.  Bateu-nos à porta um Eddie Murphy , que também havia de ser, Lewis, nutty professor e Buddy Love.  Eu tinha um primo negro! Era a minha carta de alforria, a minha legítima libertação de iníqua condição de branco.
Nunca ninguém foi tã de pata,o mimado naquela casa. Churrasco da capoeira e um estrelado ovo  que enchia um prato. Tudo puro e caseiro, feito com a ternura das mãos da minha mãe e o sangue do meu pai.  As águas turvas do Império tudo levaram, Onde andará agora esse primo gentil, tão elegante e negro?"
Manuel S. Fonseca, in Crónica de África,  Guerra & Paz Editores, Fevereiro de 2023, pp.104,105

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