sábado, 11 de fevereiro de 2023

O fito de poder reduzir a nada o mundo inteiro

Introdução 

"Era chamado o «mago do Kremlin». O enigmático Vadim Baranov foi realizador e produtor de reality shows antes de se tornar a eminência parda de Putin, conhecido como o Czar. Desde que se demitira do cargo de conselheiro do Czar, as lendas a respeito dele, em vez de se extinguirem, tinham‑se multiplicado, sem que ninguém fosse capaz de separar o falso do verdadeiro. Até que, uma noite, ele confiou a sua história ao narrador deste livro. Uma narrativa que nos mergulha no coração do poder russo, onde aduladores dos poderosos e oligarcas travam uma guerra constante. E onde Vadim se tornou arquitecto de propaganda do regime, transformando um país inteiro num teatro político, no qual uma única realidade é chamada à cena: a realização dos desejos do Czar. Ao contrário de muitos outros que actuam unicamente movidos pela ambição, Vadim, arrastado para os mistérios cada vez mais escuros do sistema que ajudou a construir, fará tudo para sair.
Da guerra na Chechénia à crise ucraniana, passando pelos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, O Mago do Kremlin é o grande romance da Rússia contemporânea. Revelando os bastidores da política da era Putin, oferece ao mesmo tempo uma reflexão sublime sobre o poder.
Vencedor do Grand Prix du Roman de l’Académie française e romance finalista do Prémio Goncourt 2022."
                                                                  
Cap. 29
« A familiaridade induz em erro. Durante anos, no Kremlin, Estaline e o resto da nomenclatura viveram lado a lado. Habitavam grandes apartamentos  que em tempos tinham sido os  dos funcionários  do czar, e jantavam sempre juntos.  Estaline vinha buscá-los  para jogar xadrez ou para um pequeno jantar entre amigos. Nunca ocupava o lugar de honra, mas colocava-se à cabeceira da mesa e, se fosse preciso ir buscar alguma coisa à cozinha, era ele que se levantava.  Também tinham um pequeno cinema. As crianças  andavam de bicicleta  e jogavam à bola.  Tinham crescido juntos, como numa família.  O que não impediu Estaline de os exterminar um após outro. Na verdade, isso facilitou-lhe a tarefa. Eles não podiam imaginar que o seu Koba os iria prender, torturar e matar. Foi a proximidade que os enganou: a ilusão de que uma amizade  de vinte anos impede o chefe de fazer o que ele tem de fazer.  Mas não é assim que funciona. O chefe  segue o seu instinto, tem o faro de predador que deve sobreviver. E, em última análise, a única coisa que lhe pode  garantir  a sobrevivência é a morte  de todos os outros ao seu redor.
Eu fui o primeiro a partir, só isso. Não me deixei apanhar pela familiaridade. A confiança de um príncipe não é um privilégio, mas uma condenação:  quem revela o seu segredo a alguém  torna-se seu escravo, e o espelho que nos devolve a nossa própria imagem é uma prática corrente. Além disso, o príncipe pode retribuir os pequenos favores, mas quando estes se tornam demasiado grandes  e ele deixa de saber como há-de recompensá-los, surge nele a tentação de resolver o problema eliminando-lhe a causa.
O Czar nunca foi susceptível, quando  muito ao hábito. E a partir  de um certo momento perdeu o hábito de me ver . Em Novo-Ogariovo mandou arrasar a floresta  em três quilómetros à volta  da sua dacha. Acorda tarde de manhã, pequeno almoço de ovos frescos que o patriarca Cirilo lhe envia da sua quinta. Depois faz exercícios no ginásio em frente ao ecrã das informações. Se há alguma coisa de urgente, é ali que ele lê as notas confidenciais  e transmite as suas disposições. A seguir , nada um quilómetro na piscina.  À beira dela, os primeiros momentos do dia, ministros, conselheiros, patrões de grandes empresas, convocados na noite anterior  ou mesmo nessa manhã, aguardam pacientemente que o Czar saia da água para lhe estenderem um roupão  e lhe fazerem brevemente uma ou outra pergunta.
É só ao início da tarde  que o cortejo presidencial se põe a caminho do Kremlin. As ruas foram fechadas à circulação meia hora antes. Em cada cruzamento uma viatura da milícia assegura que a solidão do Czar seja preservada. De Novo-Ogariovo ao Kremlin, Putin atravessa quase inteiramente a capital, congelada à sua passagem, chega ao gabinete e começa  aí a verdadeira jornada de trabalho, que termina por vezes às primeira luzes  da lavorada. Toda a existência do Czar está desfasada em relação à das pessoas normais e impõe uma torção a quem tem de trabalhar com ele. Um só homem não dorme de noite, e adestrou todos os que contam em Moscovo  a partilharem a sua vigília até às três ou quatro horas da manhã. Conhecendo os hábitos nocturnos  do chefe, uma centena de ministros, de altos funcionários, de generais,  fica ali à espera  de uma chamada. E cada um mantém  ao seu lado uma pequena falange  de assistentes e de secretários.  Por isso, as luzes dos ministérios ficam acesas e a Moscovo do poder perdeu de novo o sono, como no tempo de Estaline. (...)
" De tempos a tempos  ergue-se um homem no mundo, ostenta a sua fortuna e proclama: sou eu! A glória dele vive o tempo de um sonho   interrompido, já a morte se ergue e proclama: sou eu."
Sem nunca lá ter posto os pés , há três séculos La Bruyère  descreveu o Kremlin de hoje mais precisamente  do que o melhor  dos nossos ou dos vossos  jornalistas. (...)
Mas quando apresentei a minha demissão, o Czar tinha outra coisa em mente. (...) 
Ninguém me substituiu. A labrador é a única conselheira em que Putin tem inteira confiança. Fá-la correr no parque, leva-a consigo para o gabinete. Quanto ao resto, o Czar está inteiramente sozinho. De vez em quando, aparece um guarda, apresenta-se um servidor ou um cortesão, convocado por uma razão ou outra. É tudo. Não há mulher junto dele, nem crianças. Quanto aos amigos, ele sabe  que no estádio a que chegou a própria ideia de os ter é inimaginável. O Czar vive num mundo em que até os melhores amigos se transformam em cortesãos ou em inimigos implacáveis , e na maior parte do tempo nas duas coisas em simultâneo. 
(...) O nosso Czar (...) vive na solidão e nutre-se dela. É no recolhimento que ele acumula a força que tanto surpreende tantos dos vossos observadores. Com o tempo, isso tornou-se quase um elemento, como o céu ou o vento. (...) A distância preserva a autoridade. Como Deus, O czar pode ser objecto  de entusiasmo, mas sem que ele próprio  se entusiasme , a sua natureza é necessariamente indiferente. O rosto dele já adquiriu a palidez marmórea da imortalidade.
Neste nível estamos muito além da aspiração ao belo funeral de que eu lhe falava. O ideal do Czar seria antes um cemitério em que ele se perfile sozinho, vertical, único   .de todos os seus inimigos e até dos seus amigos, dos seus pais e dos seus filhos. Talvez até de Koni. De todos os seres vivos. " Calígula deseja que as cabeças de todos os homens se encontrem numa só e única gola, com o fito de poder reduzir a nada o mundo inteiro de um só e único golpe." Poder no estado puro. Foi nisso que se tornou o Czar. Ou talvez fosse assim desde o início. O único trono que lhe trará a paz é a morte.»
Guiliano da Empoli, in O Mago do Kremlin, Gradiva Publicações, S.A. , 1ª edição, Novembro de 2022, pp. 255-261

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