terça-feira, 17 de agosto de 2021

O Verão


Um  novo poema de Eugénio Lisboa que, nestes tórridos dias de Agosto , nos leva a acreditar  que as portas do Inferno foram abertas. Um inferno sem Dante , mas  dantesco na  voz  do poeta  e,  por   nós , em abrasadora vivência.

O VERÃO – ALGUMAS OBSERVAÇÕES
Pode ser que seja Abril
o mais cruel dos meses,
como disse um poeta
mal afinado com a natureza.
Seja como for, a ideia ficou
e vai durando, embora falsa.
Abril é um mês qualquer,
embora se diga que em Abril chove muito.
Mas Abril não é mais cruel
do que qualquer outro mês.
Cruel, sim, atroz, é o verão,
com o seu sol ardente e mortífero,
que acende a luz pavorosa
da nossa lucidez.
A luz do verão ilumina sem piedade
as zonas obscuras e ameaçadoras
da nossa condição,
torna clara e quase obscena
a dura realidade da vida.
O verão não mente, ilumina.
O verão não esconde, mostra.
O verão acena promessas enganadoras,
visto que a sua luz, iluminando a realidade,
nos ofusca também para ela.
Há gente demais, no verão,
gente horrorosamente feia, repugnante,
mal vestida de propósito.
O verão é enviesado, traiçoeiro,
mas não exactamente mentiroso.
As ilusões que o verão oferece são suicidas.
Foi no verão – nunca o esqueci! – que o amor de Mítia
o levou a pôr fim à vida: a luz cruel do verão
tornou atrozmente claro que não havia saída
para o seu desespero, no romance de Bunine,
que eu li, adolescente, e nunca esqueci.
O amor intenso e não correspondido de Mítia,
cuja não solução a luz crua de verão tão bem esclareceu,
resumiu, em medalha assassina,
tanto amor desperdiçado que o sol de verão
escancaradamente desvela, para nossa mortal tortura.
O verão é o mais cruel dos assassinos,
porque anuncia, muito evidentes, mundos deslumbrantes
que não existem,
ou que, existindo, não poderemos alcançar.
O sol violento de verão acende em nós uma lucidez,
que não é boa, porque nos deprime e nos mata.
O verão é um logro perigoso.
Este sol intenso solta, em nós, demónios que não dominamos.
O verão, mesmo não mentindo,
mente com quantos dentes tem na boca.
O verão mata tanto,
como qualquer guerra ou surto de peste.
No verão, morre-se à míngua de excesso
(a propósito, o Mário de Sá-Carneiro morreu em Abril,
porque não tinha dinheiro para chegar até Junho,
caso contrário, morreria no verão,
à míngua de excesso, como tão bem profetizara).
O verão é, apocalipticamente,
aquele vírus terminal, para que não há vacina.
Quando se nos abrem as portas do verão
deparamos com um grande aviso, em letras descomunais:
LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH’ENTRATE.

                                                          16.08.2021
Eugénio Lisboa, em poema inédito.  
       

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