quarta-feira, 11 de agosto de 2021

A Índia é um conceito de vida

Na Europa o terror da morte sempre suscitou  a mais viva aspiração à imortalidade pessoal e espiritual; ao passo que na Índia o terror da vida [...] suscitou a aspiração oposta: o aniquilamento definitivo através da ascese, ou seja, o nirvana.
  Alberto Moravia, Uma ideia da Índia


Em 1961, Alberto Moravia,( Roma 1907- Roma 1990,) fez uma viagem à Índia a que chama a experiência da Índia. Regista-a num interessante livro, com o título "Uma ideia da Índia". Por se tratar de um grande escritor que comecei a ler na minha juventude e a quem regresso com alguma frequência e encanto , sinal da sua perene contemporaneidade , resolvi evocar uma passagem deste belíssimo livro e segui-la de um tema musical do famoso músico-compositor indiano , Ravi Shankar.
Eis, então , um pequeno trecho transcrito da Introdução dessa singular obra, que simula um diálogo em torno da questão o que é a Índia :
Introdução
"(...)E o que é  a Índia! 
  Como hei-de de dizer-te ? A Índia é a Índia.
(...) Não te compreendo.
(...) Pois bem,  a Índia é o contrário da Europa.
  Fico a saber o mesmo . Em primeiro lugar, seria preciso que me dissesses o que é a Europa.
  Prefiro encontrar um slogan para a Índia. Ora bem, digamos que a Índia é o país da religião.
  E isso seria o contrário da Europa. Mas a Europa também é religiosa.
  Não, a Europa não é religiosa. No entanto , as religiões pagãs do Mediterrâneo e dos países  nórdicos, o catolicismo, a Reforma...
  Não importa. A Europa não é religiosa.
  É o quê, a Europa?
  Se eu fosse indiano, talvez to soubesse  dizer. Como europeu, torna-se-me difícil. 
  Então, imagina que és um indiano. 
 Como indiano , dir-te-ia: a Europa, aquele continente onde o homem está convencido de que  se encontra no centro do mundo, e onde o passado se chama história, e a acção é preferida à contemplação; a Europa onde comummente se crê que a vida vale a pena ser vivida, e onde o sujeito e o objecto convivem em boa harmonia, e duas  ilusões como a ciência e a política são levadas a sério e a realidade nada esconde, e no entanto, apesar disso, é nada;  o que tem a Europa a ver com a religião?
  Eis um indiano um pouco presumido. Ignora , pelo menos, o passado da Europa, refiro-me ao passado religioso, aos séculos durante os quais foram construídas as catedrais.
  A Idade Média, estava para falar nisso. Não é verdade que o nosso indiano ignore  a Idade Média; pelo contrário, dá-lhe valor, porque é esse, justamente, o único período histórico da Europa que lhe faz lembrar a Índia. Mas ele também sabe que para a grande maioria dos europeus a recordação atávica da Idade Média é a recordação da ignorância, da infelicidade, da grosseria, do atraso e da miséria. O nosso indiano interpreta a tenaz persistência deste preconceito do senso comum popular contra a Idade Média como mais uma prova de que a Europa, no fundo, não é religiosa. E , de facto, os europeus chamam Renascimento ao final da Idade Média; de acordo com o ponto de vista da Índia , deveriam chamar-lhe antes Decadência.   
(...) Ainda estou à espera que me expliques o que quiseste dizer com a frase « a Índia é o país da religião». Para já , de que religião? Na Índia há muitas religiões. Do budismo? Do hinduísmo? Do jainismo? Do islamismo?
  Não, de nenhuma dessas religiões. 
  Mas, que eu saiba, referi as principais religiões da Índia.
  A Índia não é um país com uma religião historicamente bem definida, com um fundador, uma evolução, um passado, um presente e um futuro. A Índia é o país da religião como situação existencial. Da religião imediata.  Por absurdo que pareça, mesmo que não houvesse religiões na Índia, a Índia seria à mesma o país da religião.
  Mas uma religião imediata não existe.Existem as religiões; e, para cada um dos seguidores, a sua própria religião. 
  Se eu quisesse fazer um paradoxo, dir-te-ia que as religiões tal como tu dizes, precisamente porque são religiões, isto é, têm um fundador, uma evolução, um passado, um presente e um futuro, já não são a religião.  Num certo sentido, são resultados de segundo grau e quase sempre compromissos. 
  Então diz-me tu o que é a religião.
  Já te disse : a religião é a Índia e a Índia é a religião. 
  Assim não saímos disto. Tens de me dizer o que é essa religião, da qual as religiões não são mais do que resultados de segundo grau; e, uma vez que a religião é a Índia.
(...) É difícil dizer-to. Enquanto estive na Índia senti a presença da religião em muitas coisas , em muitos aspectos. Teria de te descrever a Índia inteira, pensa só , um continente que é pouco menor do que a Europa, quatrocentos milhões de pessoas ( 1,3 mil milhões de pessoas, em 2021 ), quinhentas mil aldeias, milhares de divindades.
(...)Mas eu ainda não compreendi  por que razão a Índia é a religião.
  O que querias mais?
  Uma definição.
  Então dir-te-ei aquilo que te podia ter dito desde o início: a Índia é um conceito de vida.
  Que conceito?
  O bem conhecido conceito, segundo o qual tudo aquilo que parece real  não é real, e tudo aquilo que não parece real é real. Deste conceito deriva a desvalorização completa da vida como coisa absurda e dolorosa , e a convicção de que o homem não deve agir para melhorar o mundo , mas sim para dele sair e juntar-se à realidade supra-sensível, ou seja, espiritual.  A religião é, pois, um conceito completamente negativo no que respeita à realidade  dos sentidos, por ser completamente positivo quanto à realidade espiritual. Disse que a Índia é a religião , porque todo o mal e todo o bem da Índia parecem confirmar e justificar esse conceito. 
  É um conceito pessimista.
  Não, não é um conceito pessimista, é um conceito que nega certas coisas e afirma algumas outras. É pessimista se o considerarmos do ponto de vista das coisas que  nega, é optimista se o considerarmos do ponto de vista das coisas que afirma. É pessimista do ponto de vista europeu ou, pelo menos, daquele que em tempos era o ponto de vista europeu; é optimista do ponto de vista indiano ou, pelo menos, daquele que era em tempos o ponto de vista indiano.
  Porquê? Ambos os pontos de vista mudaram?
  Sim , mudaram.
  E de que modo?
  Os indianos imitam os europeus e os europeus imitam os indianos.
  Ou seja?
  Os indianos gostariam de acreditar na realidade dos sentidos, os europeus acreditam cada vez menos.
  Então, uma vez que os papéis  se inverteram, para que te serviu ir à Índia?
  Já te disse , para fazer a experiência da Índia.
  Ou seja?
  Ou seja, ver por que razão os europeus são europeus e os indianos indianos. " 
Alberto Moravia, in Uma ideia da Índia, Edições Tinta da China, Lda, Maio de 2009, pp.13-26
 
Concerto for Sitar and Orchestra No. 1: I. Raga Khamaj , de Ravi Shankar, com o próprio Ravi Shankar na Sitar  e  a London Symphony Orchestra, sob a direcção do Maestro André Previn. A produção é de Christopher Bishop.

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