sábado, 3 de abril de 2021

A propósito da Páscoa


Curral das Vacas , Chaves, 11 de Abril de 1974
"O Auto da Paixão num pobre lugarejo transmontano transfigurado numa Galileia imaginária , a fonte de Jacob, o Jardim das Oliveiras e o Sinédrio  reduzidos a uma bacia cheia de água, a meia dúzia de ramos espetados  no chão , a um palanque  de feira.  Mas nesse  cenário ingénuo  e sumário , tudo se passou como no verdadeiro - um Cristo do mundo a sofrer as injustiças  e agruras do mundo. Pilatos era qualquer regedor , presidente da Câmara ou juiz  poltrão a lavar as mãos na hora da verdade; Caifás , o influente poderoso e rancoroso, quem não é por nós é contra nós ; Judas, o mau vizinho que muda os marcos e jura peitado; e a turba judaica, a multidão que assistia , mata, queima esfola, conforme a onda emotiva. Não havia vedetas . Nem o próprio Redentor tentava ultrapassar  a medida humana. Todos faziam diligentemente o seu papel , a debitar o texto e a gesticular como a rudeza era servida. A tarde estava de rosas , e essa doçura da natureza emoldurava harmoniosamente aquela lúcida catarse colectiva, teatro e realidade misturados , festa e pesadelo, agonia fingida e vivida.  O povo tem isso: sabe encontrar o meio-termo feliz, o equilíbrio entre as exigências da alma e as fraquezas do corpo.  A tragédia do Calvário é a nossa própria tragédia. Mas Deus , um ser absoluto. Pode sofrer absolutamente. Nós somos criaturas relativas... Por isso, a esponja de fel  que desta vez o Centurião chegou aos lábios de Cristo era um naco de pão-de-ló  ensopado em vinho fino..." 
Miguel Torga, in  Diário XII - Obra Completa, Círculo de Leitores

Sem comentários:

Enviar um comentário