quarta-feira, 14 de outubro de 2020

As memórias falam

                                     Eugénio Lisboa na Universidade de Aveiro  

CONSIDERAÇÕES
por Eugénio Lisboa
                                                                 Nunca falar de si próprio é uma
                                                                forma muito refinada de hipocrisia
                                                                                                   Nietzsche

"(...) Fiz, ao redigir estas memórias, bom uso da memória e melhor uso, ainda, de um diário que, em Londres, me pusera a reescrever. A memória ajuda, mas tem um inconveniente: por muito selectiva que seja e tenda sobretudo a recordar o que, de importante, profundamente nos marcou, pode meter, por vezes, no mesmo saco, jóias e pedras sem valor: guarda essa pedraria secundária, não se sabe bem porquê. Talvez porque, em certo momento, em certa circunstância particular, esse marco secundário e aparentemente insignificante – no tempo de hoje – nos perturbou de modo significativo. Dizia Lord Halifax que “as memórias de certos homens são como uma caixa onde se misturam jóias com sapatos velhos.” E é bem verdade. Mas só quem os guarda poderá – se puder! – ter, às vezes, a possibilidade de descortinar a razão que o levou a guardar, com tanto cuidado os “sapatos velhos”, que desfeiam o conteúdo da caixa. Talvez eles tenham (ou tivessem tido, na altura) um significado profundo qualquer, talvez guardem (ou quisessem, então, guardar) a memória de um momento mágico da vida de quem assim os preserva, mas que o tempo foi apagando, ficando apenas o sapato, pobremente desligado da magia que fora sua missão perpetuar… Um par de sapatos velhos pode ombrear, em importância, na memória de quem os arrecada, com uma jóia preciosa ou com um livro inesquecível: tudo remete para outros  seres, para emoções que foram fortemente vividas e se quereria eternas, na memória própria e dos outros.
O território da memória é um reino complexo e nem sempre de fácil decifração. De qualquer modo, correndo o risco de ter seleccionado mal – ou não tão bem como seria desejável – deixei-vos, até aqui, um acervo de minudências que achei bem preservar e, agora, divulgar. Mas é evidente que não poderei continuar a este ritmo vagaroso e com este luxo de minúcias – apesar de ter seleccionado, isto é, suprimido, com austeridade espartana. Vou ter que suprimir muita coisa que considero interessante e que os meus diários registam. Ficará tudo isso, para uma publicação integral póstuma, embora não esteja fora de cogitação, a edição, ainda em vida minha, de uma secção ou outra desse acervo diarístico*. Será, por assim dizer, o complemento destas minhas memórias, ou seja, um natural anexo a elas.
Neste 5º volume, transcreverei, de aqui até ao final, passagens que considero importantes, relativas ao desaparecimento de pessoas (mãe, sogro, irmão, animais domésticos), viagens que fiz (mas não todas) e uma ou outra “entrada” que me apeteça sublinhar. Tudo foram componentes desta recta final da minha vida, que se aproxima do fim: não que o sinta, mas porque é a ordem natural das coisas e a cabeça assim o aceita.
Nestes cinco volumes (de que me falta concluir este e, depois, escrever o 2º), tenho falado bastante dos outros e, também, alguma coisa, de mim. Embora um livro de memórias não seja bem uma autobiografia, não é menos verdade que contém um bom teor de valências que compõem o género autobiográfico. As memórias falam, sobretudo, dos “outros”, mas são outros que gravitam à volta de um “eu”. Não há que ter vergonha de assim se falar de si próprio. Uma certa complacência com a narrativa do próprio eu até nem será pecado de maior. Thomas Mann, num seu livro célebre – Goethe e Tolstoi – pergunta, sem pudor: “Poder-se-á distinguir o amor de si próprio do amor do próximo?” E julga poder e dever responder a esta pergunta, nestes termos: “O amor que temos por nós próprios e o amor que temos pelos outros confundem-se psicologicamente; eis por que a velha questão de se saber se o amor não passa de um sentimento egoísta em vez de ser um sentimento altruísta pôs o mais ocioso dos problemas. A oposição do egoísmo e do altruísmo é completamente suprimida no amor.” Neste mesmo livro, Mann acrescenta isto, como um suplemento de afronta aos “recatados”, que têm medo de parecerem narcisos: “Goethe vituperou, durante toda a sua vida, a afectação de recato com que se pretende interditar a complacência com o próprio eu. Dava ele a entender que tal sentimento só era bom para as pessoas a quem não assistia a mínima razão para se estimarem a si próprias. Tomou mesmo a defesa descarada da pequena vaidade corrente, declarando que a sua desaparição faria perecer a sociedade e que um snob tem ao menos a vantagem de nunca chegar a ser demasiado grosseiro.”
Com tão ilustres advogados de defesa a “protegerem” a minha desfaçatez de autobiógrafo (em cinco volumes), permito-me, pois, continuar e tentar levar até ao fim este meu empreendimento de guardador de memórias.
Não cultivei nunca o estilo do português deprimido e lamecha e dei, naturalmente, à minha escrita, aquela energia e brio de que fui capaz e que suponho estarem na minha natureza profunda. Tenho uma visão pessimista do mundo em que vivemos e sei que a aventura do homem sobre a terra é coisa efémera. Tudo vai desaparecer e, disto tudo, nem a memória ficará. Sou um pessimista mas não sou nem triste nem amargurado. A vida é o que é e o universo também. Na pequenina parcela de universo que habito, olho, friamente e sem ilusões, o quotidiano grotesco que não anuncia nada de bom: posso dizer, com alguma pompa e circunstância, que vivo crucificado, mas não entristecido. De um livro de Montherlant, recolho isto: “être patriote, et être Français, en 1932, c’est vivre crucifié. La France est en pleine décomposition.” Eu digo: “ser patriota e ser português, em 2015, é viver crucificado. Portugal está em plena decomposição.” Repito: crucificado, sim, mas não deprimido. Não dou para esse peditório. Sem ilusões, mas também sem tristeza e sem lágrimas. Portugal, em 2015, está em decomposição avançada ( e a Europa não está melhor)."
Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula, Memórias-V- Regresso a Portugal, (1995-2015), Editora Opera Omnia, Outubro de 2015, pp.229-232

*Eugénio Lisboa já publicou dois volumes do  seu Diário , sob o título " Aperto Libro". No prelo, estão três volumes que completarão este magnífico registo diarístico.

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