sábado, 22 de agosto de 2020

A memória traz a saudade

 
La vie  serait impossible  si l’on se souvenait, le tout est  de choisir ce qu’on doit oublier.
                 Roger Martin du Gard

Teimava em afundar-se na memória. Queria fugir a este presente que nada lhe dizia. Há muito que deixara de ouvir as notícias, de ler os jornais  ou de tentar saber como estava o mundo. Para quê? Bastava saber que não podia sair de casa. Alguém se encarregara de lhe colocar na caixa do correio  um aviso da Câmara Municipal. Nesse dia, correra à sala, ávida de confirmação. Ligou a televisão e as notícias vieram em catadupa. A peste dominava todos os noticiários. Morria-se no mundo . Números assustadores eram repetidos por mil e um comités de saúde, espalhados pelo mundo. A OMS soletrava alertas que se tinham como dogmas. Acreditar e respeitar era o único caminho. A salvação não era prometida. Apenas cumprir sem remissão à vista.
Deixou-se ficar. Nada mais tinha a fazer. E, ao ficar, desistiu de saber. Esse mundo de peste não a interessava. A vertigem da morte dominava o mundo. Todos se confinavam e as ruas ficavam desertas. A propaganda pestilenta passou a ocupar esses espaços vazios.
Refugiara-se nas paredes da memória. Por vezes, antecipava futuros que não seriam os seus. Apenas lhes dava forma e peso conforme o sonho ou o arrebatamento  lhe permitia. Tudo isso passou a ser mundo , o seu mundo. Não teria falta de mais  mundo para estar viva. Há quem afirme que se deixa de falar ou de ter vida quando não há mundo , ou seja, não se vive para além das paredes de uma casa. Esquecem-se de que paredes e muros comportam realidades diferentes. Os muros são barreiras que se erguem, paredes são o amparo que nos protege .
Levantava-se com a aurora , vivia o dia , deitava-se com a noite.  O dia nem sempre era longo. A noção de tempo fugira-lhe. Nem sabia o que era agora. Nunca se interessara tão pouco pelo movimento dos  ponteiros. Os relógios tornaram-se dispensáveis . Regia –se  por um tempo interior. Um tempo volátil. Que se fazia por vezes à velocidade da luz  ou , em contramão, se deixava ir a passo de caracol, se é correcto atribuir-lhe um passo.
Naquele dia , acordara estranhamente ao meio-dia a ouvir vozes e a inalar odores tão remotos que  não imaginava ser o dia do seu nascimento.
Recordava-se perfeitamente da azáfama que marcara o ritmo daquela casa, onde nascera . A mãe já muito pesada dirigia os trabalhos.
Os cheiros a cera e alfazema pairavam no ar e chegavam já até ela como perfume de um passado longínquo. Tudo lhe foi surgindo como se já tivesse vivido durante um período único. Era como se estivesse por fora do tempo. Gravitava num tempo que não era real ,mas que a fazia projectar no tempo dos outros. E surgiu-lhe a casa numa dimensão real. Os irmãos ainda muito pequenos enchiam  aquele espaço de sons e ruídos. A casa da infância onde a mãe  se propunha organizar o seu nascimento.

Ana mandava abrir a gaveta da cómoda grande onde os lençóis de linho, com rendas feitas pelas fiandeiras da Quinta de Chãos, se sobrepunham numa ordem quase natural. A gaveta era pesada e se não fossem os braços fortes de Fernanda seria impossível puxá-la.
Era necessário organizar rapidamente a casa para o nascimento deste filho. Estava-se em Agosto e  a família de João viria encher totalmente o que restava ainda de vazio naquela casa . Sempre fora assim. A família vinha sempre!
Nem sempre se sentia bem nesta altura. Sentia-se pesada e uma certa ansiedade tomava-a. Ninguém a notava. Só ela e aquele pequeno ser que partilhava todos os seus segredos. Vivia aninhado num berço recôndito dentro de si. Acariciava-o e afagava-o com segredos únicos que ficariam selados até à eternidade , se ela descesse  para ambos.
Nos  anos anteriores, esforçara-se para realizar, com  o rigor que a todos habituara, a festa do nascimento dos outros filhos.
Ainda hoje recorda a alegria que experimentara.
Estava grávida do  terceiro filho e isso  enchia toda a sua vida e todo o seu tempo. Por vezes sentia que nada mais lhe interessava a não ser  a maternidade. Era qualquer coisa que a transcendia , mas a tornava imensamente feliz e segura de um destino que nunca antevira.

A memória. Ah , a memória traz a saudade dos dias felizes. E a saudade  nasceu ontem, virá amanhã e é hoje o dia de todos os dias: o meu.
Maria José Vieira de Sousa, in “O Tempo da Memória”

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