ELOGIO DA TEMPERANÇA
Por Eugénio Lisboa
I have been the
recipient of excessive
admiration and
reverence from my fellow
beings through no fault
and no merit of my own.
Albert Einstein
"A cultura
portuguesa perdeu recentemente quatro vultos de considerável aparato, cujo
desaparecimento causou bastante ruído na comunicação social. O problema não
está na quantidade de ruído, mas na sua qualidade.
Em países
como o Reino Unido, os Estados Unidos ou a França, por exemplo, quando uma
figura de grande gabarito desaparece, fala-se o suficiente dela, em obituários,
mas fala-se em tom de calma objectividade, evitando-se a inflação do tom e das
palavras e pondo-se num prato da balança as virtudes e no outro os defeitos ou
falhas. É quase sempre assim porque um obituário não deve ser um debitar de
intemperanças ou de desgovernados ditirambos. A admiração não deve abandonar um
vigilante espírito crítico e um sentido
das proporções capazes de fazerem uma avaliação serena e composta do perfil do
falecido. Infelizmente, entre nós, quase nunca é assim. A este propósito, dizia
o ficcionista francês, Barbey D’Aurevilly (de que uma das ficções foi adaptada
a um notável filme) que “a admiração usa por vezes de um telescópio para olhar
para as coisas da terra, mas nem por isso ele as transforma em astros.”
Com as
mortes recentes de Agustina Bessa-Luís, Vasco Pulido Valente, José Cutileiro e
Maria Velho da Costa, os muitos e incontidos (e incontinentes) testemunhos que
visitaram a nossa comunicação social fizeram precisamente isto: pegaram num
telescópio e tentaram, com ele, fazer de cada um dos vultos desaparecidos um
astro de primeira grandeza, emitindo uma fortíssima luz própria e até
ofuscante. Mas, como dizia o escritor francês, não há maneira de o telescópio
conseguir fazer esse milagre.
Os
testemunhos que choveram sobre o vulto apreciável das duas romancistas, do
diplomata e escritor e do historiador e cronista caracterizaram-se pelo excesso
ditirâmbico, pela ejaculação incontida de adjectivos pesadíssimos, em suma, por
uma falta de controle tão desastrada, que se caiu, por vezes, no puro dislate.
Agustina
Bessa-Luis foi uma escritora de uma incontinência assustadora, mas que
beneficiou de uma aceitação crítica muito grande e de uma abada de prémios
invulgar (catorze, se me não engano). Duvido porém que tenha tido muitos
leitores, pelo menos, daqueles que levam um livro de uma ponta à outra, dadas
as características pouco apelativas da sua ficção: histórias mal contadas,
aforismos disparatados aos baldes, personagens e conflitos mal definidos,
“nuvens negras de condenáveis delírios supostamente filosóficos (Casais
Monteiro, no Suplemento Literário de A
Folha de São Paulo, de 05.03.1966), etc. .
João Gaspar
Simões falava, a propósito do romance A
Muralha, em “delírio de improvisação” E é este incontido “delírio” que faz,
do livro que Agustina dedicou a Florbela Espanca, o mais clamoroso desastre de
que até hoje tive conhecimento, em termos de biografia e de análise de uma
obra. Não admira, pois, que o exigente Jorge de Sena tenha observado, com bom
humor, que, em matéria de leitura dos livros de Agustina, ainda tinha
conseguido chegar a Os Incuráveis,
mas já não aguentara saltar A Muralha… Como aguentar a pé firme o
arbitrário, a atrabiliário, o disparatado de aforismos como este: “o soneto é a
composição perfeita do sentimento”, ou este: “Deus criou primeiro o mundo e
depois a Natureza” ou ainda este, alusivo a Florbela Espanca: “Todas as suas
experiências são conduzidas à abstracção, e é por isso que os seus sonetos
conhecem gradualmente o sucesso”? (Já em tempos observei que muitos dos
aforismos de Agustina seguem este modelo congeminado por mim: “A minha gravata
é azul e é por isso que os barcos flutuam nos oceanos”).
Pois, apesar
destas reservas, que são de monta, um homem inteligente e ponderado, como
Francisco Assis, não resistiu à histérica onda aclamatória e veio dizer, de
Agustina, esta coisa surpreendente e momentosa: “Talvez fosse a nossa melhor
escritora, mas foi decerto uma das nossas maiores pensadoras. Neste plano foi
tão desmedidamente grande que levaremos muito tempo até entendê-la em toda a
sua plenitude.” Isto é simplesmente extraordinário e faz-me suspeitar que
Francisco Assis andou a utilizar um telescópio de invulgar potência. Grande e
desmedida pensadora, a Agustina? Pensadora, a Agustina? Que pensamento? Será o
destrambelhado pensamento aforístico que ela nos serve, abundantemente, por
todo o lado?
Diante desta
incontinência admirativa, lembro-me da frustração de André Gide, quando, em
1924, lhe pediram um artigo para um número de uma revista consagrado a celebrar
a glória de Anatole France. Embora com reservas, Gide admirava o autor de Les Dieux Ont Soif, mas, em face dos
desvairados elogios da Condessa de Noailles ao criador de “Crainquebille”,
sentiu-se inibido, anotando no seu Journal:
“Aquilo não é crítica, mesmo laudatória, é puro desmaio. Um tal excesso, uma tal
intemperança, uma tal inflação das palavras, dos sentimentos e dos pensamentos,
desvaloriza tudo o que se pudesse dizer a seguir, de razoável e de sensato.”
Foi este
excesso, esta intemperança ejaculatória que assistiu ao desaparecimento dos
quatro vultos citados. Diante de tal orgia – eu diria mesmo: orgasmo – fica-se
de facto paralisado e não apetece contribuir com um testemunho mais sereno.
Quanto a
Vasco Pulido Valente, o mínimo que fizeram foi chamar-lhe “génio” e “gigante”.
VPV era um notável prosador, dono de uma escrita escorreita, limpidamente
clássica, que dava prazer ler. E era um cronista de forte presença assertiva,
embora de curva humoral caprichosa, que o fez debitar um punhado bem avantajado
de dislates, ao lado de percepções agudamente inteligentes e bem informadas.
Como historiador, é óbvio que deixou uma obra limitada que, de modo nenhum, o
coloca a par dos maiores historiadores de Portugal. Personagem controversa mas,
ainda assim, assinalável? Sem dúvida. Génio e gigante da nossa cultura? Haja
senso!
A José
Cutileiro, cantaram vastos e abundantes louvores (a inteligência lusíada teria
atingido, com ele, o seu pináculo!), louvores a tudo e mais alguma coisa,
incluindo a sua alegada deliciosa escrita, tão ágil, tão espirituosa, tão
perfeita. Ora, se alguma qualidade o inteligente José Cutileiro não tinha era
saber escrever. Os seus obituários semanais, no Expresso, causavam-me calos na cabeça, de tão difíceis de ler que
eram: períodos longuíssimos, intermináveis, com subordinadas atropelando-se
mutuamente ou encavalitando-se sucessivamente umas nas outras, produzindo uma
prosa “gauche”, feiosa, coxa, impenetrável, cacofónica. Uma falta de elegância
e de agilidade chocante, que, no entanto, achou maneira de provocar delíquios
orgásmicos em alguns afiambrados cronistas da nossa praça. Há sempre um
telescópio à mão, para quem gosta de transformar o chumbo em oiro.
Maria Velho
da Costa mereceu também alguns louros de antologia. Falou-se, por exemplo,
nesta coisa transcendente, embora possa parecer debitada por uma pitonisa
embriagada: o “poder fundador da fala”, ou, melhor ainda, esta coisa de
profundidade abismal: “a língua viva, carne em recuo” Dir-se-ia que, nesta
escritora, a linguagem é intransitiva, isto é, não veicula nada, ou antes,
veicula-se a si própria. Isto, pelo menos, é o que entrevejo, com alguma dificuldade, porque me sinto todo
enredado naquele portentoso “poder fundador da fala” e naquela perturbante
“língua viva, carne em recuo”! Não faz tudo isto, afinal, remeter-nos para
aquele simplório personagem imaginado pelo Raul Solnado, o qual gostava apenas
de “dizer coisas”?
Gide tinha
razão: tão errado era fazer a Anatole France a destravada e revoltante desfeita
que lhe fizeram os surrealistas, como errados eram os encómios desvairados da
Condessa de Noailles. Os excessos, tanto os afirmativos, como os negativos,
fazem normalmente má pontaria.
A incontinência
admirativa com que as elites intelectuais lusíadas costumam saudar a saída de
cena dos vultos mais assertivos da nossa cultura é um sintoma infalível de
provincianismo. Fernando Pessoa diagnosticou-o e ele ainda por cá anda.
Alguém disse
que “não há êxtase na admiração”. Eu diria, antes, que o êxtase corrompe a
admiração."
18.07.2020
Eugénio Lisboa, em ensaio publicado na coluna "PRO MEMORIA" do JL nº 1300, de 29 de Julho a 11 de Agosto de 2020.
Eugénio Lisboa, em ensaio publicado na coluna "PRO MEMORIA" do JL nº 1300, de 29 de Julho a 11 de Agosto de 2020.
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