sábado, 3 de novembro de 2018

Celebrar o aniversário de Manoel de Andrade

Manoel de Andrade nasceu a 3 de Novembro de 1940. Faz hoje 78 anos. Poeta, ensaísta, jornalista, Manoel de Andrade é um escritor prolífico. Com um passado empenhado e marcado pela resistência à Ditadura militar, que vitimou o Brasil durante décadas do século passado, Manoel de Andrade soube imprimir à sua obra a voz profunda de poeta  e a força mobilizadora de  prosador. 
Ler Manoel de Andrade é descobrir quanto o sonho encheu  e determinou a vida de um jovem poeta, que fez da palavra a arma contra a tirania, a ignomínia , a traição em prol da Liberdade e da Dignidade do Homem. 
Ler  Manoel de Andrade é apreender a História da  América Latina na década de setenta e acompanhar os acontecimentos que marcaram  os respectivos povos, através da sua magna obra memorialística " Nos rastros da Utopia".
Ler Manoel de Andrade  é  celebrar a magia , a plasticidade  de uma escrita que  continua a fabricar novas e luzentes produções que não cessam de cativar os seus fiéis leitores.
Ler Manoel de Andrade é   concluir que estamos perante um  escritor que soube dar à palavra o encanto e o traço que  distinguem as obras no grande  mural  da Literatura.
Ler Manoel de Andrade é não esquecer que , além do homem de Letras, do intelectual,  vive o homem bom e simples que conhecemos e muito estimamos.
Ao Manoel , os nossos vigorosos  Parabéns.
Celebrar um escritor é dar-lhe voz. Transcrevemos um poema  que compõe um dos livros de Manoel de Andrade, " Cantares".


Infância

                                                Ao meu  pai

Lá vai a Dona Biloca levando uma corvina...
Levei uma surra porque peguei um ovo no galinheiro dela
e disse pra minha mãe que achei na rua...
Lá vem a Odair e o Udinho...
Eu sei que eles querem brincar na piscina que eu fiz  
                                                                               [sooozinho..
- Ei Lelo, lá  vem o Seu Badico lavar os cavalos na praia...
- Eu sei, mas depois ele vai  encher a carroça de tainhas,
vai pôr folhas de bananeira em cima  e vai vender lá em 
                                                                             [Medeiros.
-Paaaai!... deixa eu ir com o senhor lá em Medeiros???.
Como eu gosto de lavar o Sanho....ele é tão mansinho...
- Pai... o senhor já nadou até a ilha?
- Pai... depois o senhor me leva até o fundo?
- Pai... eles vão pôr de novo a rede hoje?
- Pai... depois vamos tomar garapa lá no Seu Bebé?

Infância... a indelével imagem da vida
o território mágico da alma
lembrança viva e peregrina que  flutua pelo tempo.
Ah! essa salgada saudade dos braços fortes de meu pai
a levar-me sobre os ombros entre as ondas.
O salto, o mergulho, o torvelinho das águas
minha festa, meu delírio.
Meu mar, meu céu, meu pão de liberdade
meus sete anos correndo atrás das gaivotas
perambulando entre as canoas que chegavam
meus pés vestidos com  pantufas de espuma
a chutar seus densos flocos pelo ar.
As estrelas do mar semeadas ao longo dos meus passos
os siris entrando em seus buracos
os maçaricos andando ligeirinhos pela praia
as redes chegando lentamente com o  cardume aprisionado

                                                               
arraias, bagres, cações
espadas, águas vivas, caranguejos
os pescadores repartindo os peixes agonizantes
os baiacus mortos na areia
os restos do arrastão espalhados sobre a praia
meu samburá repleto de peixinhos.

Ah, a canção intermitente das ondas
o poético itinerário das velas levadas pelo vento
o vôo vagabundo das  aves litorâneas
o dorso escuro dos botos surgindo de quando em quando 
                                                                          [ sobre as águas.
a maré alta da tarde apagando  as marcas da manhã
a minha lagoinha lá perto da ponte
o meu mangue povoado de siris-goiá
meu pai tirando ostras
o rio desembocando lá na barra
a chegada das tainhas no inverno.

Ali morava minha infância
ali, e na imensurável morada do horizonte...
Meus olhos despertavam nas pálpebras entreabertas
                                                                         [ da aurora
e partiam com os mastros que sumiam na distância.
Vagavam no caminho melancólico do crepúsculo
no ocaso das tardes e na penumbra
na sedução da lua cheia sobre o mar.
Ah, Piçarras!... Piçarras!...............................
Não eras ainda esse moderno balneário
e a tua praia era somente  minha o ano inteiro.

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As velas da minha infância,
arriadas pelo tempo, já não saem pra pescar.
As redes daqueles anos,
abertas qual flor nas águas, chegam vazias do mar.
Os cardumes de tainhas,
ligeiras como corisco, já não chegam pra invernar.
As águas vivas do rio,
hoje carregam chorando,  seu veneno para o mar.

Meu manguezal de menino,
berçário de tantas vidas, foi inteiro loteado.

                                                                 
       Minhas canoas à vela,
poemas soltos ao vento, hoje navegam roncando.
O lago era um ovário
cujo canal dava ao rio, e tudo foi aterrado.
Progresso... que desencanto!!!
  sou um estranho nesse ninho, sou uma infância
                                                                       [ chorando.

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Ó mar, ó mar
procuro em vão meus rastros na areia
e por isso meus passos já não serão como um regresso...
Me restará, contudo, sempre  a tua eterna imagem,
tua beleza amanhecida e retocada pelo sol e pela brisa,
tuas verdes planícies que espraiam o mundo.
Resta-me o teu sabor primordial
“o sal da vida”
linfa incorruptível
ventre profundo que dia a dia reinaugura a maternidade 
                                                                                [planetária.
Restam-me tuas noites  pontilhadas pelos faróis do mundo
por Sírius, Antares,  Aldebarã...
por todo o firmamento constelado
e pelo  esplendor dos plenilúnios.

Volto saudoso aos meus mares
porque sempre haverá um leste e um sul magnético no 
                                                                                  [meu peito
apontando-me  o encanto desses íntimos recantos.
Aqui, uma pequenina praia entre pedras e penhascos,
ali, a visão imensa da baía com seus barcos e canoas, 
além,o grito alado das plumagens que voam lentamente 
                                                                                  [sobre as ondas
ao longe, o pesqueiro solitário que demanda as águas fundas.
Relembro este molhe de pedra que avança sobre o mar
do farol da barra  e  desta paisagem soberana
e da minha adolescência cruzando a nado esta corrente.
É o meu Itajaí-Açu desembocando calmamente no oceano
neste mar tão verde desta manhã de sol.
Meu olhar ancora ao longe, nos navios fundeados
e navega, mais além,  pousado no mastro esbelto de 
                                                                               [um veleiro.

Mar, ó mar
restará sempre o teu murmúrio a embalar o mundo
a voz inaudível das profundidades orientando a  rota 
                                                                             [dos cardumes

                                                              
a tua gestação incessante de criaturas
a força imponderável das correntes
a pontualidade das marés
os teus ciclos arquétipos que sustentam a vida.

Mar, ó mar
basta-me hoje o que já me deste desde sempre...
a tua imensidão tatuada nos meus olhos,
verde enseada onde aportou meu lírico destino.
Esses teus encantos, as tuas extensões,  essa totalidade...
todas as tuas medidas eu quisera ter na suprema síntese 
                                                                                 [dos meus versos,
para dá-la ao mundo na  expressão mais bela da poesia:
a face deslumbrante da esperança.

Piçarras-Itajaí, fevereiro de 2005

Manoel de Andrade, in " Cantares", Escrituras Editores, São Paulo, Brasil, pp. 52-56

1 comentário:

  1. Toujours aussi captivant,surtout lorsque l'intelligence émotionnelle est mise en prose. Cela donne l'impression de vivre cette aventure comme si l'on fesait parti du texte.Si vieillir peut paraître un peu ennuyeux ,c'est quand même le seul moyen que l'humanité a trouvé pour vivre plus longtemps en attendant un autre anniversaire. Bom aniversario meu cunhado Manoel.

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