terça-feira, 13 de novembro de 2018

A estética faz parte da alma italiana


A estética faz parte da alma italiana, no tempo dos Medici como hoje
Por Leonídio Paulo Ferreira
"Conversa com Stefano Casciu, académico que veio a Lisboa falar da excelência da arte italiana, sobretudo do caso de Florença, onde uma família de comerciantes, depois grão-duques, patrocinou nomes como Botticelli e Miguel Ângelo.
"Florença deve muito à última dos Medici. Anna Maria Luisa fez algo único. Deixou todo o património artístico da família ao novo grão-duque da Toscana, um Habsburgo-Lorena, mas com a condição de que ficasse em Florença", afirma Stefano Casciu, que esteve em Lisboa para uma conferência intitulada "I musei della Toscana riuniti nel Polo Museale: una assoluta eccellenza italiana".

O académico, desde 2015 responsável pela gestão do património cultural toscano, explica que através dessa decisão os Medici garantiram um lugar na história que outras grandes famílias de mecenas não alcançam, como é o caso dos Gonzaga, que viram um dos seus vender a colecção aos réis de Inglaterra, ou dos Este, que cederam às ofertas do príncipe-eleitor da Saxónia e assim pagaram dívidas. "Por isso hoje a colecção Gonzaga não está em Mântua mas sim na National Gallery de Londres e a dos Este pode ser vista em Dresden e não em Modena." Há também os Farnesi, que de duques de Parma passaram a vice-réis de Nápoles, levando a colecção familiar para os novos domínios, mas nesse caso, depois da reunificação italiana de 1861, pelo menos as obras de arte continuam património do país e não estão expostas num museu estrangeiro.

A conversa decorre no Instituto Italiano de Lisboa. A directora, Luisa Violo, fez questão de nos apresentar como anfitriã que é, e está presente também Paola d'Agostino, da embaixada italiana, que faz a tradução. Antes, o professor Casciu, um sardo (nasceu em 1959 em Cagliari) apaixonado pela Toscana, foi fotografado por Diana Quintela, que procurou como pano de fundo uma obra de arte contemporânea para fazer o contraponto com o classicismo que serviria de tema à entrevista. "A estética faz parte da alma italiana, no tempo dos Medici como hoje", sublinha o académico. Voltaremos a esta ideia.

Ora, em termos de estética é quase impossível competir com o legado dos Medici. "Em Florença, ainda na Idade Média, já se produzia muita arte. Sempre se sentiu na cidade a herança greco-romana, como se houvesse uma continuidade. É certo que aconteceu isso um pouco por toda a Itália, mas uma convergência de factores geográficos, culturais e económicos tornou especial esta cidade de ricos comerciantes. A sociedade exigia arte e patrocinava-a. E havia competição entre a sociedade civil e a eclesiástica na produção de palácios, catedrais, monumentos. Os Medici, família riquíssima de mercadores que acumulou tanto dinheiro que se tornaram banqueiros, percebeu melhor do que ninguém o valor da arte. E no final do século XV, quando assumem o governo da cidade, na época de Lourenço, o Magnífico, patrocinam grandes artistas como Botticelli e Gianbologna", contextualiza Stefano Casciu. E se Botticelli é florentino, já Gianbologna é flamengo, o que mostra a capacidade dos Médici para atrair artistas de grande qualidade.

Pergunto se Miguel Ângelo, filho da Toscana, também não é outro grande nome a associar aos Medici. O professor, que é também membro do conselho de administração da famosa Galleria degli Uffizi, ri-se. "Era uma relação complicada, pois Miguel Ângelo era republicano e os Medici queriam ser nobreza", explica entre risos. Aliás, na sua ascensão a duques e depois grão-duques, os Medici vão usar a cultura, fazendo até uma espécie de diplomacia enviando artistas pela Europa fora. Miguel Ângelo, que fará algumas obras em Florença, nomeadamente na Capela dos Medici, acabará por acolher-se à protecção do Papa Leão X, "que é um Medici", relembra o académico, de novo entre risos. Ao longo do século XVI a família dará quatro papas.
Sendo Botticelli e Miguel Ângelo tão geniais, porque se tornou Leonardo da Vinci, também filho da Toscana mas que fez carreira sobretudo em Milão e na França, o mais icónico dos artistas italianos do Renascimento, pergunto. "Leonardo era o verdadeiro homem do Renascimento. Fez tudo. Era um grande inventor. Um homem completo, total. Como pintor foi importante, e todos conhecemos a Gioconda, mas pintou pouco", responde o académico. Mas isto de ícones tem muito que ver também com as épocas, nota Stefano Casciu. "Caravaggio só se tornou de novo reputado no século XIX", acrescenta. Graças à sua biografia de brigão, de assassino mesmo, o artista nascido no ducado de Milão, já bem dentro do século XVI, afirmou-se assim na modernidade.
Argumentando que o projecto nacional italiano tem fortíssima base cultural, assente na língua e no património artístico, Stefano Casciu destaca as leis do novo Estado para proteger a arte e como isso tem antecedentes em Roma, nos próprios papas, que em 1734 inauguraram os Museus Capitolinos, "os primeiros abertos ao público no mundo". E relembrou que na sua maioria eram papas capazes de apreciar obras profanas, nomeadamente estátuas pagãs vindas dos tempos greco-romanos.
Ora, essa herança greco-romana, associada à posição central da Península Italiana, explica muito do génio artístico, admite o académico, que fala também do clima agradável, das influências várias, desde os fenícios aos árabes, da tradição artesã que na Idade Média fazia de cidades como Lucca o grande centro de produção de seda do Ocidente. "Ainda hoje os artesãos italianos são dos melhores do mundo. Nos tecidos e não só. A moda italiana impõe-se. E mesmo as grandes marcas de luxo francesas quando querem garantir a melhor qualidade buscam produção italiana", diz Stefano Casciu.

Voltamos à estética, que faz parte da tal alma italiana. "Durante muitos anos fomos o único país que ensinava História da Arte ao longo dos anos escolares. E todas as cidades exibem obras de arte. Não existem só nos museus, mas nas ruas também. As crianças italianas crescem a ver arte."
Leonídio Paulo Ferreira, 05 Novembro 2018 , DN

Sem comentários:

Enviar um comentário