terça-feira, 27 de agosto de 2013

Um deslumbramento permanente

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"Já nessa época tomava o pequeno almoço às sete da manhã e era sempre a primeira a chegar à sala. Os pais diziam que ela era o galo lá de casa, pois punha em movimento a criadagem logo de manhã.
Sentava-se na mesa, no lugar que lhe fora destinado desde que era gente, e enquanto não lhe colocassem o leite à frente não parava de o reclamar. Olhava à sua volta e as paredes enormes da sala de pé direito muito alto pareciam protegê-la. A madeira e a pedra que as revestiam transmitiam-lhe uma refinada solidez que ao longo da vida sempre a aquietou. Sentia-se bem naquela sala, mesmo estando sozinha na mesa.
O silêncio da casa era um borbulhar surdo de ruídos melodiosos, eufónicos. Começava na cozinha com os passos abafados da cozinheira até ao roçar da louça na bandeja, estendia-se depois aos toques do relógio de pé do corredor que compassadamente se iam fazendo ouvir e então vinham, em correria deslumbrante, os sons do jardim, dos pássaros imensos, das folhas das árvores, das abelhas em constante laboração, dos cães latindo baixinho, das vozes arrastadas dos trabalhadores anunciando a apanha dos frutos, a recolha das verduras, a passagem dos animais … Enfim,  eram tantos os  sons que entravam magicamente pelas janelas da sala que  lhe pareciam ser o apelo  da vida rodopiando à sua volta. E assim se sentia alegre e feliz logo bem cedo, de manhã.
A mãe só aparecia às sete e meia seguida sucessivamente dos irmãos. A essa hora já estava a respirar cá fora, reconhecendo o seu mundo.
Corria, então, para a garagem seguida pelos cães e apanhava a bicicleta e lá ia directa ao rio que atravessava a quinta. Pelo caminho, ia olhando cada árvore pois conhecia o nome de todas e a todas ia saudando numa interminável e quase ininteligível lengalenga que só ela e as árvores reconheciam. Os cães a seu lado iam ladrando com carinho como que a anunciar que ela estava a passar.
A luz ia penetrando através do arvoredo que se alterava conforme se  aproximava do rio. Aqui, as árvores eram mais espessas, mais imponentes no seu porte e apesar de tão grandiosas acabavam abruptamente numa vasta clareira verde onde inesperadamente surgia o rio.
E a alegria, o prazer e aquele bater descompassado do coração tomavam conta dela. O rio era a sua paixão. Todos os dias assim que o avistava, emergia nela uma plêiade de sentimentos num turbilhão descontrolado que tinha de parar e obrigar-se a arfar o ar com sofreguidão para não morrer logo ali.
 E era assim que imaginara a morte! Deveria ser o transbordar de tanta alegria que entupia a respiração, deixando o coração sem ar. Quem lhe dissera fora a Benta, num dia que a acompanhara ao rio.
“-Ai menina –dissera ela – respire, porque se não meter ar nesse coração, morre já de tanta alegria.”
Saltava da bicicleta e lançava-se em correrias pela margem do rio até o cansaço tomar conta dela. Então, estendia-se na erva e começava a olhar o céu e a chamar os pássaros pelos nomes, reconhecendo o chilrear de cada um antes mesmo de o avistar.
Antero, o filho do caseiro, tinha sido o seu mestre, embora fosse mais novo que ela um ano. Ele era o seu companheiro mais fiel e inteligente. Sabia de tudo da quinta e do rio.
Todas as manhãs, ele vinha para o rio, mas só depois da ordenha das vacas, tarefa que realizava com o pai. Assim, era ela sempre a primeira a chegar.
Quando ele aparecia, trazia o sol nos cabelos e a luz nos olhos. Todo ele brilhava e esse brilho encantava-a.
Ficavam, então, horas a fio reconhecendo a mata para além do rio ou descobrindo novas plantas que germinavam pela quinta. Por vezes, ele desenterrava a jangada de madeira que encontraram num recanto escondido da quinta e lá iam rio abaixo encenando descobertas que retiravam dos livros de aventuras que o pai lhe oferecia.
Era ele que lhe ensinava o nome das flores, das árvores, dos frutos, dos pássaros e lhe traduzia os sinais que a natureza apresentava para anunciar a mudança das estações.
Assim, passou a reconhecer o arco-íris, as falsas marés do rio e até o prenúncio da chuva e da trovoada.
A Primavera era a sua estação preferida. Quando vinha a casa, nas férias da Páscoa, era um deslumbramento permanente.
Antero tinha sempre um novo segredo que ia demoradamente revelando. Recordava-se da ninhada de coelhos numa toca recôndita junto à nascente que abastecia a quinta. Da coruja que ficara presa no galinheiro, do cordeirinho quase um anjo de tão branco, enfeitado com um grande laçarote pastando no jardim à sua espera e de tantos e tantos outros.
Nessa altura, as mimosas e as  túlipas enchiam a quinta de cor. O amarelo salpicando a verdura e o contraste colorido dos canteiros cheios de túlipas variadas eram uma visão que a emocionava logo à chegada.
Os cheiros frescos da terra espalhavam-se no ar e aí ela reconhecia o seu lugar. Era este  o cheiro que Antero trazia com ele.
Que saudade tinha de Antero quando estava longe. Que saudade teria sempre dele.
Os irmãos eram mais novos e ficavam em casa, entregues aos cuidados da  mãe coadjuvada pela preceptora. Naquele tempo, todos eles faziam os primeiros anos de escolaridade em casa. Só mais tarde iam  para os colégios em regime de internato a fim de completarem os restantes graus de ensino.
Havia um recinto junto à casa que funcionava como um parque de recreio. Tinha baloiços de  madeira  suspensos por cordas largas e resistentes, escorregas e um pequeno carrossel.  Existia também um cesto para lançamento de  bolas .
Todas as manhãs,  os  irmãos brincavam neste recinto sob a atenta vigilância da mãe e  da Augusta, a criada que os vira nascer, enquanto ela corria pela quinta na companhia de Antero.
Na parte da tarde, antes da merenda havia  a “hora da leitura”. A essa nunca faltava, nem mesmo quando crescera e os contos infantis foram  sendo substituídos pelas aventuras inéditas de Jules Verne, pelo romance histórico  de Walter Scott ou de Alexandre Dumas,  pelas  Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano ou  até pelo acervo bucólico  de Júlio Dinis.
Antero fora sempre convidado para assistir. Lá aparecia de roupa lavada e engomada e sentando-se  a seu lado, na mesa redonda , fechava os olhos quando  a  preceptora iniciava a leitura e a sua voz se ia cambiando em matizes diferentes e expressivos para dar forma ora ao narrador, ora  a uma personagem, ora a outra e ainda outra que fulgurantemente ia alternando e que de tão diversas  e de  bem engendradas  o  transportavam  para lugares  longínquos e fantásticos onde protagonizava   peripécias surpreendentes.
E assim nascera o gosto pela leitura que o acompanharia por toda a vida.
Quando a merenda chegava, Antero bebia sumo e comia o bolo de cenoura que a Benta fazia quase diariamente. Para ele tinham acabado as tarefas de ajuda ao Pai na quinta. Ficava então pela casa e juntos iam descobrindo o segredo dos livros.
A biblioteca era um lugar mágico. As paredes eram apenas livros já que eram eles que ressaltavam em tantas estantes enfileiradas e repletas até ao cimo quer por grandes exemplares, quer por pequenos. As enciclopédias distribuíam-se pelo lado direito da sala junto à mesa de entrada. Seguiam-se os dicionários e só depois se iam enfileirando todos os outros livros. Descobri-los passou a ser uma campanha diária.
E para eles  o mundo girava entre estas duas grandes campanhas: os livros e a Quinta." Maria José  Vieira de Sousa, in " O Lugar, memórias de um romance", Junho de 2008

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