domingo, 30 de novembro de 2025

Ao Domingo Há Música

Samba Em Prelúdio

Eu sem você
Não tenho porquê
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Luar sem amor
Amor sem se dar

Eu sem você
Sou só desamor
Um barco sem mar
Um campo sem flor
Tristeza que vai
Tristeza que vem

Sem você, meu amor, eu não sou ninguém

Ai, que saudade
Que vontade de ver renascer nossa vida
Volta, querido
Os meus braços precisam dos teus
Teus abraços precisam dos meus

Estou tão sozinha
Tenho os olhos cansados de olhar para o além
Vem ver a vida
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém

Eu sem você (Ah)
Não tenho porquê (Que saudade)
Porque sem você (Que vontade de ver renascer)
Não sei nem chorar (Nossa vida)
Sou chama sem luz (Volta, querido)
Jardim sem luar
Luar sem amor (Os meus braços precisam dos teus)
Amor sem se dar (Teus braços precisam dos meus)

Eu sem você (Estou tão sozinha)
Sou só desamor
Um barco sem mar (Tenho os olhos cansados de olhar)
Um campo sem flor (Para o além)
Tristeza que vai (Vem ver a vida)
Tristeza que vem

Sem você, meu amor, eu não sou ninguém
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém
Vinicius de Moraes

Vem ver a vida, diz o poeta que  também canta. E nós acrescentamos,  vem ouvir estas canções que tanto nos encantaram e continuam a seduzir-nos. A vida  também vem nelas. E, com elas , é o Brasil que nos chega , nesse  seu linguarejar doce e singular, nas  vozes de grandes cantores, que marcaram para sempre a Música Brasileira.

Vinicius de Moraes com BethâniaCreuza Toquinho, em Samba Em Prelúdio.
 
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo,  em  Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim.
 
Elis Regina, em  Cais (Lyric Video).
 
Milton Nascimento & Chico Buarque, em  O Que Será A Flor da Pele.
  

sábado, 29 de novembro de 2025

Dos princípios das relações humanas...


A  escalada da violência nos tempos actuais atenta contra   a dignidade humana, sem qualquer regra ou pudor.  O quotidiano está repleto de cenas reais dessa violência, das mais diversas formas de barbárie , que vão assumindo proporções “espantosas”, mas que, para assombro, já não causam tanto espanto.
Trata-se de uma violência que se alastra e se banaliza pela continuidade com que se desenvolve e intensifica, Assim e em consequência,  enquanto a dignidade humana se vai  desgastando, pela banalização da violência,  o valor da pessoa    também  se vai  corroendo. Torna-se  crucial  evitar que haja a corrosão completa daquele valor, por causa da violência que se escancara diariamente.
Os princípios  que devem orientar o “ethos” do coexistir humano, cuja base pretende  ser a busca pelo mais profundo respeito de um pelo outro, para se firmar num sempre renovado esforço e num constante reforço de pessoalização das relações humanas, há muito que foram definidos. E esses princípios, como assinalou Guy Durant, não se  podem  afastar de pelo menos dois aspectos primordiais: “o respeito à vida e à autodeterminação da pessoa.” (1995, p. 31)"
Recordamos os principais:

LIBERDADE - A liberdade é um direito fundamental que nunca deve ser alienado; faz parte da pessoa humana como pertença intrínseca e definidora do seu agir.
Ser livre pressupõe que se exerce, em plenitude, o direito de ser e de ter um nome, um lugar para construir uma narrativa identitária e única. Quando se exclui a alguém esse direito, a liberdade jaz e faz jazer quem a usurpa.
Os usurpadores dos direitos fundamentais são os que atentam contra a universalidade da humanidade. A eles se dirigem as vozes da revolta, da ira e da razão.

IGUALDADE - "o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo."

DIGNIDADE _ "O que se pode dizer é que a dignidade humana implica mesmo um valor sublimado, cuja base de afirmação é a própria natureza de cada ser humano que merece o máximo de protecção. E ela também inclui as noções cruciais de racionalidade, liberdade e finalidade em si, as quais fazem desse ser humano alguém em permanente desenvolvimento, na busca de oportunidades para os seus projectos de vida. O  outro é alguém (e não apenas algo), que merece respeito pela sua condição de pessoa e que, por isso, não pode ser objectiva e subjectivamente usada como meio."

DEMOCRACIA - "Os valores fundamentais e permanentes da democracia são a liberdade e a diversidade, entendida a primeira como princípio sobre o qual deve fundar-se a organização política da sociedade, e a segunda, como corolário que leva necessariamente ao pluralismo."

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

O Poema

Pedra nativa
(fragmento)

Como as pedras do Princípio
Como o princípio da Pedra
Como no Princípio pedra contra pedra
Os fastos da noite:
O poema ainda sem rosto
O bosque ainda sem árvores
Os cantos ainda sem nome
Mas a luz irrompe com passos de leopardo
E a palavra se levanta ondula cai
E é uma extensa ferida e puro silêncio sem mácula
Octavio Paz, em Transblanco: em Torno a Blanco, [tradução Haroldo de Campos]. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
O Poema 
"O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há verdadeiro poema que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para além daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia."
José Tolentino Mendonça, in A noite abre meus olhos, Edição Assírio & Alvim, Dezembro de 2014
Falar de Poesia
"Antes de tudo, não falar. O poema tem todas as palavras necessárias para que não seja preciso dizer mais nada, partir dele.
Depois, falar devagar.
Falar da sua construção. Procurar a origem do poema por dentro do que ele nos diz.
Falar com o poema. Falar de cada palavra, de cada verso. Encontrar através deles os fios de uma lógica que não passa apenas pelo sentido ou pelo que é dito, mas sobretudo pelo que só a percepção instintiva, sensorial, pode captar, no que está para além do que é dito e se solta das próprias palavras.
Ouvir o poema para poder falar dele.
Ignorar todos os discursos sobre o poema e sobre a poesia. Esse lixo verbal só nos impede de ouvir o que o poema tem para dizer.
Depois de falar do poema, e só depois, procurar saber o que outros disseram? Pura curiosidade.
Procurar, como um suplemento de curiosidade, o que os próprios poetas disseram do poema e da poesia.
Se tivermos sabido, com essa leitura, alguma coisa para além do que o poema nos disse, desconfiemos do poema.
Um poema, quando o é, diz tudo o que há para saber sobre si."
Nuno Júdice, in Relâmpago, n.º 6, Abril, 2000

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Carta à minha Mãe



Quem inventou a distância nunca sofreu a dor da saudade.
   François de La Rochefoucault

Saudade é ser, depois de ter.
    Guimarães Rosa

Querida Mãe
Deitei-me e acordei a pensar em si. A primeira notícia que  me chegou pelo noticiário foi que se celebrava, hoje, o Dia Mundial do Fado. E que o Fado é sobretudo uma canção que se impregna de saudade, sublinhava a notícia. 
Não lhe venho falar do Fado, mas venho, sim, falar de Saudade. Não da saudade que  se sublinha no Fado. Quero apenas afagar uma outra saudade . Aquela que me enche o coração, desde que partiu. Aquela que se enrola nas palavras, que não sou capaz de pronunciar, sempre que me faz falta. E como me faz falta, querida mãe.
Hoje é o dia do seu aniversário. E festejávamo-lo todos. Os filhos, os netos, o pai e  a saudade não existia. Estávamos juntos . Era dia de festa , de alegria . Em si, ela existia para nos brindar e avisar que nem sempre a vida sorria ,mas nós podíamos fazê-la sorrir. E o seu sorriso dizia isso e tudo que nos enchia de esperança na vida.
E hoje, querida mãe, não está aqui. Como me faz falta. Queria apenas abraçá-la  e sentir-me  apertadinha nos seus braços para que a saudade se fosse e eu me sentisse novamente a apagar as velas do bolo do seu aniversário. E que sorrisse e o brilho voltasse e a vida se enchesse de Esperança.
Que saudade , querida mãe.
Parabéns.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Viajar pela Ásia

Sentimos uma necessidade absoluta de nos movermos.
Mais , de nos movermos numa direcção específica. Uma dupla necessidade, portanto de nos pormos a caminho e de sabermos para onde.
             D. H. Lawrence, Sea and Sardinia

 
Asia 4K, pelo Scenic Relaxation Film  
"A Ásia abriga os países mais bonitos do planeta! Aproveite este filme de relaxamento cénico em 4K enquanto ele viaja por 40 países asiáticos. Das paisagens vulcânicas da Indonésia aos exuberantes campos de chá do Vietname, há beleza e maravilhas em cada canto da Ásia! Descubra qual é o seu país asiático favorito?" Scenic Relaxation Film 

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Celebrar o nascimento de Eça de Queiroz

Eça de Queiroz, (25 Nov. 1845 -16 Agosto1900)
"José Maria de Eça de Queiroz nasceu a 25 de Novembro de 1845 na Póvoa de Varzim, filho de José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz e Carolina Augusta Pereira d´Eça. Criado inicialmente pela sua ama e madrinha em Vila do Conde, passou a infância em casa dos avós paternos. Frequentou o Colégio da Lapa, no Porto, e mais tarde ingressou na Universidade de Coimbra, onde conheceu figuras como Antero de Quental e Teófilo Braga, integrando a famosa “Geração de 70”. Em 1866, licenciou-se em Direito e iniciou uma breve carreira como advogado, mas foi no jornalismo e na literatura que encontrou a sua verdadeira vocação.
Em 1869, numa viagem ao Médio Oriente, inspirou-se para algumas das suas obras, e, ao regressar a Lisboa, foi nomeado Administrador do Concelho de Leiria. Juntamente com Ramalho Ortigão, colaborou em O Mistério da Estrada de Sintra e em As Farpas, criticando a sociedade da época com ironia e acutilância. No mesmo período, começou a sua carreira diplomática, sendo nomeado cônsul em Havana, Newcastle, Bristol e, finalmente, em Paris.
A sua produção literária incluiu obras fundamentais do Realismo português como O Crime do Padre Amaro (1875), O Primo Basílio (1878) e Os Maias (1888), onde expôs com crueza os vícios e hipocrisias da sociedade portuguesa. Outras obras importantes incluem A Relíquia (1887), A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras, publicadas postumamente.
Em 1886, casou com Emília de Castro, com quem teve quatro filhos. Viveu os últimos anos em Paris, onde, debilitado por problemas de saúde, faleceu a 16 de Agosto de 1900. O corpo foi trasladado para Portugal, sendo sepultado inicialmente em Lisboa e, posteriormente, em Santa Cruz do Douro, a sua amada Tormes."
Os restos mortais do escritor foram trasladados para o Panteão Nacional, no dia 8 de Janeiro de 2025.
A sua obra, caracterizada pelo realismo, crítica social e inovação narrativa, continua a ser uma referência central na literatura portuguesa, marcando um período de grande transformação e modernidade nas letras nacionais.
Eugénio Lisboa  afirmava, num dos muitos artigos que escreveu sobre o autor de "Os Maias :"«Eça de Queirós, ao malhar no país, sem piedade e com a celebrada bengalada do homem de bem, seja n’Os Maias, seja n’O Conde d’Abranhos, n’A Capital, n’O Primo Basílio, em Uma Campanha Alegre ou n’A Relíquia, causa, nos reaccionários quimicamente puros, crispações de recuperação lenta e difícil. Invoca-se, em geral e para o caso, o patriotismo de que ele teria estado malignamente deficitário. Ele e toda a sua geração de campeadores melhoristas, gente sem sentimentos de boa cepa tradicionalista... Por mim, reajo sempre de modo diferente: só quem ama se indigna. Os grandes escritores que amam muito o seu país sofrem profundamente quando ele não vive à altura das mais exigentes expectativas.
"Ao lançar, em 1888, após longos anos de labor, o romance Os Maias, Eça de Queirós estava bem consciente de ter produzido uma obra diferente de tudo quanto, até aí, tinha feito. Cortando claramente com o modelo de romance francês – curto, linear e dramático – Eça, n’Os Maias, arrastava a asa às vastas construções romanescas dos grandes romancistas ingleses, Dickens, Thackeray, George Eliot… Obras de grande dimensão e de “tempo lento”, dentro das quais o leitor era aprisionado e tornado cúmplice daquela paróquia ficcional - quase um habitante dela.
O mais interessante é que Eça, um dissimulador nato, como penetrantemente observou o seu biógrafo Alfredo Campos Matos, iria “fingir”, junto dos amigos mais chegados, que via, nessa “vasta machine” que eram Os Maias, um grande “defeito”: o seu desmedido tamanho. Em carta a Oliveira Martins, datada de 12.6.1888, por exemplo, observa: “Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes.” E, com falsa modéstia, aconselhava o amigo: “Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos demais para ler.” E indicava os episódios do romance que merecia a pena ler, deixando de lado o resto, para não andar “a procurar através daquela imensa massa de prosa.” Em carta a Fialho de Almeida, datada de 8.8.1888, refere-se ao livro chamando-lhe, sucessivamente, “calhamaço” e “grosso cartapácio”. E, em carta a Luís de Magalhães, datada de 10.5.1884, diz o seguinte, em tom de franco auto-denegrimento: “Eu continuo com Os Maias, essa vasta machine, com proporções enfadonhamente monumentais de pintura a fresco, toda trabalhada em tons pardos, pomposa e vã e que me há-de talvez valer o nome de Miguel Ângelo da sensaboria.”
Todo este exercício de auto-apoucamento é, evidentemente, insincero. Ninguém iria dedicar tantos anos de esforçado e obstinado labor a uma obra que tão pouco prezasse.
(...) Foi esta capacidade de indignação, ao serviço de um extraordinário talento para a observação e para a caricatura, que fez de Eça o extraordinário “poeta satírico”, como, com justeza e justiça, lhe chamou Régio. Eça era dotado de uma poderosa força caracterizadora, sempre atento ao pormenor excessivo e revelador de um gesto, de uma careta de uma sobrancelha ou de um vestuário de que a precisão e minúcia divertidas nos encantam. A dimensão de Os Maias, repito, não foi um acidente de percurso, não foi algo de defeituoso que resultou de o autor não ter conseguido fazer o romance mais curto. Mais de um crítico contemporâneo da publicação do livro fez o diagnóstico errado, ao sugerir que, em vez dos dois grossos e desmedidos volumes da obra, Eça teria podido e devido tirar dali vários romances mais pequenos… A extensão do romance teria sido, segundo eles, um percalço. Nenhum se apercebeu de que aquele “tempo lento”, aquele arrastado mover-se a passo de tartaruga, aquela quase imobilidade de elefante ou de grande montanha – era o grande valor do livro. Era essa duração obstinada que permitia ao narrador criar aquele universo hermético, pletórico de criaturas duradouramente presentes ao convívio com o leitor, o qual leitor acabava por se tornar, de direito, um personagem daquela paróquia ficcional."

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Pensamentos para o dia


"Jamais haverá ano novo se continuar a copiar os erros dos anos velhos."
Luís Vaz de Camões (1524-1580), o grande poeta  da Literatura Portuguesa e um dos grandes poetas do Ocidente.

"Não é o homem que faz a visão. É a visão que faz o homem."
Mahatma Gandhi (1869-1948).

"Seja a mudança que deseja ver no mundo."
Mahatma Gandhi (1869-1948), líder pacifista conhecido como o pai da nação indiana.

domingo, 23 de novembro de 2025

Adenda a " Ao Domingo Há Música"

O poeta brasileiro Manoel de Andrade teceu um douto comentário à  rubrica "Ao Domingo Há Música". Pretendendo acompanhá-lo com três fotografias que não foram incluídas nesse espaço, juntam-se agora:





O comentário de Manoel de Andrade:

Parabenizo a editora por esta bela postagem. Tão providencial no atual e angustiante contexto geopolítico da Ucrania, tão mutilada. Taras Chevtchenko, um artista iluminado, memória imperecível no renascimento cultural do povo ucraniano no século XIX. Foi o cantor da liberdade influenciando a consciência libertária do seu povo e cujas ideias inspiram até hoje a luta pela soberania da Ucrania. Temos, em Curitiba, uma estátua do poeta numa Praça com seu nome.
E na minha biblioteca, tenho um tesouro: uma edição bilíngue comemorativa aos 200 anos do seu nascimento, publicada pelo Consulado Honorário da Ucrânia no Paraná.Contanto com a tua generosa permissão, trago toda a expressão do poema Testamento, que você publicou os primeiros versos.
Em alguma página já escrevi que os poetas não morrem jamais, seguem vivos no lirismo e na magia dos seus versos, na memória agradecida dos povos e nos registros indeléveis da História.
Manoel de Andrade

Ao Domingo Há Música



Testamento (Zapovit)

Quando eu estiver morto, enterre-me
Na minha amada Ucrânia,
Minha tumba sobre um túmulo alto
No meio da vasta planície,
Para que os campos, as estepes sem limites,
A costa do rio Dnieper
Meus olhos pudessem ver, meus ouvidos pudessem ouvir
O poderoso rio rugir.
Taras Shevchenko (1814–1861), poeta, pintor e figura central do romantismo ucraniano cuja obra principal "Kobzar" , uma coletânea de poemas que se tornou símbolo da identidade nacional.
O poema Testamento é visto como um apelo  à liberdade e à resistência contra a opressão. Tornou-se um texto fundamental na cultura ucraniana, recitado em momentos de luta e esperança.
Simples, directo e profundamente emotivo, refletindo tanto o amor pela pátria como a dor da opressão.

No momento actual, em que a invasão da Ucrânia pela Rússia se radicalizou , quase transformando um acto vil, cruel e contrário ao Direito Internacional e  ao ordeiro respeito entre Nações , num acto de livre, merecida e aceitável justificação. O ditador e bárbaro presidente da Rússia impõe, em aparente declarado conluio com o seu equivalente americano, impróprias e indignas condições à Ucrânia para se render e se entregar, amputada e sem defesa, ao carrasco que destruiu o seu país,  dizimou cidades, campos e impiedoso  torturou,  matou indiscriminadamente. 
A ignomínia é tão medonha que ninguém pode ficar indiferente. Recordo Eugénio Lisboa, que,  num enérgico poema aos poetas portugueses silenciosos perante a catatástrofe1, lhes  apelava: Onde está a vossa Musa/ bem canora e eloquente/ que ao bandido que abusa / faz frente intransigente/ (...) À guerra que tudo esmaga,/ opondo a luta imortal,/  que ao invasor embarga/ o seu avanço letal!
Estendo o mesmo apelo ao Mundo para que não permita esta hedionda proposta a um povo que se defende de um sanguinário invasor e luta pela sua liberdade, pela sua independência.

 “Ой у лузі червона калина” (Oi u luzi chervona kalyna – Oh, no prado, o viburno vermelho) arranjo  de Tomas Dičiūnas e interpretado  pelos Lithuanian opera singers: Viktorija Miškūnaitė, Monika Pleškytė, Rafailas Karpis, Edgaras Davidovičius, Jonas Sakalauskas, Arminas Skirvainis, Paulius Prasauskas e o Ukrainiano  músico Andriy Khlyvnyuk .É uma das mais emblemáticas canções da tradição ucraniana, com uma história que atravessa mais de um século. Foi composta em 1914 por Stepan Charnetskyi, dramaturgo e poeta ucraniano, como parte de uma peça patriótica. O “chervona kalyna” (viburno vermelho) é um símbolo nacional da Ucrânia, associado à beleza, resistência e liberdade. A letra fala da Ucrânia que “se inclina” sob opressão, mas que voltará a erguer-se, transmitindo esperança e força colectiva. Tornou-se um hino patriótico durante a Primeira Guerra Mundial e mais tarde na luta pela independência. Foi cantada por soldados da Sich Riflemen, unidade militar ucraniana, como canção de marcha. 
Em 2022, ganhou nova projecção internacional quando o cantor Andriy Khlyvnyuk, da banda BoomBox, a interpretou em Kiev; a gravação viralizou e inspirou versões de artistas como Pink Floyd, que lançaram uma adaptação solidária."

Oh, no prado, o viburno vermelho se inclinou,
Por alguma razão, a nossa gloriosa Ucrânia se entristeceu.
E nós levantaremos esse viburno vermelho,
E nós alegraremos a nossa gloriosa Ucrânia!

Não deixaremos que os moskovitas dominem a Ucrânia,
Vamos levantar-nos, irmãos, e libertar a nossa pátria.
E nós levantaremos esse viburno vermelho,
E nós alegraremos a nossa gloriosa Ucrânia!

  
Ukrainian Choir,  em  'Agnus Dei'.
Uma noite de luar - A mais bela canção ucraniana 
"Esta canção  é  dedicada  ao bravo povo ucraniano que sofre sob a brutal invasão russa , pela Orquestra Sinfónica e Coro Gimnazija Kranj . Os nossos músicos tocaram essa linda canção de amor há alguns anos. Diana Novak fez um arranjo incrível. Foi composta por Mykola Lysenko, com letras escritas por Mykhailo Starytsky. Arranjo: Diana Novak. Solistas: Rok Zupanc, Lovro Krišelj. Mestre do Coro: Erik Šmid. Maestro: Nejc Bečan com a   Gimnazija Kranj Symphony Orchestra.
A produção da PPZ dedica esta linda canção de amor a todo bravo povo ucraniano, que nunca se renderá. A liberdade deles é a nossa liberdade. As suas vidas são as nossas vidas! (Basta activar as legendas em português.)"

1 Eugénio Lisboa, in Poemas em tempo de guerra suja, Editora Guerra & Paz, Setembro de 2022, p 18

sábado, 22 de novembro de 2025

Uma simples flor nos teus cabelos

 



Uma simples flor nos teus cabelos
por José Cardoso Pires
«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacu­dindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.
Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.»

«Marcaste o despertador»
«Hã?»
«O despertador, Quim. Para que horas o puseste?»

«...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...»

«Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?»
«O despertador?»
«Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força, caramba.»
«Pronto. Estás satisfeita?»
«Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.»

«- Mais um mergulho - pedia a rapariga.
A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço;
- Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda.
Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga.
- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos vestir?
Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro.
Paulo apertou mansamente a mão da companheira;
- Embora?
- Embora - respondeu ela.
E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.»

«Quim... »
«Outra vez?»
«Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada, estou a ver que tenho de tomar outro comprimido.»
«Lê um bocado, experimenta.»
«Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga... É isso, preciso de mudar de droga

«- Tão bom, Paulo. Não está tão bom?
- Está óptimo. Está um tempo espantoso.
Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo as pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que havia entre ela e o mar, e os olhos iam-se-lhe carregando de brilho.
- Tão bom - repetia.
 - Sim, mas temos que ir.
Com o cair da tarde a névoa desmanchava-se pouco a pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá-lo de terra como uma muralha apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa surgiam numa claridade humilde e entristecida. Já de pé, Paulo avistava ao longe a janela iluminada do restaurante.
- O homem deve estar à nossa espera - disse ele. - Ainda não tens apetite?
- E tu, tens?
- Uma fome de tubarão.
- Então também eu tenho, Paulo.
- Ora essa?
- Tenho, pois. Hoje sinto tudo o que tu sentes. Palavra.

«Se isto tem algum jeito. Qualquer dia já não há comprimidos que me cheguem, meu Deus.»
«Faço ideia, com essa mania de emagrecer... »
«Não, filho. O emagrecer não é para aqui chamado. Se não consigo dormir, é por outras razões. Olha, talvez seja por andar para aqui sozinha a moer arrelias, sem ter com quem desabafar. Isso, agora viras-me as costas. Nem calculas a inveja que me fazes.»
«Pois.»
«Mas sim, fazes-me uma inveja danada. Contigo não há complicações que te toquem. Voltas as costas e ficas positivamente nas calmas. Invejo-te, Quim. Não calculas como eu te invejo. Não acreditas?»
«Acredito, que remédio tenho eu?»

«Que remédio tenho eu... É espantoso. No fim de contas ainda ficas por mártir. E eu? Qual é o meu remédio, já pensaste? Envelhecer estupidamente. Aí tens o meu remédio.»
«Partiram às gargalhadas. À medida que se afastavam do mar, a areia, sempre mais seca e solta, retardava-lhes o passo e, é curioso, sentiam as noite abater-se sobre eles. Sentiam-na vir, muito rápida, e entretanto distinguiam cada vez melhor, as piteiras encravadas nas dunas, a princípio pequenas como galhos secos e logo depois maiores do que lhes tinham parecido à chegada. E ainda as manchas esfarrapadas dos chorões rastejando pelas ribas arenosas, o restaurante ermo, as traves; de madeira roídas pela maresia e, cá fora, as cadeiras de verga, que o vento tombara, soterradas  na areia.
- O mar nunca aqui chega - tinha dito o dono da casa. - Quando é das águas vivas, berra lá fora como um danado. Mas aqui, não senhor. Aqui não tem ele licença de chegar.»

«A verdade é que são quase duas horas e amanhã não sei como vai ser para me levantar. Escuta...»
«Que é?»         
«Não estás a ouvir passos?»
«Passos?»
«Sim. Parecia mesmo gente lá dentro, na sala. Se soubesses os sustos que apanho quando estou com insónias. A Nanda lá nisso é que tem razão. Noite em que não adormeça veste-se e vai dar uma volta com o marido, a qualquer lado. Acho um exagero, eu nunca seria capaz de te acordar... mas, enfim, ela lá sabe. O que é certo é que se entendem à maravilha um com o outro. E isso, Quim, apesar de ser a tal tipaque tu dizes. Também, ainda estou para ter uma amiga que na tua boca não seja uma tipa ou uma galinha
José Cardoso Pires in Jogos de Azar, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999 (7ª ed.).

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Há 32 anos...

Data de 21 de Novembro de 1993, a célebre canção Streets of Philadelphia, de Bruce Springsteen. Aconteceu há precisamente 32 anos.
A realidade que tentava mostrar no filme Filadélfia, dirigido e produzido por Jonathan Demme, escrito por Ron Nyswaner , com Tom Hanks e Denzel Washington alterou-se muito, desde essa época. Filmado em Filadélfia , conta a história do advogado Andrew Beckett (Hanks) que pede a um advogado, Joe Miller (Washington), que o ajude a processar o seu antigo escritório de advocacia, que o demitiu após descobrir que ele era gay e tinha Sida , AIDS . O elenco também conta com Jason Robards , Mary Steenburgen , Antonio Banderas e Joanne Woodward .
“Streets of Philadelphia” é uma canção vencedora de Óscar , escrita e interpretada por Bruce Springsteen para o filme de 1993, Filadélfia. A canção tornou-se popular em muitos países, particularmente no Canadá, França, Alemanha e Irlanda onde esteve na primeira posição das tabelas musicais.
A canção foi um sucesso de crítica e ganhou o Óscar de melhor canção original e quatro prémios Grammy, incluindo Canção do Ano, Melhor Canção de Rock, Melhor Performance Rock – Vocal e Melhor Canção de Filme."
.

Mas a vida anda louca

Sabe o que eu queria agora, meu bem?
Sair, chegar lá fora e encontrar alguém
Que não me dissesse nada
Não me perguntasse nada também 
Que me oferecesse um colo, um ombro
Onde eu desaguasse todo desengano 
Mas a vida anda louca
As pessoas andam tristes
Meus amigos são amigos de ninguém
Sabe o que eu mais quero agora, meu amor?
Morar no interior do meu interior 
Pra entender por que se agridem 
Se empurram pr'um abismo
Se debatem, se combatem sem saber
Meu amor 
Deixa eu chorar até cansar
Me leve pra qualquer lugar
Aonde Deus possa me ouvir 
Minha dor 
Eu não consigo compreender
Eu quero algo pra beber
Me deixe aqui, pode sair 
Adeus 
Vander Lee
  
Gal Costa, em Onde Deus Possa Me Ouvir, do Álbum Gal Bossa Tropical. Composição de Vander Lee.
 
Dori Caymmi, em  Lembra De Mim.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Soneto muito gauche


133- Putin caricature stock illustrations

SONETO MUITO GAUCHE PARA USO DOS
OPRESSORES DO MOMENTO

Os ditadores usam a cartilha
normalmente usada por quem oprime.
O opressor percebe bem que trilha
inocentes e que nada o redime.

A razão do opressor é a força,
já que outra razão não tem.
Porém a força a razão reforça
e a razão faz da força seu refém.

A sabedoria dos opressores
é o contrário de saber viver:
o uso constante dos seus terrores

é sementeira que fará colher
os tais destemidos frutos da ira,
que atira os restos da força à pira!
25.02.2022

Nota do autor – Quem não tem cão caça com gato. Quem não tem espingarda dispara soneto mal-amanhado.
Eugénio Lisboa, in Poemas em tempo de guerra suja , Editora Guerra & Paz , Setembro de 2022, p 17

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Como cheguei atrasado à independência de Angola


De Frederico Füllgraf, jornalista , cronista , ensaísta, cineasta, escritor brasileiro de ascendência alemã, recebi este singular texto, um oportuno documento histórico que , nas palavras do autor, é um misto de crônica dramática e divertida que integra o livro que estou escrevendo sobre meus 40 anos de atividade profissional.
Ao Frederico, apresento os meus agradecimentos amigos.

Como cheguei atrasado à independência de Angola, “sequestrado” por uma fake new
por Frederico Füllgraf
"Era o início da tarde do dia 11 de novembro de 1975, quando o avião decolou do Aeroporto da Portela, em Lisboa, rumo a Luanda, capital de Angola.
Juntos, os passageiros - um grupo de politicos portugueses, diplomatas credenciados em Lisboa e jornalistas - não somavam mais que um punhado de quarenta indivíduos concentrados em um Boeing 747 da TAP, cujo interior mais se assemelhava a um estádio de futebol com arquibancada quase vazia.
Alegria e tensão teciam o clima a bordo. Em conversas animadas, alguns grupos come- moravam a proeza do voo de última hora. Outros, o corpo rijo e em silêncio, conferiam, ansiosos, o horário em seus relógios. É que todos estávamos convidados para o ato histórico da declaração da Independência de Angola, programado para a noite daquele 11 de novembro, por ninguém menos que Agostinho Neto, lendário poeta e líder do MPLA, o Movimento Popular pela Libertação de Angola.
Autor do último programa que iria ao ar pela renomada série “Dritte Welt” (“Terceiro Mundo”) da editoria de cultura da WDR – a maior emissora da rede ARD de rádio e televisão de direito público da Alemanha, em Colônia – eu fora escolhido como enviado especial para cobrir a independência e entrevistar nomes ilustres sobre o porvir do novo país africano.
Quando decolamos, na capital angolana deviam ser umas três da tarde. O tempo do voo seria de umas sete horas, e sendo o fuso horário entre Lisboa e Luanda de uma hora, se tudo corresse bem, pousaríamos em Luanda às dez da noite, em plena festa.
Servido o lanche pelas gentis comissárias de bordo, alguém chamou a atenção para a tela de cinema vazia e muda, pedindo que projetassem um filme. Ao que uma comissária respondeu que o projetor estava com defeito.
Cansado, acumulando noite prévia muito curta devida ao voo de conexão de Berlim, onde residia, a Lisboa, adormeci, embalado pelo burburinho monótono das turbinas e do ar rasgado diante da janela.
De repente, uma mão tocou meu ombro. Era uma das comissárias, pedindo que eu recolocasse o encosto do assento em posição vertical. Agora era servido um jantar. E para supresa geral, na tela cintilava um filme. Que, se não me falha a memória, era nada menos que o elégico “Casablanca”, com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Sobrevoando a África, aquilo era uma ironia?
Me senti abobalhado, não podia acreditar.
Mas ocorria algo ainda mais estranho. Enquanto consumíamos o jantar, alternando olhares entre o garfo e as cenas na tela, o avião inclinou-se para um lado, iniciando uma longa curva no céu noturno. Mirei o relógio de pulso, e ele marcava alguns minutos passados das oito da noite.
A inclinação do avião parecia não ter fim e detonou protestos entre os passageiros. Alguns levantaram-se, ocuparam o corredor e em voz alta cobraram uma satisfação. Ensaiando calma, a comissária-chefe explicou que o voo estava retornando a Lisboa. Como assim, Lisboa?! A comissária se desculpou por ignorar o motivo, cuja explicação era prerrogativa do piloto.
A julgar pelo tempo de voo já decorrido, faltava hora e meia para a aterrissagem em Luanda. Deveríamos estar sobrevoando o delta do Rio Congo, estimei.
Preocupados, alguns passageiros acudiram à cabine de comando, cobrando satisfações ao piloto. Que irrompeu no corredor, explicando que tinha recebido ordem da TAP, baseada em noticia de que o aeroporto de Luanda estaria sendo “bombardeado” - portanto, colocando em risco a segurança do avião e de seus pocupantes. Mas isto seria verdade?, questionou o coro de pessoas irritadas.
Obviamente, sabia-se que a partir de meados de 1975, desde o extremo sul e do extremo norte, Angola sofria uma invasão militar conjugada do regime do apartheid sul-africano e o Zaire, com carros blindados, milhares de soldados e mercenários recrutados mundo afora. A operação visava apoiar a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), inimigas do MPLA, que ameaçavam invadir Luanda.
Desconfiado da notícia do “bombardeio”, um jornalista português sugeriu que o avião desviasse da rota, pousasse em Brazzaville - capital da vizinha República do Congo – e desmentida a noticia, de lá retomasse seu voo a Luanda. Mas invocando obediência a ordens superiores, o piloto rechaçou o “desvio”, provocando a insinuação irônica de outro passageiro, de que o voo deveria ser “sequestrado”. E pensando bem: não ouvida, nem respeitada, a maioria dos passageiros sentia-se, sim, abduzida pela TAP.
Após umas longas cinco horas de voo, entre uma e duas da manhã, pousávamos novamente em Lisboa. Tínhamos feito um “passeio” inócuo de quase doze horas sobre o Atlântico Sul... Desconsolados, alguns passageiros se entreolhavam, abanando a cabeça.
Inacreditável!
Desembarcados, fomos guiados ao balcão da TAP, que nos entregava vauchers para um hotel 5 estrelas no centro da cidade.
Enquanto a maioria dos diplomatas estrangeiros aceitava o coupom, já embarcando em um ônibus da empresa aérea, o jornalista português que discutira com o piloto, advertiu para que não aceitássemos a hospedagem. Segundo ele, seria “o fim da viagem”. Mobilizando um grupo de uns dez pessoas, sugeriu que subíssemos ao café-restaurante do aeroporto e lá decidíssemos o que fazer.
Acomodados em torno de uma grande mesa, nossa premonição indicava que seria uma noite longa. Entre cafés e taças de vinho tinto, o jornalista lusitano insistia que exigíssemos à TAP um reembarque a Luanda. Entre uma e outra ponderação, ele afastava-se da mesa para realizar chamadas em um telefone público. Em seu primeiro retorno, alertava que o suposto bombardeio do aeroporto em Luanda não se confirmara. Em um de seus últimos telefonemas, o português retornou à mesa sorrindo de orelha a orelha. Havia ligado para alguns destacamentos do MFA – o Movimento das Forças Armadas – que declararam “inaceitável” o retorno do voo da TAP e prometiam “medidas”.
Tombados em torno da mesa, o sono nos tocaiava.
Talvez fossem umas quatro horas da madrugada, quando um inusitado reflexo no vidro da janela ao meu lado atiçou meus olhos cansados. Eram luzes em movimento em uma das pistas do aeroporto. Pareciam veículos blindados, e com eles instalou-se nova apreensão.
A inquietação não era por menos. Fazia poucos dias que um tal movimento “Maria da Fonte”, de extrema-direita, instigara publicamente um levante popular e ações militares em Lisboa para promover um golpe de Estado antes de 11 de novembro, data da independência de Angola. De maio a novembro de 1975, a extrema-direita havia perpetrado mais de 290 ataques terroristas, com assaltos a sedes de partidos progressistas, incêndios, atentados a bomba, espancamentos e ataques armados a civis. Eventos intensificados pela súbita entrada em cena de um Mr. Frank Carlucci. Designado embaixador norte-americano em Portugal, nos primeiros dias de novembro o “gringo” visitara a região ao norte do Mondego, encontrando-se com um arcebispo, três bispos, além de governadores civis e presidentes de câmara; todos eles acusando o MFA de implantar o “comunismo”. A folha corrida de Carlucci o condenava. Em 1961, junto com Larry Devlin, então chefe do escritório da CIA no Congo, estivera envolvido no assassinato do presidente Patrice Lumumba. Poucos anos depois, no Brasil, fora auxiliar do adido militar, coronel Vernon Walters, conspirador dos EUA que instigara os militares brasileiros ao golpe contra o presidente João Goulart.
Matutando sobre esses episódios, não percebemos a aproximação de uma dúzia de soldados - a maioria deles barbudos, alguns com um lenço vermelho enrolado no pescoço - encabeçados por um oficial. Parando em frente da mesa, o oficial sorriu jovialmente, desculpou-se pela interrupção e perguntou se éramos os passageiros da TAP impedidos de aterrisarem em Luanda. Percebendo os olhares que perscrutavam sua farda em busca da identificação de sua unidade militar, adiantou-se. - Somos do RALIS, soubemos do retorno do voo, mas estamos aqui para garantir o reembarque de vocês...
Entre desconcerto e empolgação, o grupo todo ergueu-se para trocar abraços com os soldados, que juntaram-se à mesa. Talvez houvesse quem não soubesse o que era o RALIS. Já quem acompanhara os desdobamentos da Revolução dos Cravos, sabia que o antigo RAL-1, rebatizado de Regimento de Artilharia Ligeira no 1 de Lisboa, gozava de inegável visibilidade como destacamento do MFA; cuja “arma” não era propriamente seu poderío bélico, mas sua atuação educadora anti-fascista.
Quando o dia raiou, o pelotão se despediu, prometendo retornar horas mais tarde.
Deveriam ser umas duas da tarde de 12 de novembro, quando fomos chamados pela TAP. Em seu balcão, a empresa anunciava um segundo voo para Luanda aguardando- nos na pista de decolagem. Alguns passageiros que haviam pernoitado no hotel, também estavam presentes. O júbilo foi contagiante. Mas um colega angolano desconsolado não escondia revolta, nem ágrimas - São centenas de quilos de fogos de artifício na barriga do avião de ontem, pá! Incumbido pelo MPLA, levei meses p ́ra conseguir comprar, Europa afora – e agora fazer o quê com isso? Eram p ́ra estourar, iluminar o céu de Luanda ontem!
De abraço em abraço o angolano recebia o conforto solidário dos companheiros de viagem. Mas os fogos de artifício “calados” também eram motivo de piada – uma piada de mau gosto, como confirmaria o pouso em Luanda.
Ao lado da escada de embarque estavam os soldados do RALIS, despedindo-se, sorridentes. Suas “medidas” tinham sido exitosas.
Umas oito da noite, o voo da TAP pousava em Luanda.
Na sala VIP do aeroporto, uma delegação do MPLA recebia efusivamente um grupo dos passageiros com um brinde de boas vindas. E então, entre uma e outra taça de maruvo, revelava-se a estória do suposto bombardeio do aeroporto. É que na tarde do dia 11, horas antes da declaração da Independência, entre vivas e urros, vários jovens das FAPLA – as forças armadas do MPLA - que faziam a segurança do aeroporto, teriam se adiantado à celebração, atirando ao ar, entusiasmados. Um divertido ato de indisciplina, pela má-fé de um correspondente que não estava em Angola, transmutado em precoce fake new, como se diria décadas mais tarde. - Tiros ao ar e não do ar, emendou, jocoso, um funcionário do MPLA, provocando risadas.
Vestido a rigor, com terno e gravata, outro funcionário abraçou-me, agradecendo ao imediato reconhecimento pelo governo brasileiro do MPLA como governo legítimo de Angola.
Segurando na mão meu copo e buscando palavras, expliquei ao anfitrião angolano que eu não representava o governo brasileiro, que era mero jornalista residente na Alemanha. E lembrei-lhe que aquele governo brasileiro era uma ditadura militar que torturava e matava presos políticos, obrigando milhares de opositores a buscarem refúgio no exílio. Já para a clientela internacional, a ditadura exibia sua face cordial, a do "pragmatismo responsável", que supostamente não se alinhava automaticamente com os Estados Unidos.
Surpreso, o funcionário angolano me esquadrinhou com mirada incrédula e afastou-se.
O que ambos ainda ignorávamos naquela noite, certamente teria chocado o angolano, merecendo aqui um incisivo parêntese. É que a Batalha de Quifangondo, que terminara um dia antes da declaração da Independência, provara de modo acachapante um pragmatismo – por assim dizê-lo - cínico do governo brasileiro. Se não, o que dizer da decisão tomada pela ditadura Geisel em julho de 1975, de enviar clandestinamente um grupo de doze agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI) para assessorar a FNLA no norte de Angola? Entre eles encontrava-se José Paulo Boneschi, responsável na FNLA pela instrução de tropas, desminagem e preparação de explosivos. Porém, derrotada a FNLA em Quifangondo, a ditadura recuou seus agentes-mercenários para o então Zaire e adiantou-se em reconhecer o governo de Agostinho Neto. E qual era o currículo de Boneschi? Como agente policial do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do Rio de Janeiro, atuava como torturador ligado à repressão politica da ditadura; denunciado na década de 1980 pela Arquidiocese de São Paulo e em 2014 pela Comissão Nacional da Verdade por múltiplas violações de Direitos Humanos. Retornando ileso da África ao Brasil, Boneschi faria carreira como empresário de segurança privada e, como centenas de militares e policiais, jamais seria condenado por seus crimes.
Mas voltando ao aeroporto de Luanda... 
Terminada a recepção, fomos convidados a tomar assento em uma camioneta das FAPLA que nos conduziu a um hotel do centro de Luanda. Os soldados eram rapazes muito jovens, cuja conversa animada e piadas durante o percurso pareciam querer distrair o estresse da guerra estampado em suas faces e gestos.
Instalado no hotel 4 estrelas, iniciava-se minha cobertura de “enviado especial atrasado”, que perdera não apenas a celebração da Independência, como também a posse de Agostinho Neto, ocorrida na manhã daquele dia 12; manhã perdida em Lisboa à espera de uma segunda oportunidade de embarque. Fazer o quê? Vida que segue!, como dizíamos no Brasil. Em primeiro lugar, eu teria que conseguir junto ao novo governo cópias das gravações de ambos os eventos históricos.
Na capital devastada por meses de enfrentamentos armados, a paz não era uma certeza, antes uma frágil esperança. No cais do porto e no aeroporto, massas de portugueses se amontoavam para abandonar Angola, rumo a Lisboa, onde engrossariam as manifestações dos “retornados” contra a independência das ex-colônias africanas.
Em Luanda, foram dias seguidos sem água nas torneiras, porque a FNLA ou a UNITA haviam destruído a tubulação nos arredores da capital. Bem-humorado, um colega exibia seu rosto reluzente, sugerindo aos vizinhos do hotel que nos barbeássemos usando whisky como hidratante – e, precavidos, encher as banheiras, caso a água retornasse.
As ruas, ao contrário, não ofereciam extravagâncias. Diante das poucas padarias em funcionamento, formavam-se longas filas na disputa pelo pão. E não eram raros apitos de sirenes e gritos advertindo tiros ou algum obus inimigo sobrevoando as cabeças, porque a FNLA e a UNITA não aceitaram a declaração da Independência, nem a posse de Agostinho Neto, retomando a guerra civil.
Em julho de 1975, o MPLA expulsara a FNLA de Luanda e obrigara a UNITA a retroceder às suas bases no sul do país, apoiadas pela África do Sul. Em sua debandada, a FNLA deixara para trás rastros de chacina em vários mussekes de Luanda. Levado por jovens do MPLA a uma ruína, palco de atrocidades, ainda meses depois o cenário me parecia regurgitar gritos de desespero, com nauseabundo cheiro de morte no ar.
As emoções sucediam-se com altos e baixos de um tobogã.
Após uma entrevista à OMA (Organização das Mulheres Angolanas), enquanto petiscava o funge ao qual hospitaleiramente havia sido convidado, percebi sorrisos contidos e certo brilho em seus olhos. E perguntei se fizera algo errado – insegurança que as angolanas respondaram com riso coletivo. - É que voucê fala como u Roberto Carlos e o Caetáno Velosu!, explicou uma delas com sotaque aveludado, instruindo minha ignorância do sucesso da MPB em Angola. Instrução que se repetiria três anos mais tarde, em Sesimbra, litoral sul de Portugal. Ao comprar uma garrafa em uma tasca, um grupo de homens no balcão espiolhou-me da cabeça aos pés e um deles provocou: - U gaju será bras ́leiru? Fala como u Mundinho na Gabriela! Pedindo explicação ao português, este me repreendeu: - Então não assistes a novela, pá? Ah, vejam só, o romance do Jorge Amado adaptado para telenovela! Retrucando que não assistia, pois residia na Alemanha, assim, pela segunda vez, caiu minha ficha - e toda a freguesia do balcão caiu na gargalhada.
Em Luanda os dias esvoejaram em um piscar de olhos.
A secretaria provisória de comunicação do governo advertia sem parar os eventos em curso. Um deles parecia ressuscitar Ernest Hemingway reportando assombros da Guerra Civil Espanhola. Em uma conferência de imprensa de 17 de novembro, o Estado Maior das FAPLA apresentou-nos mercenários portugueses presos, que descreveram como haviam sido recrutados para a FNLA. Os portugueses foram apenas os primeiros detidos, logo sucedidos por uns duzentos e cinquenta franceses, britânicos, irlandeses e outros ocidentais atraídos pela CIA para combater o MPLA. Via de regra, eram ex-militares ou veteranos de outras guerras, que, traumatizados ou socialmente desajustados, postavam ou respondiam a anúncios de recrutadores como a revista “Soldier of Fortune”, fundada por Robert K. Brown, um ex-Boina Verde na guerra do Vietnã, que agia como intermediário “terceirizador” da CIA, à época pagando salários de até 2.000 dólares.
E então ocorreu uma curiosa e inédita façanha profissional.
Em um intervalo bem-vindo, porque relaxante, uma banda de jovens músicos de Semba –cujo nome não lembro, mas que poderia ter sido o Agrupamento Kissanguela – me convidou para acompanhá-la a uma estação de rádio de Luanda. O que fiz, gravando com o volumoso aparelho Nagra da emissora WDR, algumas de suas canções bailantes. Terminado o programa, me assaltou uma ideia, que deveria ter-me ocorrido antes: que tal se, dali daquela modesta emissora de Luanda, eu tentasse uma reportagem ao vivo para o noticiário da WDR na distante Alemanha? Mas será que a emissora dispunha de capacidade técnica para tanto, perguntei ao técnico do estúdio. Claro que sim, respondeu o angolano, mas alertando que uma chamada telefônica internacional seria muito cara, por isso teria que ser feita “de lá p ́ra cá”. E pediu-me o número de identificação internacional da WDR, que eu nem sabia o que era, mas que descobrimos em uma lista impressa. Pois eis que a WDR respondeu e no dia seguinte eu “estava no ar” para a audiência alemã. A primeira reação dos colegas “do lado de lá” não foi uma pergunta, mas uma insinuação: como é que eu conseguia falar de Luanda, se lá havia “censura”?
Questionamento que me fez rir, explicando que a cobertura da independência contava com dezenas, talvez centenas de correspondentes internacionais. Feito um resumo da situação em Angola, os colegas então questionaram: “E a invasão dos cubanos?”
Surpreso com a adjetivação, inspirei fundo, contei até 5 e repliquei que em Luanda não se via cubanos; o que era verdade, porque estavam espalhados fora da capital. Exliquei que haviam sido chamados para conter uma invasão – esta, sim, avassaladora - da África do Sul, e do Zaire, apoiada pelos EUA – por acaso na Alemanha não se sabia disso? Por alguns segundos fez-se silêncio “do lado de lá”, os colegas agradeceram a linha direta e desligaram o telefone.
Minha vontade de estender a permanência em Luanda crescia, mas eu sabia que em Köln o editor Peter Laudan olhava apreensivo para o calendário, que alertava os poucos dias faltantes para a transmissão do programa sobre a independência de Angola – programa de 60 minutos, que exigiria muito trabalho de tradução e edição.
A coroação da cobertura ocorreria um dia antes do retorno à Alemanha: uma entrevista histórica com o já renomado romancista luso-angolano Luandino Vieira. Após penar onze anos como preso político do MPLA em cárceres da ditadura Salazar - oito dos quais no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde - ser libertado em 1972, mas submetido em Lisboa a regime de residência vigiada até 1974, Luandino regressara a Angola, onde fora nomeado diretor da TV Angolana. Inédita e exclusiva na imprensa brasileira e anexada a esta crônica, a entrevista seria publicada meses mais tarde pelo semanário O Pasquim com o título “Angola é o seguinte:
(https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=124745&pesq=Luandino %20Vieira&pagfis=12122) "
Frederico Füllgraf