Morreu Mario Vargas Llosa. Tinha 89 anos. O romancista peruano-espanhol morreu
este domingo, em sua casa em Lima, onde vivia desde 2022,
informaram seus filhos nas redes sociais.
"Com profunda dor, tornamos público que o nosso
pai, Mario Vargas Llosa, faleceu hoje em Lima, rodeado pela sua
família e em paz", escreveu o filho Álvaro Vargas Llosa na sua conta da
rede social X..
Nascido em Arequipa, em 28 de Março de 1936, Jorge Mario Pedro Vargas Llosa, que venceu o Prémio Nobel da Literatura em 2010, foi também político, jornalista, ensaísta e professor universitário. "Escrever romances é um acto de rebelião contra a realidade, contra Deus, contra a criação de Deus que é a realidade. É uma tentativa de correção, mudança ou abolição da realidade real, da sua substituição pela realidade fictícia que o romancista cria", afirma Vargas Llosa, na obra.
Além do Nobel da Literatura, Mario Vargas Llosa foi
distinguido, ao longo da sua carreira literária, com vários outros prémios como
o Rómulo Gallegos (1967), Princesa das Astúrias (1986), Planeta (1993), Miguel
de Cervantes (1994), Jerusalém (1995), National Book Critics Circle Award
(1997), PEN/Nabokov (2002) e Prémio Mundial Cino Del Duca (2008).
Recebeu vários graus de doutor 'Honoris Causa', atribuídos
por universidades da Europa, América e Ásia.
Foi ainda membro da Academia Peruana de Línguas desde 1977,
da Real Academia Española (RAE) desde 1994, e fez parte da Academia Brasileira
de Letras desde 2014.
Em 2023, ingressou na Academia Francesa, tornando-se o
primeiro escritor de língua espanhola a entrar na instituição dos imortais, sem
nunca ter escrito nada em francês.
Foi também uma excepção no que respeita à idade, já que a
instituição centenária encarregada de guardar a língua de Molière só aceita
membros com menos de 75 anos.
Depois de vários anos a viver na Europa, no início dos anos
2000 o escritor fixou residência em Madrid. Em 2011, o rei concedeu-lhe o título nobiliárquico de marquês, pela
sua “extraordinária contribuição (…), apreciada universalmente, à literatura e
à língua espanhola”.
Vargas Llosa detinha a cidadania espanhola desde 1993, sem
nunca renunciar à peruana. Nesse ano, publicou “Peixe na Água”, no qual
conjugou a experiência da campanha presidencial de 1990 e da sua derrota, com
memórias da infância, a opção pela residência na Europa e o regresso à
literatura a tempo inteiro.
Em Abril de 2022, esteve vários dias hospitalizado, em
Madrid, com covid-19, que voltou a contrair em Julho de 2023.
Em 2024, já depois de ter regressado ao país natal, publicou
o seu derradeiro romance, "Dedico-lhe o meu silêncio".
Mario Vargas Llosa colaborou com jornais como o espanhol El
País, o brasileiro O Estadão e a Agência France Presse."
Republicamos um belíssimo texto que escreveu para a Babelia, revista do Jornal El Pais , quando completou 80 anos e a sua obra foi publicada na Bibliothèque de La Pléiade, da Gallimard, um dos seus grandes sonhos de sempre.
Uma pausa no caminho
por Mario Vargas Llosa
“Escrever é uma maneira de viver”, disse Flaubert, com muitíssima razão.
"Não há mérito algum em completar 80 anos; em nossos dias, qualquer um que não tiver maltratado excessivamente o organismo com álcool, tabaco e drogas pode conseguir. Mas, talvez, seja uma boa oportunidade para fazer uma pausa no caminho e olhar para trás antes de retomar a cavalgada.
créditos de Fernando Vicente |
O que vejo são histórias, muitíssimas, as que me contaram, as que vivi, li, inventei e escrevi. As mais antigas, sem dúvida, são aquelas que me contavam em Cochabamba a vovozinha Carmen e a Mamaé, para que eu tomasse a sopa e não pegasse tuberculose. A tísica era o grande bicho-papão da época, como décadas depois seria a AIDS, a qual, agora, a medicina também conseguiu domar. Mas, ocasionalmente, ainda se desatam as pestes medievais que assolam a África, como forma de nos lembrar, de vez em quando, que é impossível enterrar o passado completamente: o levamos a reboque, gostemos ou não.
Conheci em minha longa vida muitas pessoas interessantes, mas, na verdade, nenhuma está tão viva em minha memória como certos personagens literários aos que o tempo, em vez de apagar, revitaliza. Por exemplo, de minha infância cochabambina lembro com mais nitidez de Guilherme e do seu avozinho, dos três mosqueteiros que eram quatro — D’Artagnan, Athos, Porthos e Aramis —, de Nostradamus e de seu filho e de Lagardère do que dos meus colegas do Colégio De La Salle, onde, na classe do irmão Justiniano, aprendi a ler (maravilha das maravilhas).
Algo parecido acontece quando me lembro de minha adolescência de Piura e de Lima, onde não há um ser vivente que esteja tão vivo na minha memória como Jean Valjean, de Os Miseráveis, cuja trágica peripécia — longos anos de prisão por ter roubado um pão — me estremecia de indignação, assim como a generosidade de Gisors, o activista de A Condição Humana, que presenteia seu arsénico a dois jovens mortos de medo de serem atirados vivos num caldeirão e aceita esta morte atroz, continua me comovendo desde a primeira vez que li esse extraordinário romance.
É difícil dizer a imensa felicidade e riqueza de sentimentos e de fantasia que os bons livros que li me deram — e continuam me dando. Nada me acalma mais quando estou inquieto ou me eleva o espírito se me sinto deprimido do que uma boa leitura (ou releitura). Ainda me lembro da fascinação maravilhada com que li os romances de Faulkner, os contos de Borges e Cortázar, o universo crepitante de Tolstói, as aventuras e desventuras de Don Quixote, os ensaios de Sartre e de Camus, e os de Edmund Wilson, especialmente a obra-prima Rumo à Estação Finlândia, que li do começo ao fim pelo menos três vezes. O mesmo poderia dizer das sagas de Balzac, de Dickens, de Zola, de Dostoiésvki, e o difícil desafio intelectual que foi poder conseguir desfrutar de Proust e Joyce (embora nunca tenha conseguido ler o indecifrável Finnegans Wake).
Quero dedicar um parágrafo à parte a Flaubert, o mais amado dos autores. Nunca esquecerei aquele dia, recém-chegado a Paris, no verão de 1959, quando comprei na La Joie de Lire, da Rue Saint-Séverin, um exemplar de Madame Bovary, que me deixou enfeitiçado a noite inteira, lendo sem parar. Devo a Flaubert não apenas o prazer proporcionado por seus romances e contos e sua correspondência formidável. Devo a ele, acima de tudo, ter me mostrado o escritor que queria ser, o género de literatura que correspondia à minha sensibilidade, aos meus traumas e aos meus sonhos. Ou seja, uma literatura que, sendo realista, seria também obsessivamente cuidadosa quanto à forma, à escrita e à estrutura, à organização da trama, dos pontos de vista, da invenção do narrador e do tempo narrativo. E, por ter me mostrado com o seu exemplo que, se alguém não nascesse com o talento dos génios, poderia pelo menos fabricar um substituto à base de teimosia, perseverança e esforço.
Havia muita loucura em querer ser escritor no Peru dos anos cinquenta, quando cresci e descobri minha vocação. Teria sido impossível conseguir sem a ajuda que recebi de algumas pessoas generosas, como o tio Lucho e o avô Pedro. E, mais tarde, em Espanha, sem o incentivo de Carlos Barral, que moveu céus e terra para poder publicar A Cidade e os Cachorros, superando o obstáculo da forte censura da época. E de Carmen Balcells, que fez grandes esforços para que meus livros fossem traduzidos e vendidos, a fim de que eu pudesse — algo que sempre acreditei ser impossível — viver do meu trabalho como escritor. Consegui, e ainda me espanta saber que posso ganhar a vida fazendo o que gosto, o que pagaria para fazer: escrever e ler.
Tudo já foi dito sobre esta misteriosa operação que consiste em inventar histórias e moldá-las de tal maneira fazendo uso das palavras para que pareçam verdadeiras e cheguem aos leitores e os façam chorar e rir, sofrer desfrutando e desfrutar sofrendo, ou seja —resumindo—, viver mais e melhor graças à literatura.
Escrevi meus primeiros contos quando tinha 15 anos, há pelo menos 65. E continua parecendo um processo enigmático, incontrolável, fantástico, de raízes que se afundam no mais profundo do inconsciente. Por que existem certas experiências — ouvidas, vividas ou lidas — que de repente me sugerem uma história, algo que, pouco a pouco, vai se tornando obsessivo, urgente, peremptório? Nunca sei por que existem algumas vivências que se tornam exigências para fantasiar uma história, que me provocam um desassossego e uma ansiedade que são aplacados quando ela vai surgindo, sempre com surpresas e derivas imprevisíveis, como se alguém fosse apenas um intermediário, um leva-e-traz, o transmissor de uma fantasia que vem de alguma região ignota do espírito e, em seguida, se emancipa de seu suposto autor e vai viver sua própria vida. Escrever ficção é uma operação estranha, mas apaixonante e impagável, na qual a pessoa aprende muito sobre si mesmo e, às vezes, se assusta descobrindo os fantasmas e aparições que emergem das catacumbas de sua personalidade para se transformar em personagens.
“Escrever é uma maneira de viver”, disse Flaubert, com muitíssima razão. Não se escreve para viver, embora se ganhe a vida escrevendo. Em vez disso, se vive para escrever, porque o escritor de vocação continuará escrevendo, mesmo que tenha pouquíssimos leitores ou seja vítima de injustiças tão monstruosas como as vivenciadas por Lampedusa, cuja obra-prima absoluta, O Gattopardo ( O Leopardo), o melhor romance italiano do século XX e um dos mais subtis e elegantes já escritos, foi rejeitado por sete editoras, e ele morreu acreditando que tinha fracassado como escritor. A história da literatura está cheia dessas injustiças, como o primeiro prémio Nobel de Literatura, que os académicos suecos deram para o esquecido e esquecível Sully Prudhomme, e não para Tolstói, que era o outro finalista.
Talvez seja um pouco optimista falar do futuro quando se faz 80 anos. No entanto, atrevo-me a fazer um prognóstico sobre mim mesmo; não sei que coisas podem acontecer comigo, mas de uma tenho certeza: a não ser que me torne totalmente idiota, no que me resta de vida continuarei obstinadamente lendo e escrevendo até o final."
Crónica de Mario Vargas Llosa, em "El País", 3.04.2016
Nota de LP: No dia 24 de Março de 2016, foram colocadas à venda pela Editora Gallimard, "Bibliothèque de La Pléiade", as "Oeuvres romanesques", 2 t. 1952p et 1920p., de Mario Vargas Llosa. A Bibliothèque de La Pléiade é o templo dos grandes autores que ficarão para todo o sempre, para a posteridade.
Mario Vargas Llosa considera que pertencer ao grupo de escritores da Bibliothèque de La Pléiade é a maior distinção da sua vida. Representa o sonho que acalentou desde que começou a ler, no Peru, os livros seleccionados da Pléiade. Supera o Prémio Nobel da Literatura que lhe foi atribuído.
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