sexta-feira, 25 de abril de 2025

Contar de Abril

CONTAR DE  ABRIL
por Baptista-Bastos
" Contarás de Abril o assombro, o desassossego, as súbitas visões de beleza longamente sonhadas, o assanhamento da hora vesperal; o renascer, meu e teu. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas  docemente nossas que rimam connosco, as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco , as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril os gritos, as imprecações, as cóleras, o idioma ressurecto na fraternidade de frases efusivas, no estertor. Contarás de Abril aquele haver viagem, aquele cheiro antigo de chuva de infância, a peca sombra, o chouto curto, o bêbado de rua que te assustou, temulento, a frugal manhã. Contarás de Abril o lado esquerdo da madrugada; cíclicos, os sismos: o chão em fissuras laceradas; de vagarosa, a capa da terra a recobrir o oco, as galerias naturais do ódio, onde rebramia o mar, sobre o qual haviam colocado o pinho e pedra e reconstruído a cidade, longa história de uma frustração. Contarás de Abril, os passos. Contarás de Abril , os sons , ínsitos na paisagem nocturna, nas betesgas. Contarás de Abril que me viste trajado de briche e holandilha, seteira ao ombro, num baixel de antigamente, soletrando palavras felizes, sem direcção nem sentido, como tudo o que é feliz. Contarás de Abril, aos meus filhos, filhos teus, que os meus olhos míopes, ardidos, urbanos, ficaram cheios de um ofício de dizer coisas singelas, humildes e absurdas: como amor, liberdade. Contarás de Abril os idos, e os que voltaram; os que ficaram e ficam. Contarás de Abril as pequenas pilhas de palavras, armazenadas numa necessidade que inventei; e as nossas almas ledas e limpas; e os braços que se estendem a outros abraços; e a cordialidade de anotarmos em nome, um número, uma flor; e os balaios sem reticências de mágoas, cheios, os balaios,  de trissos de aves, de pássaros remotos de que ignorávamos a voz ou havíamos esquecido o toque e a fímbria. Contarás de Abril que na nossa terra já não nos dói a velhice e que os rios são todos nossos e íntimos e claras e livres. Contarás de Abril a espessura mágica, o punho reflexo, o dia de água, a lágrima, a vontade de sermos e de estarmos, o límpido grito, a forma inconsútil, o beijo proliferante, o vermelho e a brisa, as bambilenas vagantes nos sopros, o livor das coisas, a maravilha discreta de assear a vida, o caminhar, os semideiros, os rostos nesta dócil pausa e neste imenso perdão. Contarás de Abril as casas de mil sóis, a imponderável descoberta dos sussurros, a brancura inadiável da perseverança, o resplendente varar dos dias, a feira alvoraçada das horas. Contarás de Abril  a visão e o visto. Contarás de Abril as mãos dadas. Contarás de Abril o renascer da essencial frescura.
Contarás de Abril.
Contarás , meu amor." 
Baptista-Bastos , " Contar de Abril", in " ABRIL, ABRIL, Textos de Escritores Comunistas, (DORL)", Edições Avante, Lisboa 1975.
 Revolução

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das Coisas, Editorial Caminho

Venha Abril

Abril desgosta ainda tanta gente!
A liberdade faz tanto mau sangue!
Por que será que um viver deprimente,
que deixa o espírito exangue,

atrai ainda tanto militante
de causas brutais e assassinas?
O passado não serviu de purgante?
Para que servem as vossa oficinas,

ó poetas que acham que a linguagem
não passa de estéril masturbação
e é só subserviente pajem

dos que preferem castrar a canção?
Venha Abril para nos incomodar
e fazer, mais uma vez, acordar!
            25.04.2023
Eugénio Lisboa, poema inédito


Grândola, vila morena

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto, igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Zeca Afonso, in “Cantigas de Maio”
Zeca Afonso,  em  Grândola, Vila Morena.

Sem comentários:

Enviar um comentário