quarta-feira, 30 de abril de 2025

Que saudade teria sempre...

 


A quinta
por Maria José Vieira de Sousa
"Já nessa época tomava o pequeno almoço às sete da manhã e era sempre a primeira a chegar à sala. Os pais diziam que ela era o galo lá de casa, pois punha em movimento a criadagem logo de manhã.
Sentava-se na mesa, no lugar que lhe fora destinado desde que era gente, e enquanto não lhe colocassem o leite à frente não parava de o reclamar. Olhava à sua volta e as paredes enormes da sala de pé direito muito alto pareciam protegê-la. A madeira e a pedra que as revestiam transmitiam-lhe uma refinada solidez que ao longo da vida sempre a aquietou. Sentia-se bem naquela sala, mesmo estando sozinha na mesa.
O silêncio da casa era um borbulhar surdo de ruídos melodiosos, eufónicos. Começava na cozinha com os passos abafados da cozinheira até ao roçar da louça na bandeja, estendia-se depois aos toques do relógio de pé do corredor que compassadamente se iam fazendo ouvir e então vinham, em correria deslumbrante, os sons do jardim, dos pássaros imensos, das folhas das árvores, das abelhas em constante laboração, dos cães latindo baixinho, das vozes arrastadas dos trabalhadores anunciando a apanha dos frutos, a recolha das verduras, a passagem dos animais … Enfim,  eram tantos os  sons que entravam magicamente pelas janelas da sala que  lhe pareciam ser o apelo  da vida rodopiando à sua volta. E assim se sentia alegre e feliz logo bem cedo, de manhã.
A mãe só aparecia às sete e meia seguida sucessivamente dos irmãos. A essa hora já estava a respirar cá fora, reconhecendo o seu mundo.
Corria, então, para a garagem seguida pelos cães e apanhava a bicicleta e lá ia directa ao rio que atravessava a quinta. Pelo caminho, ia olhando cada árvore pois conhecia o nome de todas e a todas ia saudando numa interminável e quase ininteligível lengalenga que só ela e as árvores reconheciam. Os cães, a seu lado,  iam ladrando com carinho como que a anunciar que ela estava a passar.
A luz penetrava através do arvoredo que se alterava conforme se  aproximava do rio. Aqui, as árvores eram mais espessas, mais imponentes no seu porte e apesar de tão grandiosas acabavam abruptamente numa vasta clareira verde, onde inesperadamente surgia o rio.
E a alegria, o prazer e aquele bater descompassado do coração tomavam conta dela. O rio era a sua paixão. Todos os dias assim que o avistava, emergia nela uma plêiade de sentimentos num turbilhão descontrolado que tinha de parar e obrigar-se a arfar o ar com sofreguidão para não morrer logo ali.
 E era assim que imaginara a morte! Deveria ser o transbordar de tanta alegria que entupia a respiração, deixando o coração sem ar. Quem lhe dissera fora a Benta, num dia que a acompanhara ao rio.
“-Ai menina –dissera ela – respire, porque se não meter ar nesse coração, morre já de tanta alegria.”
Saltava da bicicleta e lançava-se em correrias pela margem do rio até o cansaço tomar conta dela. Então, estendia-se na erva e começava a olhar o céu e a chamar os pássaros pelos nomes, reconhecendo o chilrear de cada um antes mesmo de o avistar.
Antero, o filho do caseiro, tinha sido o seu mestre, embora fosse mais novo que ela um ano. Ele era o seu companheiro mais fiel e inteligente. Sabia de tudo da quinta e do rio.
Todas as manhãs, ele vinha para o rio, mas só depois da ordenha das vacas, tarefa que realizava com o pai. Assim, era ela sempre a primeira a chegar.
Quando ele aparecia, trazia o sol nos cabelos e a luz nos olhos. Todo ele brilhava e esse brilho encantava-a.
Ficavam, então, horas a fio reconhecendo a mata para além do rio ou descobrindo novas plantas que germinavam pela quinta. Por vezes, ele desenterrava a jangada de madeira que encontraram num recanto escondido da quinta e lá iam rio abaixo encenando descobertas que retiravam dos livros de aventuras que o pai lhe oferecia.
Era ele que lhe ensinava o nome das flores, das árvores, dos frutos, dos pássaros e lhe traduzia os sinais que a natureza apresentava para anunciar a mudança das estações.
Assim passou a reconhecer o arco-íris, as falsas marés do rio e até o prenúncio da chuva e da trovoada.
A Primavera era a sua estação preferida. Quando vinha a casa, nas férias da Páscoa, era um deslumbramento permanente.
Antero tinha sempre um novo segredo que ia demoradamente revelando. Recordava-se da ninhada de coelhos numa toca recôndita, junto à nascente que abastecia a quinta. Da coruja que ficara presa no galinheiro, do cordeirinho quase um anjo de tão branco, enfeitado com um grande laçarote pastando no jardim à sua espera e de tantos e tantos outros.
Nessa altura, as mimosas e as  túlipas enchiam a quinta de cor. O amarelo salpicando a verdura e o contraste colorido dos canteiros cheios de túlipas variadas eram uma visão que a emocionava logo à chegada.
Os cheiros frescos da terra espalhavam-se no ar e aí ela reconhecia o seu lugar. Era este  o cheiro que Antero trazia com ele.
Que saudade tinha de Antero quando estava longe. Que saudade teria sempre dele."
Maria José Vieira de Sousa, in O lugar, memórias de um romance, Junho de 2008, pp. 11-13

terça-feira, 29 de abril de 2025

Algumas citações de grandes filósofos


Platão (427-347 a.C.)

Tente mover o mundo - o primeiro passo será mover a si mesmo.

Não espere por uma crise para descobrir o que é importante na  sua vida.

O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê
...


Aristóteles (384-322 a.C.):

Ter muitos amigos é não ter nenhum.

Nunca existiu uma grande inteligência sem uma veia de loucura.

O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflecte.



Santo Agostinho de Hipona (354-430):

A medida do amor é amar sem medida.

Ter fé é assinar uma folha em branco e deixar que Deus nela escreva o que quiser.

O mundo é um livro, e quem fica sentado em casa lê somente uma página.


René Descartes (1596 - 1650):

Eu penso, logo existo.

Não existem métodos fáceis para resolver problemas difíceis.

Não há nada que dominemos inteiramente a não ser os nossos pensamentos.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Portugal

 A voz cresce. Ouço-a agora perto, ouço-a melhor.  O que foi eco quase extinto aumenta num clamor  cada vez mais alto, chamando de novo por mim. 
(...) É saudade, mas não é só saudade. Isto vem de muito fundo. 
                                            Raul Brandão, Os Pescadores 

 
Portuguese Fado Music with Beautiful Portugal Travel Destinations
| Relaxing Background Music, by Visual Melodies

A beleza de Portugal com fundo musical português.

O Tesouro

O Tesouro
por Eça de Queirós

I

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.
Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir á estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.
Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de Abril – os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!
No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam… E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos as cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do Demónio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.
– Bem tramado! – gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão.
Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:
– Manos! O cofre tem três chaves… Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!
– Também eu quero a minha, mil raios! – rugiu logo Rostabal.
Rui sorriu. Decerto, decerto!  A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:

Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto…

II
Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o Sol, bocejava com fome.
Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.
– Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia connosco, Rostabal!
O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:
– Não, mil raios! Guanes é sôfrego… Quando o ano passado. se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!
– Vês tu? – gritou Rui, resplandecendo.
Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma ideia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.
– E para quê – prosseguia Rui. – Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até ás outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos…
– Pois que morra, e morra hoje! – bradou Rostabal.
– Queres?
Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando:
– Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guanes te tratava de «cerdo» e de «torpe», por não saberes a letra nem os números.
– Malvado!
– Vem!
Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos – e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo Sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando E Rostabal, que lhes seguira o voo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges.
Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:

Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto… 

Rui murmurou: – «Na ilharga! Mal que passe! » O chouto da égua bateu o cascalho. uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.
Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada – e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes, quando ao rumor, bruscamente ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua – Rostabal. caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.
– A chave! – gritou Rui.
E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda – Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor do sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela. não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.
Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: – e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.
A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforges novos que Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolegava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse urna estaca num canteiro, enterrou a folha toda na largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.
Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo – e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.

III
Agora eram dele. só dele, as três chaves do cofre!... E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de Dezembro. alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos… Mortos como? Como devem morrer os de Medranhos – a pelejar contra o Turco!
Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforges – e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!
Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo – nem esquecera azeitonas. Mas porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.
Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia – destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.
De repente, tomado de urna ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa. tomou um punhado de ouro… Mas oscilou, largando os dobrões, que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui? Raios de Deus! Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente. limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:
– Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!
Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava – sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.
Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água. que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou. caiu para cima da relva. que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu. com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente; esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição, todo o horror:
– É veneno!
Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.
Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava, além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.
O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes."
Eça de Queiroz, in Contos, Lello & Irmão, Editores, Porto, pp.113 -122

domingo, 27 de abril de 2025

Ao Domingo Há Música


Reflexão em Tempo de Guerra

 E se o homem tivesse aprendido,
ao longo dos anos que passaram,
que todo o esforço despendido,
em guerras e lutas que massacraram
 
os campos, populações e riquezas,
e, com tudo isso, nada ganharam,
a não ser fome, pestilência e pobreza,
as quais, por todo o lado, devastaram
 
os ganhos que antes tinham valido
uma vida de paz e bem murada
– não seria bom tê-lo aprendido?
 
Será que uma vida ordenada
e calma é difícil de haver?
Estará além do nosso poder?
                    10.03.2022
Eugénio Lisboa, in Poemas em tempo de guerra suja, Guerra & Paz Editores, Setembro de 2022, p.25



Matei o meu Inimigo

Andei perdido na guerra,
procurando o inimigo:
vasculhei toda a terra,
de abrigo em abrigo.
 
Como seria o seu rosto?
Como se comportaria?
Seu ódio estaria exposto?
Que faria? Correria?
 
Matar-me-ia com fúria?
Matá-lo-ia com medo?
Gritaria uma injúria?
Um de nós, trinchado e quedo?
 
Empalei-o e abracei-o,
colocando-o no chão.
Com cuidado, observei-o:
era, horror!, o meu irmão!
                27.03.2022
Eugénio Lisboa, in Poemas em tempo de guerra suja, Guerra & Paz Editores, Setembro de 2022, p 44

Transcrevem-se este dois poemas de Eugénio Lisboa, para introduzir o tema musical deste domingo, - um fervoroso apelo à paz. Quer nos poemas quer na composição musical é impossível não sentir compaixão perante o flagelo da guerra, da mortandade do Homem.
Eis essa singular e belíssima peça , que nunca cessa de nos comover com superlativa intensidade.  Fosse ela capaz de comover e pacificar o mundo inteiro.

Benedictus, de  Karl Jenkins - A meditation for peace and an open heart, com Karl Jenkins a reger a London Philharmonic Orchestra, Mike  Brewer o National Youth Choir of Great Britain e Guy Johnston, no violoncelo.
A música sublime do Benedictus, de Karl Jenkins, é um belo apelo à paz e a um coração aberto... “Benedictus” é o 12º andamento da sua obra muito maior "O Homem Armado", que tem como subtítulo "Uma Missa pela Paz". 
 "The Armed Man" é essencialmente uma peça anti-guerra escrita pelo compositor galês em 1999 e originalmente dedicada às vítimas da crise do Kosovo. Combina textos do Ordinário da Missa com outras fontes religiosas e históricas, incluindo o apelo islâmico à oração, a Bíblia (por exemplo, os Salmos e o Apocalipse) e o Mahabharata. Os escritores cujas palavras aparecem na obra incluem Rudyard Kipling, Alfred Lord Tennyson e Sankichi Toge, que sobreviveu ao bombardeamento de Hiroshima, mas morreu mais tarde de leucemia. “Benedictus” é a palavra latina para “bênção”
O vídeo é de Jonathan Van Valin em https://www.AssistTheSpirit.com.

 

sábado, 26 de abril de 2025

Um Adeus ao Papa Francisco

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Conforme a sua grande misericórdia, ele nos regenerou para uma esperança viva, por meio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, 
1 Pedro 1:3 
 
 Papa Francisco, na Praça de S. Pedro , em  2021, 
durante a pandemia, para celebrar a missa .


Neste dia, gostaria que todos nós renovássemos a esperança e renovássemos a nossa confiança nos outros, incluindo aqueles que são diferentes de nós, ou que vêm de terras distantes, trazendo costumes, modos de vida e ideias desconhecidos! Pois todos somos filhos de Deus.
Gostaria que renovássemos a nossa esperança de que a paz é possível, escreveu o Papa Francisco.




A Basílica de Santa Maria Maggiore  que  o  Papa Francisco escolheu e onde será hoje  sepultado. 

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Contar de Abril

CONTAR DE  ABRIL
por Baptista-Bastos
" Contarás de Abril o assombro, o desassossego, as súbitas visões de beleza longamente sonhadas, o assanhamento da hora vesperal; o renascer, meu e teu. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas  docemente nossas que rimam connosco, as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco , as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril os gritos, as imprecações, as cóleras, o idioma ressurecto na fraternidade de frases efusivas, no estertor. Contarás de Abril aquele haver viagem, aquele cheiro antigo de chuva de infância, a peca sombra, o chouto curto, o bêbado de rua que te assustou, temulento, a frugal manhã. Contarás de Abril o lado esquerdo da madrugada; cíclicos, os sismos: o chão em fissuras laceradas; de vagarosa, a capa da terra a recobrir o oco, as galerias naturais do ódio, onde rebramia o mar, sobre o qual haviam colocado o pinho e pedra e reconstruído a cidade, longa história de uma frustração. Contarás de Abril, os passos. Contarás de Abril , os sons , ínsitos na paisagem nocturna, nas betesgas. Contarás de Abril que me viste trajado de briche e holandilha, seteira ao ombro, num baixel de antigamente, soletrando palavras felizes, sem direcção nem sentido, como tudo o que é feliz. Contarás de Abril, aos meus filhos, filhos teus, que os meus olhos míopes, ardidos, urbanos, ficaram cheios de um ofício de dizer coisas singelas, humildes e absurdas: como amor, liberdade. Contarás de Abril os idos, e os que voltaram; os que ficaram e ficam. Contarás de Abril as pequenas pilhas de palavras, armazenadas numa necessidade que inventei; e as nossas almas ledas e limpas; e os braços que se estendem a outros abraços; e a cordialidade de anotarmos em nome, um número, uma flor; e os balaios sem reticências de mágoas, cheios, os balaios,  de trissos de aves, de pássaros remotos de que ignorávamos a voz ou havíamos esquecido o toque e a fímbria. Contarás de Abril que na nossa terra já não nos dói a velhice e que os rios são todos nossos e íntimos e claras e livres. Contarás de Abril a espessura mágica, o punho reflexo, o dia de água, a lágrima, a vontade de sermos e de estarmos, o límpido grito, a forma inconsútil, o beijo proliferante, o vermelho e a brisa, as bambilenas vagantes nos sopros, o livor das coisas, a maravilha discreta de assear a vida, o caminhar, os semideiros, os rostos nesta dócil pausa e neste imenso perdão. Contarás de Abril as casas de mil sóis, a imponderável descoberta dos sussurros, a brancura inadiável da perseverança, o resplendente varar dos dias, a feira alvoraçada das horas. Contarás de Abril  a visão e o visto. Contarás de Abril as mãos dadas. Contarás de Abril o renascer da essencial frescura.
Contarás de Abril.
Contarás , meu amor." 
Baptista-Bastos , " Contar de Abril", in " ABRIL, ABRIL, Textos de Escritores Comunistas, (DORL)", Edições Avante, Lisboa 1975.
 Revolução

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das Coisas, Editorial Caminho

Venha Abril

Abril desgosta ainda tanta gente!
A liberdade faz tanto mau sangue!
Por que será que um viver deprimente,
que deixa o espírito exangue,

atrai ainda tanto militante
de causas brutais e assassinas?
O passado não serviu de purgante?
Para que servem as vossa oficinas,

ó poetas que acham que a linguagem
não passa de estéril masturbação
e é só subserviente pajem

dos que preferem castrar a canção?
Venha Abril para nos incomodar
e fazer, mais uma vez, acordar!
            25.04.2023
Eugénio Lisboa, poema inédito


Grândola, vila morena

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto, igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Zeca Afonso, in “Cantigas de Maio”
Zeca Afonso,  em  Grândola, Vila Morena.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O teu livro

O teu livro
por 
Fiódor Dostoiévski
“Deixa-me dizer-te, meu caro, pode bem acontecer que vás através da vida sem saber que debaixo do teu nariz existe um livro no qual a tua vida é descrita em todo o detalhe. Aquilo do qual nunca te deste conta antes, vais relembrando aos poucos, assim que comeces a ler esse livro, e encontras e descobres… alguns livros tu lês e lês e não lhe consegues encontrar qualquer sentido ou lógica, por mais que tentes. São tão “espertos” que não consegues perceber uma palavra daquilo que dizem… Mas esse livro que talvez esteja logo debaixo do teu nariz, tu lês e sentes-te como se tivesses sido tu próprio a escrevê-lo, tal como – como é que hei-de dizer ? – tal como tivesses tomado posse do teu próprio coração – qualquer que este possa ser – e o tivesse virado do avesso de forma que as pessoas o consigam ver, e descrito com todos os detalhes – tal e qual como ele é! E como isto é simples, meu Deus! Porquê, eu próprio poderia ter escrito este livro! Porquê, de facto, porquê é que eu próprio não escrevi este livro!”
Fiódor Dostoiévski, in Gente Pobre, Editorial Presença

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Do livro falemos


"A 23 de Abril de 1616 perderam-se dois gigantes da literatura mundial, dois precursores cuja obra revolucionaria o estilo de escrita e de conceção da criação literária: Cervantes e Shakespeare. Esta coincidência é a razão pela qual o dia 23 de Abril foi escolhido para celebrar o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor.
Ao celebrarmos o livro, celebramos atividades – escrita, leitura, tradução, publicação – através das quais o ser humano se eleva e se realiza; e celebramos, fundamentalmente, as liberdades que as tornam possíveis. O livro é o ponto de encontro das mais essenciais liberdades humanas, nomeadamente a liberdade de expressão e de edição.
Estas liberdades são frágeis. Enfrentam imensos desafios, do questionamento dos direitos de autor à diversidade cultural, passando pelas ameaças físicas às quais estão hoje expostos autores, jornalistas e editores, em muitos países. Estas liberdades continuam a ser negadas, num momento em que são atacadas escolas e destruídos livros e manuscritos.
É nosso dever proteger estas liberdades no mundo inteiro, promovendo a leitura e a escrita para combater o analfabetismo e a pobreza, fortalecer os baluartes da paz bem como proteger e valorizar as profissões e os profissionais do livro."
Direcção Geral da UNESCO


Do livro falemos

Um livro torna-me muito mais livre.
Um livro abre-me imensas portas.
Antes do livro, era semilivre.
Sem livro, as portas estavam tortas

e não abriam. Mas os livros abrem
portas, mesmo se tortas, porque sabem
endireitar tudo o que está torto
e ressuscitar tudo o que está morto.

Porque o livro tem vida e saber
e, muitas vezes, tem até sabor.
O saber dá-nos imenso poder

e o sabor dá-nos muito prazer!
O livro sabe, pode e contenta,
condimentado com sal e pimenta!
            02.11.2022
Eugénio Lisboa, in Soneto , Modo de Usar, Editora Guerra & Paz, Abril de 2024, p 82
Sou uma leitora completamente dependente desse vício impune que é a leitura. Tenho uma biblioteca razoável com milhares de livros. Leio e releio com prazer desmedido esses livros , embora me surpreenda com alguns tesouros que , na gula incontinente da compra, não tive tempo de ler . Alguns descubro, num golpe esporádico de sorte, alinhados à sombra de outros, já saboreados em devido tempo. Outros há que se acotovelam numa mesa, à espera de uma voraz disponibilidade de consumo, para que se não confundam com todos os outros já degustados e bem arrumados pelas prateleiras.
Talvez para aqueles, que visitam este blog, não seja uma surpresa este gosto infindo pelos livros. Foram os livros que possibilitaram a criação e manutenção deste espaço. Vive de leituras e da aprendizagem que delas ficaram. Renova-se e enforma-se de outras numa consanguinidade quase pura e impertinente. E, por isso, vos recomendo, de novo, a leitura  desse maravilhoso Manual , um cânone para o leitor relutante , Vamos Ler,  de Eugénio Lisboa, que pretende ser o guia  para aquele que vai iniciar-se nos prazeres infindos da leitura, da descoberta do Mundo dos Livros.
Na perspectiva do editor, Manuel Fonseca , se ele pudesse escolher os pontos fortes deste livro, sublinharia três 
1 .  É um pequeno cânone da literatura portuguesa que propõe a todos os leitores, mesmo aos que dizem não gostar de ler, os 50 livros e 35 autores portugueses com que vale a pena começar.
2. É um cânone diferente dos outros. Além dos leitores fiéis, que vão delirar com as pequenas provocações, o livro quer sobretudo oferecer um cânone a quem quer começar a ler ou mesmo ao leitor irregular.
3. Este é um livro que vive a literatura e a leitura com alegria e nos propõe livros cuja leitura nos oferece viagens de prazer e de grande emoção.

Celebrar o livro é , pois, mergulhar nele por milhares de razões , mas a mais importante está nestas palavras que  Eugénio Lisboa teceu no seu precioso cânone " Vamos Ler":
«A leitura é, para os grandes leitores, um prazer, uma instrução e uma terapêutica… não há dúvida de que a grande literatura nos abre grandes e novas perspectivas sobre o mundo em que vivemos: fala-nos de lugares e de pessoas, de ideias e de emoções, de conflitos humanos e de aventuras que nos enriquecem.»

terça-feira, 22 de abril de 2025

Relembrar Francisco

Papa Francisco cumprimenta à chegada da audiência geral semanal
 na Praça de São Pedro, Vaticano, 15 de Novembro de 2023
© Gregorio Borgia/Copyright 2022 The AP. All rights reserved

Francisco foi o primeiro papa latino-americano
por Luciana Taddeo Derla Cardoso e Felipe Pereira
"Argentino Jorge Mario Bergoglio tinha como foco os pobres, os refugiados e o combate à crise climática 
Jorge Mario Bergoglio nasceu, no seio de uma família de origem italiana, no dia 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires. Era o mais velho de cinco filhos e foi criado no bairro portenho de Flores.   
Até se tornar pontífice, ele percorreu um longo caminho na Igreja Católica, foi arcebispo na capital argentina e marcou a história do país.  
Como seus avôs sempre conversavam no idioma nativo, ele afirma que o piemontês, dialeto italiano, foi sua língua materna. Esse era apenas um dos seus vínculos com a Europa: as notícias da Segunda Guerra Mundial na rádio e a reação dos pais ao escutarem sobre as atrocidades de Adolf Hitler o marcaram quando pequeno. 
Mas a infância de Bergoglio, no bairro portenho de Flores, foi profundamente argentina. Todos os domingos, ele ia com toda a família assistir aos jogos do San Lorenzo de Almagro, clube no qual o pai jogava basquete e do qual ele se tornou admirador apaixonado. 
O clube foi fundado por Lorenzo Massa, um padre. Ele também frequentava a missa com a avó Rosa na Basílica de San José de Flores e estudou em algumas escolas católicas. No internato salesiano, aos 12 anos, sentiu pela primeira vez a vocação sacerdotal. 
Na autobiografia “Vida – Minha História Através da História”, lançada em Abril de 2024, Francisco conta que chegou a conversar com um padre do internato sobre isso e fez algumas perguntas, mas que o desejo permaneceu adormecido, até se manifestar definitivamente nos anos 1950. 
Ele conta, inclusive, que chegou a ter uma namorada. Bergoglio a descreve como “uma menina muito doce, que trabalhava no mundo do cinema e que depois casou-se e teve filhos”. 
Depois dela, já no seminário, ele teve “uma pequena paixão”. “É normal, ou não seríamos seres humanos”, explicou no livro, relatando que a conheceu no casamento de um tio e ficou encantado.   
“Ela virou a minha cabeça com a sua beleza e inteligência. Por uma semana, fiquei com a sua imagem na mente, e foi difícil conseguir rezar! Depois, felizmente, passou e me dediquei de corpo e alma à minha vocação”, relata, qualificando o episódio como uma “provação”.  
Na adolescência, Bergoglio formou-se em técnico em química pela Escola Técnica Industrial e chegou a fazer estágio num laboratório de análises químicas. 
Mas em 21 de setembro de 1953, quando estava a caminho de um encontro com amigos para um piquenique, sentiu necessidade de entrar na Basílica de Flores, que costumava frequentar. 
Durante a confissão, ele conta que “algo estranho aconteceu”, mudando a sua vida para sempre: “Eu estava maravilhado por ter encontrado Deus subitamente. Ele estava lá me esperando, antecipou-se a mim”, descreveu na sua autobiografia. 
“Mais do que um piquenique com os amigos! Eu estava vivendo o momento mais bonito da minha vida, estava me entregando totalmente nas mãos de Deus!”, detalhou no livro. 
Francisco não falou com ninguém da família do chamamento para o sacerdócio até obter o seu diploma. Também não contou para os amigos, com os quais jogava bilhar, falava de política e dançava tango. Mas em 1955, quando já tinha que escolher a faculdade, decidiu conversar com o pai. 
Segundo Francisco, ele ficou contente. O temor era contar para a mãe. “Sabia que ela não aceitaria minha escolha, e por isso, inventei que estudaria Medicina”, explicou. Mas um dia, limpando a casa, ela viu os seus livros de teologia, e não aceitou bem a revelação. 
Apesar do pedido materno para que ele fizesse uma faculdade e depois decidisse, Bergoglio entrou no seminário arquidiocesano aos 19 anos. 
Dois anos depois, ainda no seminário, conta que se viu à beira da morte, quando todos os colegas pegaram uma gripe. Todos se curaram, mas a febre dele não cedia.  
“Um dia eu piorei: minha temperatura corporal estava altíssima, e o reitor, assustado, levou-me correndo ao Hospital Sírio-Libanês. Fui diagnosticado com uma séria infecção, e naquele dia tiraram um litro de líquido dos meus pulmões”, contou. 
O pontífice dizia dever a vida à freira italiana Cornelia Caraglio que o acompanhou no hospital e lhe administrou doses de penicilina adicionais , ao perceber que as prescritas pelos médicos estavam baixas demais. 
A recuperação foi longa, e o papa revelou que chegou a preparar-se para morrer. Como resultado da pleurisia, inflamação que atinge as membranas dos pulmões, e a formação de três quistos, Bergoglio teve que retirar o lobo superior do pulmão direito. A intervenção cirúrgica foi com as melhores técnicas da época.  Pode imaginar o tamanho dos cortes e o quanto sofri”, descreveu Francisco sobre o procedimento, realizado em 1957. 
Em 1958, ele entrou no noviciado da Companhia de Jesus. Bergoglio formou-se em Filosofia na Universidade Católica de Buenos Aires, em 1960, e ensinou Literatura e Psicologia no Colégio Imaculada, na Província de Santa Fé, e no Colégio do Salvador, em Buenos Aires.  
Também se formou em Teologia em 1969 e foi ordenado padre aos 32 anos. Emitiu os últimos votos na Companhia de Jesus em 1973. Liderou a comunidade de jesuítas durante a década de 1970, no meio da ditadura militar argentina.   
Por seis anos, até 1986, foi reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia de San Miguel.   
Papel na ditadura 
Uma das grandes polémicas que o envolvem refere-se justamente ao seu papel na ajuda a perseguidos políticos da ditadura. Ele chegou a ser acusado, na Argentina, de omissão e até colaboração na prisão dos padres jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalic, em 1976. 
Na sua autobiografia, o papa diz que a acusação é caluniosa e conta que falou com o ditador Jorge Rafael Videla e Emilio Massera, outro líder da junta militar que governava o país, para interceder pelos jesuítas. Eles acabaram soltos após cinco meses de prisão e torturas. 
Ele também relata ter feito contatos para a libertação de outro catequista, e que chegou a ajudar um perseguido parecido com ele a se disfarçar de padre e fugir da Argentina com o seu cartão de identidade. 
“Arrisquei muito daquela vez porque, se o tivessem descoberto, sem dúvida o teriam assassinado e vindo atrás de mim”, contou. 
Naquela votação, quando o seu nome atingiu dois terços das preferências e ele foi aplaudido, o cardeal brasileiro Dom Cláudio Hummes, Arcebispo Emérito de São Paulo, aproximou-se, deu-lhe um beijo e disse: “Nunca se esqueça dos pobres”. 
“Foi ali que escolhi o nome que teria como papa: Francisco”, contou no seu livro. A decisão, tomada após as palavras do brasileiro, foi uma homenagem a São Francisco de Assis, conhecido por ter exercido a vida religiosa na simplicidade e a dedicar - se aos pobres. 
Além de ser escolhido como o primeiro papa sul-americano, Francisco foi o primeiro pontífice não europeu em mais de 1.200 anos, desde o sírio papa Gregório III, que liderou a Igreja Católica entre 731-741. 
Hábitos discretos e posicionamentos fortes 
O Papa Francisco sempre evitava aparições nos media, utilizava o transporte público e não frequentava restaurantes. Porém, tinha opiniões e algumas atitudes consideradas “extravagantes” para a Igreja Católica. 
Como em 2015, quando junto do grupo de rock progressivo Le Orme, lançou um disco chamado “Wake Up!”.  
Em 2019, durante uma visita aos Emirados Árabes Unidos, o papa se encontrou com Ahmed Al-Tayeb, Grande Imã de Al-Azhar, em Abu Dhabi. Eles assinaram o Documento sobre a Fraternidade Humana. 
Francisco convidou os seus clérigos e os leigos para que se opusessem ao aborto e à eutanásia.   
Trabalhou para restaurar a credibilidade do Vaticano, abalada por escândalos financeiros e denúncias de abusos sexuais.   
Em abril de 2014, pediu perdão pelos casos de pedofilia cometidos por sacerdotes da Igreja Católica.  
Foi forçado a reduzir o ritmo das viagens internacionais por causa de fortes dores no joelho direito. Para se poupar, passou a cumprir muitos dos compromissos em uma cadeira de rodas.   
Papa diplomata   
Francisco também tinha um lado diplomata, e usou a influência do Vaticano para tentar ajudar na solução de conflitos.  
Mediou, por exemplo, conversas pela reaproximação entre Estados Unidos e Cuba. Também fez dezenas de apelos pelos direitos dos refugiados e criticou os países que fecharam as portas para os imigrantes.  
Sempre foi um duro crítico da guerra da Ucrânia e chorou em público ao lembrar dos ucranianos que sofriam com a invasão da Rússia. 
E continuou, apesar do agravamento dos problemas de saúde, manifestando preocupação com o bombardeio de civis em Gaza. Mesmo hospitalizado, o Papa continuou fazendo ligações diárias para uma paróquia na região, para acompanhar a situação. 
Com o jeito informal nas palavras e nos gestos, cativou milhões de fiéis. "