quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Un bel di vidremo

O coração morre lentamente, derramando cada esperança como folhas até que um dia não há nenhuma. Nenhuma esperança. Nada resta.
 Artur Dourado

 Byron disse, justamente, que o amor é apenas uma ocupação na vida do homem, ao passo que é a própria vida da mulher.


A belíssima e emocionante  ária   de Puccini, "Un bel di vidremo",  ( da Ópera "Madame Butterfly"), legendada em espanhol,  retirada do filme de 1995, dirigido por Frédéric Mitterrand, com Ying Huang no papel principal.  A ária Un bel dì, vedremo é uma esperança que deveria ser um lamento. O abandono , uma forma de anulação da mulher , evidenciando uma ausência de  direitos. Uma mulher que fica quase em cativeiro na crença de que é amada e não abandonada 
"Madame Butterfly" é uma adaptação cinematográfica da famosa ópera de Giacomo Puccini. O filme conta a trágica história de amor entre uma jovem gueixa japonesa, Cio-Cio San, e um oficial da marinha americana, Benjamin Franklin Pinkerton.  Esta obra explora temas de amor, sacrifício e choque cultural.
O libreto foi escrito por Luigi Illica e Giuseppe Giacosa. A ópera foi apresentada pela primeira vez no Teatro La Scala, em Milão, em 17 de Fevereiro de 1904, dedicada à rainha italiana Elena de Montenegro. A produção foi um sucesso e de imediato seguiram-se várias montagens nos principais teatros do mundo.
Madame Butterfly, a história: 
"Nagasaki, Japão, cerca de 1900. Pinkerton, tenente da marinha norte-americana, está prestes a casar com a sua noiva japonesa, “delicada como uma borboleta”, Cio-Cio-San (Butterfly), mas tem pretensões de um dia casar com uma verdadeira noiva americana. O cônsul americano, Sharpless, desaconselha-o a casar e gaba-se de ter uma mulher em cada porto. Ficando a sós, os recém-casados celebram o seu amor. Pinkerton regressa aos Estados Unidos mas promete voltar. Sem notícias do marido há já três anos, Butterfly continua a acreditar no seu regresso e recusa o novo pretendente, o rico Príncipe Yamadori.
Chega um navio ao porto e Butterfly tem a certeza de que é Pinkerton que regressa para ela e para o seu filho. Butterfly, ansiosa pelo reencontro, espera toda a noite pelo marido. No dia seguinte, Pinkerton chega acompanhado por Sharpless e pela sua nova mulher americana, Kate, mas ao recordar a felicidade que viveu com Butterfly e ao ver como ela ainda o ama fica cheio de remorsos. Relutante, Butterfly aceita entregar o filho mas só ao próprio Pinkerton. Ficando a sós com o filho, Butterfly beija-o ternamente e pede-lhe para recordar para sempre o rosto da sua mãe. Em seguida pega no sabre do seu pai e mata-se. “Com honra morre quem em honra não pode viver”.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Mudar a alma de casa

Amar é mudar a alma de casa. 
           Mário Quintana
Em todas as ruas te encontro


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
Mário Cesariny,  in Pena Capital, Assírio & Alvim Editoras, 2021

Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
Eugénio de Andrade, in  Os Amantes sem Dinheiro, Fundação Eugénio de Andrade, Porto, 1993.
Mar

Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.
Vinicius de Moraes, in  Antologia Poética, Companhia das Letras

Morrer de Amor


Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso
Maria Teresa Horta, in Destino, Quetzal Editores, 1998

Excerto VIII
Sim não foi porque teus olhos tem cor de lua,
de dia com argila, com trabalho, com fogo,
e prisioneira tens a agilidade do ar,
sim não foi porque és uma semana de âmbar,
sim não foi porque és o momento amarelo
em que o outono sobe pelas trepadeiras
e és algum pão que a lua fragrante
elabora passando sua farina pelo céu,
oh, bem amada, eu não te amaria!
Em teu abraço eu abraço o que existe,
a areia, o tempo a árvore da chuva,
E tudo vive para que eu viva:
sem ir tão longe posso vê-lo todo:
veio em tua vida todo o vivente.
Pablo Neruda, in Vinte Poemas de Amor e Uma canção desesperada, Relógio D'Água Editores, Dezembro 2012

Que Encanto é o Teu?

Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa…
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
Jorge de Sena, in As Evidências, Assírio & Alvim

Amor - A Interminável Aprendizagem
por Affonso Romano de Sant'Anna

"Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente"

"Criança, ele pensava: amor, coisa que os adultos sabem. Via-os aos pares namorando nos portões enluarados se entrebuscando numa aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. Via-os noivos se comprometendo à luz da sala ante a família, ante as mobílias; via-os casados, um ancorado no corpo do outro, e pensava: amor, coisa-para-depois, um depois-adulto-aprendido.
Se enganava.
Se enganava porque a aprendizagem de amor não tem começo nem é privilégio aos adultos reservado. Sim, o amor é uma interminável aprendizagem.
Por isto se enganava enquanto olhava com os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os casais que nos portões se amavam. Sim, se pesquisavam numa prospecção de veios e grutas, num desdobramento de noturnos mapas seguindo o astrolábio dos luares, mas nem por isto se encontravam. E quando algum amante desaparecia ou se afastava, não era porque estava saciado. Isto aprenderia depois. É que fora buscar outro amor, a busca recomeçara, pois a fome de amor não sabia nunca, como ali já não se saciara.
De fato, reparando nos vizinhos, podia observar. Mesmo os casados, atrás da aparente tranquilidade, continuavam inquietos. Alguns eram mais indiscretos. A vizinha casada deu para namorar. Aquele que era um crente fiel, sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e amigou-se com uma jovem. E a mulher que morava em frente da farmácia, tão doméstica e feliz, de repente fugiu com um boémio, largando marido e filhos.
Então, constatou, de novo se enganara. Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um porto onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram, eles também não sabem, estão no meio da viagem, e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram.
Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus, Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor.
O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava.
Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão.
O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina.
Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.
O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final.
Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não.
E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.
Absurdo.
Como pode o amor não coincidir consigo mesmo?
Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinquenta e outro dos oitenta? Coisa de demente.
Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente.
Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado.
Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado.
O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca a aprendizagem.
Optou por aceitar a sua ignorância.
Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado.
E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.”
Affonso Romano de Sant'Anna, in "21 Histórias de amor", Francisco Alves Editora – Rio de Janeiro, 2002, pág.11.

"Affonso Romano de Sant'Anna, nascido em Minas Gerais, é um marco na literatura brasileira, tendo publicado mais de 40 livros e já tendo recebido vários prémios, inclusive o Prémio da União Brasileira dos Escritores. Desde os anos 60, tem influenciado e participado em movimentos que transformaram a poesia brasileira, além de fazer parte dos movimentos políticos e sociais do país. Nos tempos de ditadura militar quando as expressões artísticas eram fortemente reprimidas pela censura, publicou audaciosas obras nos mais importantes jornais do país, em páginas de politica. Muitos poemas do autor foram transformados em posters, placas e cartazes e difundidos aos milhares como forma de resistência."

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Parabéns, pai!

Fecho os olhos e avanço.
E começa o poema.
Rodeiam-me os fantasmas
Fugidios
Dos versos que persigo.
A regra é caminhar
E chegar sem saber.
De tal modo é cruzada
A encruzilhada
Onde o milagre pode acontecer
.
     Miguel Torga, Arte Poética 

Muitos anos se passaram desde que meu pai partiu. Quem dera a encruzilhada permitisse o milagre de o ter entre nós. Inútil , esse sonho, mas a memória vestida de saudade  permanece intacta. 

Era dia de aniversário todos os 16 de Setembro dos muitos anos que nos deu. E cada dia de todos esses anos foram celebrados e festejados numa cumplicidade familiar. Éramos muitos. E cada um se regozijava de o poder felicitar. 

Hoje, tem-me aqui para lhe dizer que continuamos a evocá-lo. Tenho a certeza de que cada um de nós o mantém no coração.

Parabéns, pai!

domingo, 15 de setembro de 2024

Ao Domingo Há Música


Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.
              Carlos Drumonnd de Andrade


E  assim aconteceu no Kennedy Center, USA . As canções renasceram  em mágicos  acordes de extrema sedução .  A voz marcava e distinguia-se  pela força com que tocava   todos e cada um  .
Eis alguns registos desse belíssimo espectáculo.

Cynthia Erivo numa fascinante interpretação de  Nothing Compares 2 U, no  Kennedy Center, 2024.
  
Cynthia Erivo e Joaquina Kalukango, em Killing Me Softly, no  Kennedy Center, 2024 .
Cynthia Erivo, em I Love You More Than You'll Ever Know , no  Kennedy Center 2024.
 
Ben Platt e Cynthia Erivo , em You're All I Need to Get By, no  Kennedy Center, 2024.
 

sábado, 14 de setembro de 2024

A viagem

A viagem
 
Há um mundo maior e distante desta esfera
onde o farol da vida se acende deslumbrante
um recanto onde a morte não impera
e onde as horas se medem pelo instante.
 
São degraus de uma escada interminável
ninhos de luz muito além do entendimento
onde seres de uma beleza incomparável
recriam sem cessar o firmamento.
 
Se sonhas chegar um dia a essa paragem
investe o próprio coração nessa viagem
e, com a caridade, tece e borda o teu vestido...
 
pois não entrareis jamais nessa cidade
sem o traje do amor e da humildade
e sem o passaporte do dever cumprido.
Manoel de Andrade, poesia
Barco de papel


Quem sabe por tantos barcos
navegarem a minha infância
herdei essa enorme ânsia
por navios, terras e mares.

Nesse mar dos meus pesares
meu porto é uma ilha perdida
e assim naveguei na vida
passageiro do horizonte.

Hoje pergunto a mim mesmo
se não remei sempre a esmo                
a bordo do meu batel...

com meu sonho de criança
navegando a esperança
num barquinho de papel.
                 Curitiba, 16 de Dezembro de 2004
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, Brasil, 2007
 
O teu tesouro

Além, muito além desta paisagem,
numa realidade apenas pressentida
compreenderás ao fim dessa viagem
de onde vens e pra onde vais, na vida.

No torvelinho incessante dos destinos
cada um com seu papel nessa ribalta
semeando a ventura ou os desatinos
colherás o que te sobra ou que te falta.

Viandante dos caminhos milenares
aprendeste na decepção e nos pesares
que “nem tudo o que reluz é ouro”.

Guarda-te pois das ciladas da ilusão
porque “aonde estiver teu coração,
ali estará também o teu tesouro”.
Manoel de Andrade, Poesia
Manoel de Andrade, Castelo de Silves- Portugal, Outubro de 2016
Sobre o Autor
"Manoel de Andrade nasceu em Rio Negrinho, SC, em 1940. Formado em Direito pela UFPR, em 1965 conquista o 1º lugar num Concurso de Poesia Moderna em Curitiba. Nesse ano, ao lado de Helena Kolody, João Manuel Simões, Paulo Leminski, Hélio de Freitas Puglielli e outros, participa da Noite da Poesia Paranaense, no Teatro Guaíra. Em 1968, sua poesia é lançada nacionalmente pela Revista Civilização Brasileira e com Dalton Trevisan e Jamil Snege é apontado pelo jornalista Aroldo Murá, como um dos três destaques literários daquele ano, no Paraná.
Perseguido pela ditadura por sua poesia, foge do Brasil em 1969 e peregrina pela América, escrevendo e divulgando sua obra. Em 1970, seu primeiro livro, POEMAS PARA LA LIBERTAD, e publicado na Bolívia e posteriormente na Colômbia, EUA e Equador.
Atravessou 15 países convulsionados pelas lutas guerrilheiras, promovendo debates e declamando seus versos em universidades, teatros, festivais de cultura, congresso de poetas, reuniões públicas e clandestinas. Expulso da Bolívia em 1969, preso e expulso do Peru e da Colômbia em 1970, sua militância política é avaliada pelo destaque que lhe deram os mais importantes jornais latino-americanos e as agências de informações, como AP e UPI, noticiando ao mundo sua trajetória e seus aclamados recitais.
Em 1972 volta ao Brasil e, novamente procurado pela ditadura, passa a viver no anonimato distanciando-se por 30 anos da criação literária. Volta a escrever em 2002 e em 2007 publica CANTARES, seu primeiro livro publicado no Brasil. Em 2009 POEMAS PARA A LIBERDADE é publicado numa edição bilíngue e em 2014 lança seu livro NOS RASTROS DA UTOPIA: Uma memória crítica da América Latina nos anos 70.("As palavras no espelho" , Escrituras Editora, São Paulo, 2018
.
Obras do autor:
Poemas para la Libertad
Comité Central Revolucionário Universidad Mayor de San Andrés - La Paz - Bolívia - 1970

Canción de amor a América y otros poemas
A.G.E.U.S y Promoción Cultural Universidad de El Salvador – San Salvador, 1971

Poesía latinoamericana – Antología Bilingüe
Latin-American Poetry – Bilingual Anthology
(Coletânea de Autores) Epsilon Editores de México – Bogotá, 1998

Próximas palavras
(Coletânea de Autores) Quem de Direito, Curitiba, 2002

Cantares
Escrituras Editora, São Paulo, 2007

Nos Rastros da Utopia
Escrituras Editora, São Paulo, 2014

As palavras no espelho 
Escrituras Editora, São Paulo, 2018

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Sebastião da Gama – Não ter vergonha de ser sincero

Sebastião da Gama – Não ter vergonha de ser sincero
por Eugénio Lisboa
«Sebastião da Gama é um dos poucos escritores — em qualquer língua — do qual se pode dizer, sem hesitar, que o homem que fez a obra coincide, ponto por ponto, com o homem que a obra faz supor. Quando pensamos nele — no meu caso, a partir dos inúmeros testemunhos dos que com ele conviveram — vem primeiro, ao nosso encontro, não a admiração que temos pelo poeta e pelo diarista, mas antes, o profundo afecto que sentimos pelo homem. Quem o conheceu — e não foi, infelizmente, o meu caso — assim reagiu. Nas cartas que José Régio lhe dirigiu, verifica-se isto mesmo. Ainda antes de conhecer, com qualquer profundidade, os seus livros, já o poeta dos Poemas de Deus e do Diabo se rendia, comovidamente, à sedutora candura e sinceridade do homem que era Sebastião da Gama. Numa carta que lhe dirigiu, em 11 de Maio de 1950, José Régio dizia-lhe o seguinte: "Com profundo prazer me detenho naquelas notas íntimas, naqueles versos densos de sugestões, através dos quais a autenticidade de um Poeta se revela. Se, porém, tivesse eu dúvidas — que nunca tive — sobre a autenticidade do seu temperamento poético, bastaria conhecê-lo pessoalmente para tais dúvidas se me desfazerem. Tive, há pouco tempo, ocasião de o conhecer um pouco melhor; e, embora não possa ainda dizer que o conheço, (ou não possamos nós dizer que nos conhecemos) o certo é que senti uma espécie de necessidade de lhe vir dizer isto... Desculpe a maneira um pouco atabalhoada com que lho digo." E, noutra carta escrita pouco menos de um ano depois (8 de Abril de 1951), reforça a forte impressão de sinceridade que, no poeta da Arrábida, colhera: "Quanto à sua sinceridade," nota ele, já no final da carta," — de modo nenhum duvido dela. Basta vê-lo, meu Amigo, e ouvi-lo, para se ter a certeza de tal sinceridade. Eis o que é um Poeta!' — tenho eu pensado só de ouvi-lo." Estas palavras do poeta de As Encruzilhadas de Deus, assumem um valor muito especial, quando se tem presente a proverbial cautela com que ele se aproximava dos homens e das suas obras. Mesmo quando o impressionavam favoravelmente, Régio jogava sempre à defesa. Mas, no caso de Sebastião da Gama, a sinceridade genuína e singularmente atraente do autor de Serra-Mãe impôs-­se-lhe, desde o primeiro momento. Pouco mais de um ano após o prematuro falecimento deste, José Régio dedicou-lhe, no número duplo 16/17 da revista Távola Redonda, um comovido testemunho, de que não resisto, mais uma vez, a transcrever uma passagem: "Quando pude conhecer pessoalmente Sebastião da Gama", escreveu Régio, "pensei, encantado: ‘Louvado seja Deus! Ora aqui está um Poeta! um novo Poeta!' E essa primeira e rejuvenescedora impressão, nunca os meus encontros seguintes com Sebastião da Gama a desmentiram. Só a confirmaram. De cada vez que me encontrava com ele, voltava a pensar: 'Ora aqui está um Poeta! um verdadeiro Poeta!' Dizer que o pensava com ternura, gratidão e respeito — é dizer pouco. Donde tal e tão viva impressão? Nada ouvia a Sebastião da Gama que já não tivesse ouvido, ou não pudesse vir a ouvir, a vários outros. É que não tanto das suas palavras como de todo ele, vinha essa impressão de juvenilidade e frescura, gentileza e comunicabilidade, entusiasmo e pureza, que me fazia pensar: ‘Não há dúvida! Eis um verdadeiro Poeta'. E de cada vez me achava eu como animado, e agradecido, pelo simples facto de existir, nestes velhos e demasiado sabidos tempos de hoje, um rapaz assim tão naturalmente protegido pela sublime ingenuidade poética de sempre."
Estes textos que, quase abusadoramente, citei, tiveram um projecto: recortar a imagem de um ser humano dotado de dons poéticos, no melhor sentido desta expressão: de um ser humano dotado de frescura, de sinceridade, de pureza, de uma quase mágica comunhão com tudo o que vive, de um respeito minucioso e infinito para com a natureza, de uma espécie de afecto muito simples mas, ao mesmo tempo, muito transcendente. O grande romancista inglês E. M. Forster, referindo-se ao romance — mas podendo nós, sem perigo, extrapolá-lo para a poesia ou para qualquer forma de arte — dizia que o teste último, para ela, será o nosso afecto por ela, como o é para os nossos amigos. A poesia de Sebastião da Gama — admira-se, mas, o que é ainda mais importante, fica-se profundamente amigo dela. E ficamos amigos dela porque ela é, por sua vez, genuinamente amiga de tudo quanto, na vida, importa. O poeta americano Longfellow observou, penetrantemente, que "o verdadeiro poeta é um homem amistoso. Acolhe, nos seus braços, mesmo as coisas frias e inanimadas e regozija-se com o seu próprio calor." É isto mesmo que também parece dizer Sebastião da Gama, na sua admirável página do seu Diário, com data de 9 de Março de 1949: "O poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade... E diz assim: ‘É preciso saber olhar...!’ E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo, como os homens feitos... E levanta uma pedra escura à espera para mostrar uma flor que está por detrás… E perde tempo (ganha tempo) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante..." Nesta comovente passagem se condensa toda uma arte poética que se constrói a partir do uso meticuloso do olhar: olhar para a natureza toda, sem nada desleixar. É o que o Poeta considera ser olhar "o mundo através da janela da Poesia". Olhá-lo sem vergonha, sem preconceitos absurdos. Por isso, observa, com intrépida justeza: "A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio. Se beija uma árvore, é parvo; se traz uma flor na mão, é maricas, se se enternece, é fraco; se acaricia uma menina, põe nessa carícia sexo; se vai a qualquer parte para passear e ver o mundo, faz constar que foi em viagem de estudo ou viagem de negócios. Temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos ou maricas, ou fracos ou lúbricos ou estroinas. E então perdemos o melhor da nossa vida a ludibriar os outros e a insultar as nossas intenções mais belas e generosas. Ó Portugueses, é tempo de torcer o pescoço ao respeito humano. Olhai que nós somos bons e talvez seja verdade que somos Poetas — e isso não deve ser desprezado, mas antes manifestado. Começai a ser sinceros, deixai de ser irónicos, e vereis como tudo corre melhor e a vida tem outro sabor!"
A arte poética de Sebastião da Gama consiste, pois, essencialmente nisto: olhar intrepidamente, sem vergonha, sem preconceitos, sem tabus, para tudo o que nos rodeia e nos seduz. O exercício de uma atenção minuciosa e destemida é urna promessa de grandes frutos. Quando, por debaixo de uma pedra escura, o Poeta encontra uma flor, ele sabe bem que não é apenas uma flor, porque uma flor não é nunca "apenas uma flor". A flor, como a pedra, como tudo, é o produto de uma incansável e misteriosa construção milenar: ou, como dizia o grande poeta inglês William Blake, "criar uma pequena flor é um labor que leva séculos." Sebastião da Gama sente, como poucos, a valia da natureza; o trabalho obstinado e quase clandestino que está por detrás de cada pedaço da natureza que o deslumbra. Por isso, gosta de percorrê-la, apesar de doente e prometido à morte, e não teme beijá-la: “Não tinha pés: tinha passos; / não tinha boca: era beijos; / não tinha voz: era como / se o folhado e a maresia / se tivessem combinado / para cantar ‘Ave, Maria...’”
A morte foi, desde cedo, uma presença próxima. O autor de Campo Aberto sabia que a sua vida seria curta. Havia, pois, que vivê-la intensamente, compensando, com intensidade, a curta duração; e havia, também, que torná-la intensamente produtiva, profissional e criativamente. Viver a vida, fruí-la, com intensidade, abrangência e minúcia — já vimos que o fez, bebendo o mundo a largos tragos; tornar a vida profissionalmente produtiva, como aluno e, depois, como professor aplicado, apesar de doente, todos os testemunhos confirmam, comovidamente, que assim fez. Mas limitar-me-ei a transcrever aqui uma curta passagem do belo testemunho que, no referido número da Távola Redonda, publicou o Professor Hernâni Cidade, um ano depois da morte do Poeta: "Como se empenhava ele" pergunta Cidade, "e com êxito notável, em ser o aluno cumpridor e esforçado, que não recuava perante o mais árido dos estudos, e de certa altura do curso em diante, com a superioridade expressa na sua alta nota de licenciatura? Com a mesma altíssima noção do dever fez o seu estágio para as Escolas Técnicas e com exemplaríssima dedicação, simpatia comunicativa e aplaudida eficiência exerceu o ensino oficial em Estremoz, onde o seu nome persiste aureolado da mais viva e comovida saudade."
Saber, em suma, que ia viver pouco incitava-o, paradoxalmente, a viver muito, o tempo todo. Observava o grande psicólogo Eric Fromm que "a ideia de ter que morrer sem ter vivido é insuportável." Sebastião da Gama, em vez de passar o tempo a namorar passivamente a morte, agarrou-se à vida e produziu vida: nos poemas que nos deixou e na dádiva total que de si fez aos amigos, aos alunos e à mulher que amou e com quem se casou. "A morte", disse Christopher Fry, num resumo, que é uma perfeita medalha, "[a morte] é um novo interesse na vida." Alguns poetas, como o portalegrense José Duro, também cedo desaparecido, devorado pela tuberculose, agarraram-se, em vida, à morte e cantaram-na de modo insistente e mórbido. Sebastião da Gama viu na morte um grande incentivo para viver a vida e venerá-la e cantá-la.
No campo da criação poética, a aproximação foi semelhante. David Mourão-Ferreira, no belo texto que dedicou à memória do poeta seu amigo, após a sua morte, cita uma passagem de uma carta que dele recebera, na qual dizia: "Sabes por que não perco tempo em cafés e em outras coisas de que o café é uma metáfora? Porque quero deixar feita a minha obra. Poder dizer à Morte: ‘Já vens tarde.' Porque ela é irónica e vem no meio da nossa distracção." E o comentário de David a estas palavras diz o seguinte: "São de Novembro de 1947 estas palavras. Três anos depois, naquele poema Alegoria, [...] tem ele estes versos, tão dramaticamente próximos dos termos da carta: 'Dona Cigarra faz serão. / Como há-de ela dormir, se a vida é curta? / _ : Cigarra que se preza, quando morre / não deve estar a meio da canção'. Dessa carta a este poema há a distância que vai de uma confissão pessoal a uma obra de arte. Não que não seja profundamente bela a expressão literária desse trecho. Mas a obra de arte, mais que pela beleza da forma, caracteriza-se, segundo creio, pela capacidade de universalizar as preocupações mais pessoais e mais íntimas. Pelo trânsito alegórico daquela cigarra, o Sebastião da Gama tornava de toda a gente uma preocupação que era tão sua."
Sebastião da Gama, na sua curta vida profissional e criativa, viveu tanto a vida, precisamente porque tinha a morte ali tão perto, à sua espera. Não cedamos, porém, à tentação romântica de atribuir à sua doença e ao seu sofrimento a origem e a causa da sua obra. Pelo contrário, o seu talento fez-se ouvir, apesar e não por causa da sua doença. Foi a combinação soberba do seu talento e do seu forte carácter que lhe permitiu, a despeito das contrariedades da doença e da morte prematura, produzir uma obra com muito de notável, ainda que curta e, sob alguns aspectos, imperfeita. Ele deverá, talvez, ao seu infortúnio, um certo teor de gravidade que perturba o alado e o gracioso de tantos poemas. Isto mesmo foi assinalado por Régio, no seu comovido testemunho, quando diz: "Não obstante, compreendo agora como certa gravidade da obra de Sebastião da Gama — essa profunda gravidade que em vários seus poemas tão admiravelmente ombreia com a graça, a frescura, a juvenilidade, até a malícia, quer dos mesmos quer dos poemas vizinhos — era ganhada na convivência da Morte; essa morte à qual, num dos mais tocantes e complexos gritos do nosso lirismo, ele pede a Deus o poupe, por ainda se não julgar digno dela! tal convivência, que é a dos que vão morrer cedo, ou vivem mortos para as superfluidades da vida corrente, - ainda que tão vivos, como Sebastião da Gama, para todas as amabilidades do Momento eterno — só tal convivência ensina coisas que também só a verdadeira Poesia comunica." Claro que Régio tem razão, se atendermos aos factos e às circunstâncias. Para o caso, terá sido a presença próxima da morte que lhe alimentou o teor de gravidade dos poemas. Mas se não fosse a Morte e ele tivesse vivido a extensão normal de uma vida, quem pode dizer que outros motivos lhe não teriam também activado um natural pendor para graves cogitações? A sua organização psico-fisiológica e o seu talento estariam lá, devidamente apetrechados e vocacionados para o exercício de aprofundamento de uma gravitas, de que a morte não é proprietária única. Não lhe concedamos, pois, mais crédito do que aquele que lhe é devido. Sobretudo, não retiremos mérito ao inconfundível talento do autor de Cabo da Boa Esperança, para, imerecidamente, o darmos àquela que lhe roubou a vida. Não foi por a mãe lhe ter dado um padrasto antipático que Baudelaire escreveu As Flores do Mal: escreveu-as porque tinha génio e apesar da antipatia do padrasto.
 
Vou terminar. Como todas as vidas, mas, sobretudo, como todas as vidas um pouco singulares, a vida de Sebastião da Gama é muito capaz de deixar muitas perguntas por responder. Uma delas — provavelmente estúpida, mas são as perguntas estúpidas que têm feito andar o mundo — uma delas até pode ser esta: "O que faz que se possa nascer com tanto talento e, tão prematuramente, ferido de morte?" Não sei responder, confesso. Mas sempre vos deixo, aqui, a propósito, e para acabar, estas palavras do dramaturgo americano Tennesse Williams: "A vida é uma pergunta sem resposta, mas seja-nos permitido acreditar na dignidade e na importância da pergunta." »
Texto da palestra sobre Sebastião da Gama, proferida por Eugénio Lisboa em 16 de Novembro de 2012, na Biblioteca Municipal de Setúbal.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Pensamentos do dia


“O que é a felicidade além da simples harmonia entre o homem e a vida que ele leva?” 
Albert Camus

“Felicidade é o desejo pela repetição.” 
Milan Kundera

“Nada impede mais a felicidade do que a lembrança da felicidade.” 
André Gide

“A felicidade que preciso não é fazer o que quero, mas não fazer o que não quero.” 
Jean-Jacques Rousseau

"Acreditar é monótono, duvidar é apaixonante, manter-se alerta: eis a vida."
Oscar Wilde

"Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira."
Johann W. Goethe

"As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo."
Epicuro

"Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido."
Fernando Pessoa

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

As Ilhas Desconhecidas

 

Os olhos de Raul Brandão correram Portugal e Ilhas para pintá-los em magistrais telas de palavras. Deixou uma obra singular que só uma sensibilidade profunda é capaz de tecer, assim o comprova o excerto  do livro "As Ilhas desconhecidas ", que se apresenta.
Guilherme d'Oliveira Martins classifica-o  como uma obra-prima com os seguintes argumentos:   . 
 UMA OBRA - PRIMA
"No início das Memórias, Raul Brandão (1867-1930) define o seu modo de ver, a sua atitude: “Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra”. E isto plenamente se manifesta em As Ilhas Desconhecidas – Notas e Paisagens, sem sombra de dúvida uma das obras-primas da literatura de viagens em língua portuguesa, facilmente ombreando com os melhores clássicos. Com efeito, ainda hoje, é impossível compreender os Açores moderno, sem trilhar os passos e entender as apreciações do escritor nessa viagem realizada de junho a agosto de 1924, ao encontro de um mundo de magia e mistério. Ligam-se a natureza, as pessoas, as tradições e a história, e o que resulta é um panorama que naturalmente nos atrai, numa identificação em que nos tornamos participantes num extraordinário laboratório onde o povo açoriano se singulariza nas suas qualidades, através de um melting pot baseado numa rica simbiose entre natureza e sociedade.
Guilherme D’Oliveira Martins , em “A vida dos Livros”, e-cultura, Maio de 2018
As Ilhas Desconhecidas
Notas e Paisagens
por  Raul Brandão

                             AOS MEUS AMIGOS DOS AÇORES
EM TRÊS LINHAS
"Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha... Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nas leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!...
1926.
R.B. 
Lisboa

DE LISBOA AO CORVO
 8 de Junho, 1924
A BORDO DO «S. MIGUEL»
Enquanto a gente vê terra, não tira os olhos – não pode – dum resto de areal, dum ponto violeta que desmaia e acaba por desaparecer na crista duma vaga. Um ponto e acabou o mundo. O nosso mundo agora é outro. Durante um momento calamo-nos todos a bordo. A abóbada esbranquiçada fecha-se e encerra o disco azul onde espumas afloram nos redemoinhos que nos cercam: só uma gaivota teima em nos acompanhar descrevendo círculos por cima do navio. O ruído da hélice e a vasta desolação monótona... A vida a bordo dos vapores perdeu todo o interesse da antiga navegação à vela: é a vida a bordo do Hotel Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos navios com as vergas rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe àquele mastro real. o que vale é a agitação tremenda que não cessa, a água em vagalhões cada vez mais cinzentos e maiores, que as velhas de penante e plumas, sentadas de bombordo a estibordo, e que se atrevem com o oceano Atlântico, fazem o possível por amesquinhar. Mas vem a tarde, vem a noite nesta desolação amarga: o mar carrega-se e cospe-nos salpicos; paira no céu uma tinta que se entranha nas águas e as escurece. Ar lívido, água revolta e uma grandeza com que não posso arcar. Mais escuro... Já se não vê a ondulação perpétua; só se ouve o ruído da hélice incansável e o do esgoto rape-querape, como uma grande vassoura sobre as águas. Isto acaba por uma coisa negra e desmedida, por uma coisa ameaçadora e cheia de vozes, que o Hotel Francfort não consegue fazer esquecer com toda a sua banalidade. As estrelas nos ares agitados parecem outras estrelas, o céu outro céu e as forças desencadeadas do caos nunca as senti tão perto como hoje, nesta voz monótona que sai do negrume, nesta massa que nos mostra os dentes no alto das vagas entre as chapadas de tinta na imensa solidão desolada. Isto acaba pela treva absoluta. Está ali – está ali presente toda noite que não tem fim. Nós bem fingimos que não vemos a solidão trágica, o negrume trágico, mas eu tenho-o toda a noite ao pé de mim. Toda a noite esta coisa complicada que é um transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas. Todos os passageiros se fingem despreocupados. Só acolá, sob o castelo da proa (3ª classe), embrulhada num xale e sentada sobre um baú de lata, aquela mulher do povo sente como eu o terror sagrado do mar – e não o oculta. Olha petrificada. Aqui só há uma coisa a fazer, é a gente entregar-se... 
9 de Junho 
Mas hoje acordo, subo ao convés e tenho uma alegria frenética. Tudo isto, todo este azul, toda esta frescura, me entra em jorro pelos olhos dentro e pela alma dentro. A tinta azul não só ondula – estremece em pequenos grãos vivos, duma acção extraordinária, e o mundo sempre novo que me rodeia penetra-me do seu bafo e comunica-me a sua vida. Tomo posse do barco. Primeiro é a vigia que me encanta, aquela pupila redonda e azul que me fita logo que acordo e por onde o mar espreita para dentro do camarote. Depois é a pequena cela toda branca onde todas as coisas estão nos seus lugares medidos e calculados. A cabina reduz de propriedade e a sua beleza geométrica consiste em não ter de mais nem de menos: é o espaço exacto para a vida do passageiro ou do frade. Quando saio do camarote acho-me logo no convés. Este mundo muito limitado corre-se nalguns minutos. No castelo da proa, entre cabos embreados, ceroulas penduradas numa corda, e gente de terceira classe, é que a vida pitoresca do barco se revela melhor. Marinheiros preparam os cabrestantes para a descarga de amanhã, o carpinteiro de bordo prega tábuas e a tinta azul corre aos lados do vapor misturada de espuma à superfície. Olho o imediato na ponte dirigindo a manobra. Volto e acabo por me fixar durante alguns momentos na coberta pintada a ripolém, camada de branco, camada de verniz – cheira a alcatrão e a iodo – com os olhos presos na massa uniforme e fugidia, que se distingue do céu por ser mais condensada e mais azul. O panorama é imutável, metade céu e metade mar, e lá em baixo no costado o jorro do esgoto continua a desfazer-se em milhares de pérolas líquidas; é a alma do barco que resfolga.
Para compreender melhor este engenho, hotel e máquina ao mesmo tempo, tenho de descer ao interior e ver-lhe as tripas. Quando se abre a portinhola de ferro o quadro muda instantaneamente. Lá vai o hotel e o navio! – o que tenho diante de mim é um vasto espaço de paredes indecisas que a luz coada por papel oleoso ilumina – grande nave onde se agitam esqueletos esbranquiçados. Desço pela escada de caracol entre os cabeçorros de aço e engrenagens que mexem as pernas de aranhiços, braços que se movem por todos os lados, a escorrer óleo, fazendo gestos desajeitados. Todas estas peças que trabalham desordenadamente, subindo e descendo reluzentes de gordura, vão e vêm, remexem em conjunto para o mesmo fim. Os degraus da escada queimam, o ar quente irrespirável vibra, entrecortado às vezes dum resfolgar mais fundo que abafa os outros ruídos. Este complicado maquinismo ilumina o barco, transforma a água e faz mover as hélices. Complicado e delicado. – Deitado no beliche, diz o maquinista, eu sei perfeitamente qual é a máquina que se desarranja e não trabalha como deve. – Mas a alma do transporte é o fogo. É o fogo que faz girar os dois grandes veios de aço, que atravessam o barco em toda a sua extensão até às hélices. Entreabre-se uma pequena porta de ferro e recuo sufocado. A tragédia do navio que se transformou em máquina está aqui: para que o hotel viva, digira e se mova, é preciso que alguém sofra. Estou dentro dum grande poço de ferro onde a atmosfera é irrespirável. Duas paredes lisas de alto a baixo, cinzentas, e sem uma falha. A luz vem de cima, claridade duvidosa e suja, e quando aqueles homens, que se agitam lá dentro, abrem a porta da fornalha, um jorro vermelho ilumina, cresta e deslumbra. No chão ardem escórias, um fogueiro negro e curvado atira lá para dentro pazadas de carvão, e logo a portinhola bate com estrondo contra a alta parede de ferro. Fujo. Enquanto lá em cima todos nós vivemos no Hotel Francfort de Santa Justa, os outros cá em baixo vivem no Inferno.
10 de Junho
Ainda de noite, acordo, com o cheiro a terra. Salto do beliche e subo ao convés, que os marujos lavam a jorros de água. Luz cinzenta, luz doirada – transparência azul boiando cheia de cintilações ao longe, e depois mais luz viva que nasce e estremece diante da grande massa escura que sai do mar sob a magia do nascente: tenho diante de mim dois morros espessos, um mais próximo, recortando o negrume no céu doirado, e o outro ao fundo, todo roxo e picado de luzinhas como se lhe tivessem soprado faúlhas que se pegam e reluzem. A primeira luz ilumina a imobilidade cinzenta do mar, e, à medida que o vapor desfila na base do maciço negro e disforme, desdobram-se os planos e aparece intacto todo o pano de fundo. Um hálito azul... Mais claridade estremecendo – esta primeira luz delicada e viva, quando acorda a terra e acorda o mar com o céu todo doirado e virgem para as bandas do nascente e nos deita o bafo à cara. A frescura que nos trespassa torna-nos também etéreos. Para acolá está tudo ainda doirado e confundido, o morro maior e mais negro, e ao pé de mim cinzento e azul. Andam nas águas reflexos e espumas, e no fundo, donde o vapor saiu, ainda a luz do 56!, que se irisa nas águas, se mistura com a névoa e com um pouco de fumo da máquina que ficou suspenso e imóvel no ar. Há um momento único, um momento doirado, mar e céu doirado e casto, e outro em que tudo fica pálido e cinzento. Há um momento em que desejo que isto não mexa mais... Fundeamos e a Madeira abre-nos os braços, com a ponta do Garajau num extremo e a ponta da Cruz no outro extremo. Adivinho as casas, que por ora são fantasmas e descem lá do alto até à praia. Agora o tom cinzento desapareceu, domina o azul e o oiro, e na minha frente o grande anfiteatro verde dos montes ergue-se como um altar até ao céu. É uma serra a pique, é uma serra voluptuosa e verde que se oferece lânguida e verde. Ao meio um grande monte entreaberto; por trás a montanha enorme e escalvada. Algumas colinas vão terminar no farol e no forte sobre um penedo destacado e corroído.
Fico todo o dia a bordo, deslumbrado, contemplando a Madeira, a embeber-me no espectáculo da luz, que passa do cinzento ao azul, que ganha todos Os tons e se modifica a todos os momentos, até ao fim da tarde, em que o mar se torna diáfano e os montes transparentes, com uma grande nuvem pousada em cima. Vejo perder a cor, desfalecer, sumir-se a terra, que no escuro cheira cada vez mais a fruta e me inebria. Já o primeiro plano está roxo, o segundo é uma mancha enorme e indecisa, e o mar no poente arfa como um seio, ainda iluminado. À medida que o vapor se afasta, a montanha que me atrai parece mais negra e maior: – sobe, ergue-se e chega ao céu.
Largamos e vem a tarde, vem a noite, e o cair da noite no mar é um espectáculo trágico. Este movimento que não cessa, das ondas avançando em colunas cerradas, umas atrás das outras, sempre, põe-me diante do que mais temo no mundo – do universo como mistificação e acaso... Lá vão as cores – as tintas – o doirado... Sou aquele fragmento de tábua que as ondas levam sem destino, sempre no mesmo negrume, no mesmo movimento perpétuo e inútil... Não é só a ameaça, a grandeza da noite, do mar, das vozes; é outra coisa pior que se afirma – a tragédia do universo descarnada e posta a nu diante dos meus olhos. Com todas as suas complicações e o seu génio, as suas máquinas portentosas, com as suas ideias e a arquitectura que tem erguido  e que chega aos céus – o homem, nestes momentos, sente que vale tanto como um cisco para esta coisa imensa e negra, para esta agitação incessante. Isto é pior que implacável, é pior que ameaçador: – não nos conhece. De noite todo o barco geme. De quando em quando uma onda maior bate no costado – pah! ... Sinto-a contra mim, deitado no beliche, com um lamento que se prolonga e me enche de pavor. Pah! ... – é o negrume, o mar imenso e desconhecido, todo o mar. E o ah arrasta-se e desgrenha-se na noite, no vento, na profundidade. ...Uma manhã transparente que hesita e flutua como um ser delicado, envolta em neblinas. Céu dum azul-pálido, forrado no horizonte de nuvenzinhas claras. Mar desmaiado, que não foi feito para se ver mas para respirar, esparso, quieto e fundido. Ao fundo uma mancha indecisa, envolta em névoa, que logo se resolve em poeira esbranquiçada... Há nas coisas uma hesitação, uma mescla, um abrir, como no princípio do mundo quando a água, a luz e a terra não estavam ainda separadas pela mão de Deus. A tinta é muito pouca – quase nada de cor e de sonho. Santa Maria desvenda-se entre as névoas: um monte alongado com uma parte mais baixa e a Vila do Porto saliente, tudo azul emergindo do azul. À medida que o S. Miguel se aproxima, reparo que a ilha é doirada, com sombras a escorrer pelos montes abaixo. Alguns riscos mais carregados, algumas manchas roxas que pouco a pouco se acentuam. Fico perplexo e só quando chegamos quase à fala da povoação, Vila do Porto, é que compreendo: a ilha é um torresmo de pedra negra, de areia negra, como se tivesse passado pelo fogo do Inferno, mas o torresmo está coberto de giesta rasteira e doirada, de giesta em flor, que cheira a uma légua de distância.
Subo por um caminho entre figueiras-do-diabo e solteiras, como se chamam aqui as sardinheiras, que crescem por todos os lados. Colinas, campos de pastagem, e ao longe um pico mais alto donde se descobre toda a ilha. Povoação de duas ou três ruas e casinhas, com a igreja, a ossada dum convento e o solar humilde de Gonçalo Velho. É isolado e triste – mas pedras, campos e furnas estão cheios de asas e de gritos: os escarnentos, negros como melros, passam no ar com o biscato no bico, e a babosa enche este negrume cinzelado de oiro e de perfume. Há momentos em que se encobre o Sol e o torresmo sai mais negro do mar: só fica o cheiro que impregna a terra e o céu.
É aqui que os barcos de três velas vêm buscar o barro em bolas, para S. Miguel fabricar grandes talhas, canecas porosas, vasilhas de todas as formas e feitios. Santa Maria não só fornece os oleiros dos Açores mas fabrica também cântaros, púcaros, caboucos, numa ruazinha escondida da vila. Processos primitivos: o homem numa oficina escura prepara e amassa o barro, a que outros Vão lentamente dando feitio no engenho. Trabalha a mão e o pé: o pé na grande roda que faz girar o prato com o barro ainda informe, e a mão dando-lhe a forma.
Que importa que isto seja um ermo onde até às vezes a água falta, sendo preciso para matar a sede trazê-la em navios de S. Miguel? Aqui se vive e aqui se morre. E devo dizer que desta ilha silvestre duas coisas ficarão para sempre na minha memória: o púcaro de barro poroso que torna a água fresquíssima, e o cheiro a giesta que a embalsama. Fiquei-a conhecendo para o resto da minha vida pela ilha que cheira bem...
À tarde, pelas sete horas, temos outra ilha à vista, sob grossas nuvens amontoadas, tudo da mesma cor, nuvens e ilha. Ao largo um pôr do Sol dramático enche o horizonte, doira os bordos dos cerros e irrompe pelos interstícios caindo em feixes sobre as águas. Assisto ao desenlace deste drama mudo e extraordinário, quando ao mesmo tempo o ar se incendeia cor de cobre e na vasta solidão de estanho correm jorros de oiro fundido. Já no horizonte outra ilha se estende em biombo, baixa e enorme, toda da mesma cor. Mas o que me interessa é a luz que mudou, é o céu que mudou – a luz delicada dos Açores, o céu dos Açores carregado de humidade e forrado de nuvens que um pintor imitaria na tela com pequenos toques horizontais cor de chumbo, carregando-os e amontoando-os cada vez mais até à linha do horizonte. E é esta luz que me acompanha e nunca mais me larga, a mim que vivo de luz límpida, e que acordo todas as manhãs com o pensamento na luz... Ilumina S. Miguel (13 de Junho), coada pelo céu pardo, e Ponta Delgada estendida à beira da doca, com um grande monte violeta ao lado. Ilumina na madrugada de 15 a Terceira, ao pé dum pinheiral e duma fortaleza, e atabafa-me quase até ao fim da viagem – céu inalterável, névoa que se chama alforra, luz discreta em que as coisas perdem a importância e o relevo.
As manhãs são extraordinárias. Tons neutros – quase o mesmo tom apagado – névoas esbranquiçadas e moles... Neste ar parado o próprio som amortece: envolve o mundo uma pasta de algodão em rama, um vapor incorpóreo que apaga as cores, imobiliza a paisagem e faz do mar atmosfera. É um eterno dia de finados, recolhido e atento, em que o vento pára e não sopra. Branco e quieto, branco e mole, branco magoado, claridade tão íntima que eu próprio desfaleço. E ao mesmo tempo esta luz, que sais de pequeninas nuvens amontoadas no céu, revela-nos aspectos delicados em que nunca reparámos: se o céu está velado, o mar deixa de ter peso e estanha-se até ao horizonte enublado e fundido; o branco desfaz-se na água como no ar e basta um fio de azul coar-se pelas nuvens para que a vida exausta sorria com receio, num sorriso amortecido que logo a transforma e logo a medo desaparece. Certos aspectos da terra ficam sonâmbulos, outros fantasmagóricos e prestes a evaporarem-se nos ares ao primeiro bafo. ...
Pouco e pouco a luz insinua-se. Mais tons esbranquiçados e cinzentos, sombras pálidas com reflexos molhados. No céu há um fundo de oiro ténue misturado ao branco, pasmado e triste, e que mal se distingue. As coisas acentuam se um pouco – mas a esta luz delicada a mudança faz-se também duma maneira delicada. Todo o movimento é nas pontas dos pés. O branco-gris transe de roxo, deixando as sombras desmaiadas; o branco-branco amarelece e logo se queda arrependido, o azul distingue um pouco sobre o ar, e lá para os fundos os verdes diluídos estremecem duvidosos da cor que hão-de tomar – azul ou roxo... É um momento único em que no branco uniforme se geram novas tintas quase imateriais e o céu se defende e concentra todo em branco, com uma série de cinzentos em que o oiro tenta penetrar. Então a paisagem e até a vida parecem fluídas e abstractas: o panorama largo, a cinzento e branco com manchas leves derretidas, flutua no mar infinito e cinzento, emborralhado e cinzento...
Abstracção e sonho. Porque neste amanhecer perpetuo a gente sonha mais do que vê. Divaga. Pouco e pouco a paisagem fica azulada – dum azul desmaiado, dum azul com água. Divaga toda azul num mundo de sombras brancas, de hálitos tépidos, de penas que esvoaçam.. É alguma coisa de perfeito, de incriado e sereno...
O que eu gostava de dar esta vida que não acaba por desvendar-se e que por isso mesmo possui um  encanto superior – todo em branco e cinzento amortecidos! E ainda os efeitos são o menos – a vida íntima desta luz extraordinária é que é tudo. Tão pouco! tão imaterial! tão exalação e alma! Só abstracção e receio... É outro mundo, que nos deixa perplexos. É outro mundo, em que os sentimentos devem ser mais amortecidos – povoados por fantasmas que sorriem e desaparecem. Há pedaços de mar virginais: não se sabe se de espuma se de cinza – e pedaços de terra misteriosos. Um mundo só branco e cinzento, um mundo baço, que não pode revelar-se, irresoluto– e cujo encanto se comunica mais pela alma do que pela vista...
O navio fundeia na Terceira, num vasto semicírculo, fechado ao norte pelo monte Brasil e do outro lado pela ilha das Cabras. Está um calor surdo. Demoro-me a olhar a cidade, donde irrompe uma pirâmide amarela, o monumento a D. Pedro IV. Num plano mais afastado alguns montes escalvados. É Braga, Braga com mais regularidade nas ruas, mais cai nas paredes, e que lhe deu na veneta para ser praia, estendendo até à beira-mar os seus conventos e as suas igrejas pesadas, com um forte em cada extremidade. Na rua andam mulheres de capote negro, apertado na cinta e formando concha sobre a cabeça, e raparigas do povo com o lenço atado só com um nó e deixando ver as madeixas: – são as solteiras; as casadas escondem todo o cabelo e atam duas vezes o lenço no pescoço. Foi aqui que vi as mais lindas figuras de mulheres dos Açores – tipos peninsulares, de cabelos negros e olhos negros retintos.
Tomei por uma estradinha ao acaso, onde florescem, nascendo nos muros, as chagas e os alfinetes cor-de-rosa. Atravessei a Urze tão branquinha, os caminhos humildes de Figueiras Pretas e Bico de Cabo Verde, recolhida entre pinhais e acácias, a que chamam pau-de-toda-a-obra. Fui seguindo entre sarças da ilha. No caminho uma carreada – bois luzidios com ponteiras doiradas nos chifres e homens desempenados e fortes à frente dos carros. Entro no quintal dum amigo. Gostei sempre de me perder nas quintas e nos jardins entre quadros rústicos de lavoura. Sentei-me num pomar de deliciosas nêsperas amarelas e maduras, a vermelha mais ácida, e a branca mais doce e que se desfaz em sumo na boca. A vegetação reluz envernizada de novo. Espreitei o recanto abrigado da vinha baixa, que produz com duas castas, a Isabela e o Vermelho, o vinho de cheiro e o branco que tem fama. E depois passei por o jardim silencioso e húmido, pelas ruas altas de faias de Holanda. E neste ar tépido, nesta luz difusa, apareceram-me as japoneiras gigantescas em pirâmide, o goifão branco com a flor amarela ou leitosa abrindo ao meio das folhas estendidas à superfície das águas verdes e podres das bacias; a aromática espirradeira, que deixa cair as pétalas vermelhas, uma a uma, num canteiro de relva, desfalecida como se a sangrassem. Isto cresce diante dos meus olhos numa atmosfera quente e numa luz tão verde que chega a dominar o cinzento. Os jardins são sempre uma obra de arte, e quanto mais desordenados, mais belos. Devo até dizer que me encantam ainda mais que os jardins imponentes, onde a arquitectura se sobrepõe à natureza, e que mie infundem respeito – os quintais com couves e flores, onde me sinto mais à vontade. Acabo de descobrir agora, mesmo aqui à direita, uma horta. Sento-me na rua onde cresce a malva vidrada ao lado da salsa. Há por aí abóboras e flores, milho e hortenses e um banquinho de pedra onde se ouve .a água correr. É um pingo, mas enche-me de saudade... Só falta uma rapariga que se ponha a sorrir para a gente. Falta um vestido branco a aparecer e a desaparecer por trás dos laranjais. Nem vivalma. Tenho de subir lá cima, a este ponto da quinta dos Prazeres onde se descobre o mar e a terra. Vê-se ao longe S. Jorge e Pico, e mais perto as lavouras dum verde negro e satisfeito, e entre as casinhas brancas de S. Mateus a singular igreja erguida à Fome e à Miséria. Descobre-se a Terra Chã, e ao fundo a pesada lomba de Santa Bárbara. Despenham-se as verduras até ao mar. Saio devagarinho, para não acordar os grandes fetos senhoris, um arbusto todo vermelho que se chama cardeal e que olha para mim cheio de flores (e eu não sei o que lhe hei-de dizer) – devagarinho, para não perturbar este silêncio verde onde a gente tem a impressão de mergulhar em carne mole, aquecida numa atmosfera de estufa com os vidros embaciados. Sinto que me invade o torpor açoriano, e dizem-me que, quando vem o tempo de o incenso dar flor, toda a ilha fica tão perfumada que se não pode dormir. Ouve-se um gemido de volúpia (são os gérmenes que entreabrem) e o ar morno é uma carícia de pele de encontro à nossa pele e que pesa sobre o peito como um bloco.
Embarco com a mesma luz. Estranho-a e só mais tarde lhe acho o encanto. Dez, onze horas da manhã, e sempre o mesmo tom e a mesma claridade suave; a água, dum verde-escuro ao pé do morro, estremece em reflexos cinzentos para o largo, e a grande baía cinzenta confunde-se com o céu, que se não despega da grossa mancha enublada barrando todo o horizonte. Mas neste cinzento que parece uniforme reflecte-se o verde húmido do grande monte imóvel, tremulam outros verdes com reflexos metálicos e cores apagadas a que se mistura um pouco do azul que irrompe a custo das nuvens. Reparo melhor... Estes montes violetas até à ilha das Cabras, toda violeta, e que me seduzem tingidos de violeta no mar cinzento, saem dum líquido quase imaterial que é ar e céu. E estas cores um pouco tristes acabam por me deixar cismático... Vou sentindo melhor a luz dos Açores, a luz atenuada, os montes emborralhados, o ar atabafado e magnético, uma trovoada sempre suspensa, as ilhas com uma nuvem pegada nos altos e as mulheres encapuchadas. Tudo se harmoniza. É meio-dia. O azul quer ser azul, mas não o consegue, a terra deseja a luz, e a luz apenas se entreabre e desaparece; as águas fluidas, o horizonte vago arripiam-se, vão transformar-se a nossos olhos e quedam-se logo num receio... Silêncio. Uma cor que não chega a ser cor, que é resignação e saudade e que me obriga a falar mais baixinho...”
Raul Brandão
, in As Ilhas Desconhecidas, Quetzal Editora, pp.2-9

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

A saudade que nos traz

Eugénio Lisboa, Universidade de Aveiro

AUTOBIOGRAFIA
 
Uma vida escreve-se devagar,
embora se viva muito depressa:
mal se partiu, já se está a chegar,
mesmo que, no meio, muito aconteça!
 
Escrevê-la é moroso e complicado:
a memória guarda mas também esquece
e, se parte fica resguardado,
o resto, ingloriamente, fenece!
 
Escreve-se a vida, pra vencer a morte,
para dar à vida uma outra vida,
fechando-a, enfim, num cofre forte.
 
No cofre guardada e não esquecida,
pensa quem escreve, mal sabendo
quanto tudo o tempo vai roendo!
                       
                      08.12.2022
Eugénio Lisboa , in Soneto  modo de usar , Editora Guerra & Paz, Abril de 2024, p. 105.

Este soneto  glosa a finitude da vida num profundo olhar retrospectivo  para dar vida  a uma outra  vida e vencer a morte. O poeta deu-lhe o título de autobiografia   remetendo-nos para uma longa vida que se escreve devagar.
Eugénio Lisboa, o autor , viveu  93 anos . No cofre onde se guarda a vida, ficou uma extensa  produção literária que faz dele um dos maiores escritores deste século. Faleceu a 9 de Abril deste ano. Era, também, um ser excepcional,  enquanto pessoa . Praticava a simplicidade  e  o trato cordial com  quem o abordava . A Cultura era nele o saber acolher e repartir com o outro. Eugénio Lisboa   pertencia ao círculo de pessoas que Paul Valéry define como:  Os homens verdadeiramente grandes estão muito próximos dos outros pela mesma simplicidade que os afasta até ao infinito. Porque os homens verdadeiramente grandes conservam, na sua relação com as coisas profundas e difíceis com as quais estabelecem sua intimidade, as mesmas atitudes que têm com toda a gente; são ao mesmo tempo familiares, delicados e verdadeiros.
Soneto - modo de usar foi o último livro publicado no mês em que faleceu. Tem ainda uma extensa obra para publicar que engrandecerá a Literatura . Aguardemo-la.
A par de uma escrita diária , Eugénio Lisboa era um amante de Música. Tinha um valioso acervo musical. Mozart era o génio que sempre o deleitou. 
Na saudade que nos traz o seu desaparecimento , brindamos Eugénio Lisboa com uma peça mozartiana, conduzida por um grande maestro. 
  
 
Symphony Nr. 25 g-moll KV183, de Wolfgang Amadeus Mozart interpretada pela Wiener Philharmoniker, regida pelo Maestro Leonard Bernstein.