Os olhos de Raul Brandão correram Portugal e Ilhas para pintá-los em magistrais telas de palavras. Deixou uma obra singular que só uma sensibilidade profunda é capaz de tecer, assim o comprova o excerto do livro "As Ilhas desconhecidas ", que se apresenta.
Guilherme d'Oliveira Martins classifica-o como uma obra-prima com os seguintes argumentos: .
UMA OBRA - PRIMA
"No início das Memórias, Raul Brandão (1867-1930) define o seu modo de ver, a sua atitude: “Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra”. E isto plenamente se manifesta em As Ilhas Desconhecidas – Notas e Paisagens, sem sombra de dúvida uma das obras-primas da literatura de viagens em língua portuguesa, facilmente ombreando com os melhores clássicos. Com efeito, ainda hoje, é impossível compreender os Açores moderno, sem trilhar os passos e entender as apreciações do escritor nessa viagem realizada de junho a agosto de 1924, ao encontro de um mundo de magia e mistério. Ligam-se a natureza, as pessoas, as tradições e a história, e o que resulta é um panorama que naturalmente nos atrai, numa identificação em que nos tornamos participantes num extraordinário laboratório onde o povo açoriano se singulariza nas suas qualidades, através de um melting pot baseado numa rica simbiose entre natureza e sociedade.
Guilherme D’Oliveira Martins , em “A vida dos Livros”, e-cultura, Maio de 2018
As Ilhas Desconhecidas
Notas e Paisagenspor Raul Brandão
AOS
MEUS AMIGOS DOS AÇORES
EM TRÊS LINHAS
"Este livro é feito com notas de viagem, quase
sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a
frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a
paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha... Não poder eu pintar
com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nas
leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!...
1926.
R.B.
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Lisboa |
DE LISBOA AO CORVO
8 de Junho, 1924
A BORDO DO «S. MIGUEL»
Enquanto a gente vê terra, não tira os olhos –
não pode – dum resto de areal, dum ponto violeta que desmaia e acaba por
desaparecer na crista duma vaga. Um ponto e acabou o mundo. O nosso mundo agora
é outro. Durante um momento calamo-nos todos a bordo. A abóbada esbranquiçada
fecha-se e encerra o disco azul onde espumas afloram nos redemoinhos que nos
cercam: só uma gaivota teima em nos acompanhar descrevendo círculos por cima do
navio. O ruído da hélice e a vasta desolação monótona... A vida a bordo dos vapores
perdeu todo o interesse da antiga navegação à vela: é a vida a bordo do Hotel
Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos navios com as vergas
rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe àquele mastro real. o que vale é a
agitação tremenda que não cessa, a água em vagalhões cada vez mais cinzentos e
maiores, que as velhas de penante e plumas, sentadas de bombordo a estibordo, e
que se atrevem com o oceano Atlântico, fazem o possível por amesquinhar. Mas
vem a tarde, vem a noite nesta desolação amarga: o mar carrega-se e cospe-nos
salpicos; paira no céu uma tinta que se entranha nas águas e as escurece. Ar
lívido, água revolta e uma grandeza com que não posso arcar. Mais escuro... Já
se não vê a ondulação perpétua; só se ouve o ruído da hélice incansável e o do
esgoto rape-querape, como uma grande vassoura sobre as águas. Isto acaba por
uma coisa negra e desmedida, por uma coisa ameaçadora e cheia de vozes, que o
Hotel Francfort não consegue fazer esquecer com toda a sua banalidade. As estrelas
nos ares agitados parecem outras estrelas, o céu outro céu e as forças
desencadeadas do caos nunca as senti tão perto como hoje, nesta voz monótona
que sai do negrume, nesta massa que nos mostra os dentes no alto das vagas
entre as chapadas de tinta na imensa solidão desolada. Isto acaba pela treva
absoluta. Está ali – está ali presente toda noite que não tem fim. Nós bem
fingimos que não vemos a solidão trágica, o negrume trágico, mas eu tenho-o
toda a noite ao pé de mim. Toda a noite esta coisa complicada que é um
transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a
noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A
ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas
polegadas. Todos os passageiros se fingem despreocupados. Só acolá, sob o
castelo da proa (3ª classe), embrulhada num xale e sentada sobre um baú de
lata, aquela mulher do povo sente como eu o terror sagrado do mar – e não o
oculta. Olha petrificada. Aqui só há uma coisa a fazer, é a gente
entregar-se... 9 de Junho
Mas hoje acordo, subo ao convés e tenho uma alegria
frenética. Tudo isto, todo este azul, toda esta frescura, me entra em jorro
pelos olhos dentro e pela alma dentro. A tinta azul não só ondula – estremece
em pequenos grãos vivos, duma acção extraordinária, e o mundo sempre novo que
me rodeia penetra-me do seu bafo e comunica-me a sua vida. Tomo posse do barco.
Primeiro é a vigia que me encanta, aquela pupila redonda e azul que me fita
logo que acordo e por onde o mar espreita para dentro do camarote. Depois é a
pequena cela toda branca onde todas as coisas estão nos seus lugares medidos e
calculados. A cabina reduz de propriedade e a sua beleza geométrica consiste em
não ter de mais nem de menos: é o espaço exacto para a vida do passageiro ou do
frade. Quando saio do camarote acho-me logo no convés. Este mundo muito
limitado corre-se nalguns minutos. No castelo da proa, entre cabos embreados,
ceroulas penduradas numa corda, e gente de terceira classe, é que a vida
pitoresca do barco se revela melhor. Marinheiros preparam os cabrestantes para
a descarga de amanhã, o carpinteiro de bordo prega tábuas e a tinta azul corre
aos lados do vapor misturada de espuma à superfície. Olho o imediato na ponte
dirigindo a manobra. Volto e acabo por me fixar durante alguns momentos na
coberta pintada a ripolém, camada de branco, camada de verniz – cheira a
alcatrão e a iodo – com os olhos presos na massa uniforme e fugidia, que se
distingue do céu por ser mais condensada e mais azul. O panorama é imutável,
metade céu e metade mar, e lá em baixo no costado o jorro do esgoto continua a
desfazer-se em milhares de pérolas líquidas; é a alma do barco que resfolga.
Para compreender melhor este engenho, hotel e máquina
ao mesmo tempo, tenho de descer ao interior e ver-lhe as tripas. Quando se abre
a portinhola de ferro o quadro muda instantaneamente. Lá vai o hotel e o navio!
– o que tenho diante de mim é um vasto espaço de paredes indecisas que a luz
coada por papel oleoso ilumina – grande nave onde se agitam esqueletos
esbranquiçados. Desço pela escada de caracol entre os cabeçorros de aço e
engrenagens que mexem as pernas de aranhiços, braços que se movem por todos os
lados, a escorrer óleo, fazendo gestos desajeitados. Todas estas peças que
trabalham desordenadamente, subindo e descendo reluzentes de gordura, vão e
vêm, remexem em conjunto para o mesmo fim. Os degraus da escada queimam, o ar
quente irrespirável vibra, entrecortado às vezes dum resfolgar mais fundo que
abafa os outros ruídos. Este complicado maquinismo ilumina o barco, transforma
a água e faz mover as hélices. Complicado e delicado. – Deitado no beliche, diz
o maquinista, eu sei perfeitamente qual é a máquina que se desarranja e não
trabalha como deve. – Mas a alma do transporte é o fogo. É o fogo que faz girar
os dois grandes veios de aço, que atravessam o barco em toda a sua extensão até
às hélices. Entreabre-se uma pequena porta de ferro e recuo sufocado. A
tragédia do navio que se transformou em máquina está aqui: para que o hotel
viva, digira e se mova, é preciso que alguém sofra. Estou dentro dum grande
poço de ferro onde a atmosfera é irrespirável. Duas paredes lisas de alto a
baixo, cinzentas, e sem uma falha. A luz vem de cima, claridade duvidosa e
suja, e quando aqueles homens, que se agitam lá dentro, abrem a porta da
fornalha, um jorro vermelho ilumina, cresta e deslumbra. No chão ardem
escórias, um fogueiro negro e curvado atira lá para dentro pazadas de carvão, e
logo a portinhola bate com estrondo contra a alta parede de ferro. Fujo.
Enquanto lá em cima todos nós vivemos no Hotel Francfort de Santa Justa, os
outros cá em baixo vivem no Inferno.
10 de Junho
Ainda de noite, acordo, com o cheiro a terra. Salto do
beliche e subo ao convés, que os marujos lavam a jorros de água. Luz cinzenta,
luz doirada – transparência azul boiando cheia de cintilações ao longe, e
depois mais luz viva que nasce e estremece diante da grande massa escura que
sai do mar sob a magia do nascente: tenho diante de mim dois morros espessos,
um mais próximo, recortando o negrume no céu doirado, e o outro ao fundo, todo
roxo e picado de luzinhas como se lhe tivessem soprado faúlhas que se pegam e
reluzem. A primeira luz ilumina a imobilidade cinzenta do mar, e, à medida que
o vapor desfila na base do maciço negro e disforme, desdobram-se os planos e
aparece intacto todo o pano de fundo. Um hálito azul... Mais claridade
estremecendo – esta primeira luz delicada e viva, quando acorda a terra e
acorda o mar com o céu todo doirado e virgem para as bandas do nascente e nos
deita o bafo à cara. A frescura que nos trespassa torna-nos também etéreos.
Para acolá está tudo ainda doirado e confundido, o morro maior e mais negro, e
ao pé de mim cinzento e azul. Andam nas águas reflexos e espumas, e no fundo,
donde o vapor saiu, ainda a luz do 56!, que se irisa nas águas, se mistura com
a névoa e com um pouco de fumo da máquina que ficou suspenso e imóvel no ar. Há
um momento único, um momento doirado, mar e céu doirado e casto, e outro em que
tudo fica pálido e cinzento. Há um momento em que desejo que isto não mexa
mais... Fundeamos e a Madeira abre-nos os braços, com a ponta do Garajau num
extremo e a ponta da Cruz no outro extremo. Adivinho as casas, que por ora são
fantasmas e descem lá do alto até à praia. Agora o tom cinzento desapareceu,
domina o azul e o oiro, e na minha frente o grande anfiteatro verde dos montes
ergue-se como um altar até ao céu. É uma serra a pique, é uma serra voluptuosa
e verde que se oferece lânguida e verde. Ao meio um grande monte entreaberto;
por trás a montanha enorme e escalvada. Algumas colinas vão terminar no farol e
no forte sobre um penedo destacado e corroído.
Fico todo o dia a bordo, deslumbrado, contemplando a
Madeira, a embeber-me no espectáculo da luz, que passa do cinzento ao azul, que
ganha todos Os tons e se modifica a todos os momentos, até ao fim da tarde, em
que o mar se torna diáfano e os montes transparentes, com uma grande nuvem
pousada em cima. Vejo perder a cor, desfalecer, sumir-se a terra, que no escuro
cheira cada vez mais a fruta e me inebria. Já o primeiro plano está roxo, o
segundo é uma mancha enorme e indecisa, e o mar no poente arfa como um seio,
ainda iluminado. À medida que o vapor se afasta, a montanha que me atrai parece
mais negra e maior: – sobe, ergue-se e chega ao céu.
Largamos e vem a tarde, vem a noite, e o cair da noite
no mar é um espectáculo trágico. Este movimento que não cessa, das ondas
avançando em colunas cerradas, umas atrás das outras, sempre, põe-me diante do
que mais temo no mundo – do universo como mistificação e acaso... Lá vão as
cores – as tintas – o doirado... Sou aquele fragmento de tábua que as ondas
levam sem destino, sempre no mesmo negrume, no mesmo movimento perpétuo e
inútil... Não é só a ameaça, a grandeza da noite, do mar, das vozes; é outra coisa
pior que se afirma – a tragédia do universo descarnada e posta a nu diante dos
meus olhos. Com todas as suas complicações e o seu génio, as suas máquinas
portentosas, com as suas ideias e a arquitectura que tem erguido e
que chega aos céus – o homem, nestes momentos, sente que vale tanto como um
cisco para esta coisa imensa e negra, para esta agitação incessante. Isto é
pior que implacável, é pior que ameaçador: – não nos conhece. De noite todo o
barco geme. De quando em quando uma onda maior bate no costado – pah! ...
Sinto-a contra mim, deitado no beliche, com um lamento que se prolonga e me
enche de pavor. Pah! ... – é o negrume, o mar imenso e desconhecido, todo o
mar. E o ah arrasta-se e desgrenha-se na noite, no vento, na profundidade.
...Uma manhã transparente que hesita e flutua como um ser delicado, envolta em
neblinas. Céu dum azul-pálido, forrado no horizonte de nuvenzinhas claras. Mar
desmaiado, que não foi feito para se ver mas para respirar, esparso, quieto e
fundido. Ao fundo uma mancha indecisa, envolta em névoa, que logo se resolve em
poeira esbranquiçada... Há nas coisas uma hesitação, uma mescla, um abrir, como
no princípio do mundo quando a água, a luz e a terra não estavam ainda
separadas pela mão de Deus. A tinta é muito pouca – quase nada de cor e de
sonho. Santa Maria desvenda-se entre as névoas: um monte alongado com uma parte
mais baixa e a Vila do Porto saliente, tudo azul emergindo do azul. À medida
que o S. Miguel se aproxima, reparo que a ilha é doirada, com sombras a escorrer
pelos montes abaixo. Alguns riscos mais carregados, algumas manchas roxas que
pouco a pouco se acentuam. Fico perplexo e só quando chegamos quase à fala da
povoação, Vila do Porto, é que compreendo: a ilha é um torresmo de pedra negra,
de areia negra, como se tivesse passado pelo fogo do Inferno, mas o torresmo
está coberto de giesta rasteira e doirada, de giesta em flor, que cheira a uma
légua de distância.
Subo por um caminho entre figueiras-do-diabo e
solteiras, como se chamam aqui as sardinheiras, que crescem por todos os lados.
Colinas, campos de pastagem, e ao longe um pico mais alto donde se descobre
toda a ilha. Povoação de duas ou três ruas e casinhas, com a igreja, a ossada
dum convento e o solar humilde de Gonçalo Velho. É isolado e triste – mas
pedras, campos e furnas estão cheios de asas e de gritos: os escarnentos,
negros como melros, passam no ar com o biscato no bico, e a babosa enche este negrume
cinzelado de oiro e de perfume. Há momentos em que se encobre o Sol e o
torresmo sai mais negro do mar: só fica o cheiro que impregna a terra e o céu.
É aqui que os barcos de três velas vêm buscar o barro
em bolas, para S. Miguel fabricar grandes talhas, canecas porosas, vasilhas de
todas as formas e feitios. Santa Maria não só fornece os oleiros dos Açores mas
fabrica também cântaros, púcaros, caboucos, numa ruazinha escondida da vila.
Processos primitivos: o homem numa oficina escura prepara e amassa o barro, a
que outros Vão lentamente dando feitio no engenho. Trabalha a mão e o pé: o pé
na grande roda que faz girar o prato com o barro ainda informe, e a mão
dando-lhe a forma.
Que importa que isto seja um ermo onde até às vezes a
água falta, sendo preciso para matar a sede trazê-la em navios de S. Miguel?
Aqui se vive e aqui se morre. E devo dizer que desta ilha silvestre duas coisas
ficarão para sempre na minha memória: o púcaro de barro poroso que torna a água
fresquíssima, e o cheiro a giesta que a embalsama. Fiquei-a conhecendo para o
resto da minha vida pela ilha que cheira bem...
À tarde, pelas sete horas, temos outra ilha à vista,
sob grossas nuvens amontoadas, tudo da mesma cor, nuvens e ilha. Ao largo um
pôr do Sol dramático enche o horizonte, doira os bordos dos cerros e irrompe
pelos interstícios caindo em feixes sobre as águas. Assisto ao desenlace deste
drama mudo e extraordinário, quando ao mesmo tempo o ar se incendeia cor de
cobre e na vasta solidão de estanho correm jorros de oiro fundido. Já no
horizonte outra ilha se estende em biombo, baixa e enorme, toda da mesma cor.
Mas o que me interessa é a luz que mudou, é o céu que mudou – a luz delicada
dos Açores, o céu dos Açores carregado de humidade e forrado de nuvens que um
pintor imitaria na tela com pequenos toques horizontais cor de chumbo,
carregando-os e amontoando-os cada vez mais até à linha do horizonte. E é esta
luz que me acompanha e nunca mais me larga, a mim que vivo de luz límpida, e
que acordo todas as manhãs com o pensamento na luz... Ilumina S. Miguel (13 de
Junho), coada pelo céu pardo, e Ponta Delgada estendida à beira da doca, com um
grande monte violeta ao lado. Ilumina na madrugada de 15 a Terceira, ao pé dum
pinheiral e duma fortaleza, e atabafa-me quase até ao fim da viagem – céu
inalterável, névoa que se chama alforra, luz discreta em que as coisas perdem a
importância e o relevo.
As manhãs são extraordinárias. Tons neutros – quase o
mesmo tom apagado – névoas esbranquiçadas e moles... Neste ar parado o próprio
som amortece: envolve o mundo uma pasta de algodão em rama, um vapor incorpóreo
que apaga as cores, imobiliza a paisagem e faz do mar atmosfera. É um eterno
dia de finados, recolhido e atento, em que o vento pára e não sopra. Branco e
quieto, branco e mole, branco magoado, claridade tão íntima que eu próprio
desfaleço. E ao mesmo tempo esta luz, que sais de pequeninas nuvens amontoadas
no céu, revela-nos aspectos delicados em que nunca reparámos: se o céu está
velado, o mar deixa de ter peso e estanha-se até ao horizonte enublado e
fundido; o branco desfaz-se na água como no ar e basta um fio de azul coar-se
pelas nuvens para que a vida exausta sorria com receio, num sorriso amortecido
que logo a transforma e logo a medo desaparece. Certos aspectos da terra ficam
sonâmbulos, outros fantasmagóricos e prestes a evaporarem-se nos ares ao
primeiro bafo. ...
Pouco e pouco a luz insinua-se. Mais tons
esbranquiçados e cinzentos, sombras pálidas com reflexos molhados. No céu há um
fundo de oiro ténue misturado ao branco, pasmado e triste, e que mal se
distingue. As coisas acentuam se um pouco – mas a esta luz delicada a mudança
faz-se também duma maneira delicada. Todo o movimento é nas pontas dos pés. O
branco-gris transe de roxo, deixando as sombras desmaiadas; o branco-branco
amarelece e logo se queda arrependido, o azul distingue um pouco sobre o ar, e
lá para os fundos os verdes diluídos estremecem duvidosos da cor que hão-de
tomar – azul ou roxo... É um momento único em que no branco uniforme se geram
novas tintas quase imateriais e o céu se defende e concentra todo em branco,
com uma série de cinzentos em que o oiro tenta penetrar. Então a paisagem e até
a vida parecem fluídas e abstractas: o panorama largo, a cinzento e branco com
manchas leves derretidas, flutua no mar infinito e cinzento, emborralhado e
cinzento...
Abstracção e sonho. Porque neste amanhecer perpetuo a
gente sonha mais do que vê. Divaga. Pouco e pouco a paisagem fica azulada – dum
azul desmaiado, dum azul com água. Divaga toda azul num mundo de sombras
brancas, de hálitos tépidos, de penas que esvoaçam.. É alguma coisa de
perfeito, de incriado e sereno...
O que eu gostava de dar esta vida que não acaba por
desvendar-se e que por isso mesmo possui um encanto superior – todo
em branco e cinzento amortecidos! E ainda os efeitos são o menos – a vida
íntima desta luz extraordinária é que é tudo. Tão pouco! tão imaterial! tão
exalação e alma! Só abstracção e receio... É outro mundo, que nos deixa
perplexos. É outro mundo, em que os sentimentos devem ser mais amortecidos –
povoados por fantasmas que sorriem e desaparecem. Há pedaços de mar virginais:
não se sabe se de espuma se de cinza – e pedaços de terra misteriosos. Um mundo
só branco e cinzento, um mundo baço, que não pode revelar-se, irresoluto– e
cujo encanto se comunica mais pela alma do que pela vista...
O navio fundeia na Terceira, num vasto semicírculo,
fechado ao norte pelo monte Brasil e do outro lado pela ilha das Cabras. Está
um calor surdo. Demoro-me a olhar a cidade, donde irrompe uma pirâmide amarela,
o monumento a D. Pedro IV. Num plano mais afastado alguns montes escalvados. É
Braga, Braga com mais regularidade nas ruas, mais cai nas paredes, e que lhe
deu na veneta para ser praia, estendendo até à beira-mar os seus conventos e as
suas igrejas pesadas, com um forte em cada extremidade. Na rua andam mulheres
de capote negro, apertado na cinta e formando concha sobre a cabeça, e
raparigas do povo com o lenço atado só com um nó e deixando ver as madeixas: –
são as solteiras; as casadas escondem todo o cabelo e atam duas vezes o lenço
no pescoço. Foi aqui que vi as mais lindas figuras de mulheres dos Açores –
tipos peninsulares, de cabelos negros e olhos negros retintos.
Tomei por uma estradinha ao acaso, onde florescem,
nascendo nos muros, as chagas e os alfinetes cor-de-rosa. Atravessei a Urze tão
branquinha, os caminhos humildes de Figueiras Pretas e Bico de Cabo Verde,
recolhida entre pinhais e acácias, a que chamam pau-de-toda-a-obra. Fui
seguindo entre sarças da ilha. No caminho uma carreada – bois luzidios com
ponteiras doiradas nos chifres e homens desempenados e fortes à frente dos
carros. Entro no quintal dum amigo. Gostei sempre de me perder nas quintas e
nos jardins entre quadros rústicos de lavoura. Sentei-me num pomar de
deliciosas nêsperas amarelas e maduras, a vermelha mais ácida, e a branca mais
doce e que se desfaz em sumo na boca. A vegetação reluz envernizada de novo.
Espreitei o recanto abrigado da vinha baixa, que produz com duas castas, a
Isabela e o Vermelho, o vinho de cheiro e o branco que tem fama. E depois
passei por o jardim silencioso e húmido, pelas ruas altas de faias de Holanda.
E neste ar tépido, nesta luz difusa, apareceram-me as japoneiras gigantescas em
pirâmide, o goifão branco com a flor amarela ou leitosa abrindo ao meio das
folhas estendidas à superfície das águas verdes e podres das bacias; a
aromática espirradeira, que deixa cair as pétalas vermelhas, uma a uma, num
canteiro de relva, desfalecida como se a sangrassem. Isto cresce diante dos
meus olhos numa atmosfera quente e numa luz tão verde que chega a dominar o
cinzento. Os jardins são sempre uma obra de arte, e quanto mais desordenados,
mais belos. Devo até dizer que me encantam ainda mais que os jardins
imponentes, onde a arquitectura se sobrepõe à natureza, e que mie infundem
respeito – os quintais com couves e flores, onde me sinto mais à vontade. Acabo
de descobrir agora, mesmo aqui à direita, uma horta. Sento-me na rua onde cresce
a malva vidrada ao lado da salsa. Há por aí abóboras e flores, milho e
hortenses e um banquinho de pedra onde se ouve .a água correr. É um pingo, mas
enche-me de saudade... Só falta uma rapariga que se ponha a sorrir para a
gente. Falta um vestido branco a aparecer e a desaparecer por trás dos
laranjais. Nem vivalma. Tenho de subir lá cima, a este ponto da quinta dos
Prazeres onde se descobre o mar e a terra. Vê-se ao longe S. Jorge e Pico, e
mais perto as lavouras dum verde negro e satisfeito, e entre as casinhas
brancas de S. Mateus a singular igreja erguida à Fome e à Miséria. Descobre-se
a Terra Chã, e ao fundo a pesada lomba de Santa Bárbara. Despenham-se as
verduras até ao mar. Saio devagarinho, para não acordar os grandes fetos
senhoris, um arbusto todo vermelho que se chama cardeal e que olha para mim
cheio de flores (e eu não sei o que lhe hei-de dizer) – devagarinho, para não
perturbar este silêncio verde onde a gente tem a impressão de mergulhar em
carne mole, aquecida numa atmosfera de estufa com os vidros embaciados. Sinto
que me invade o torpor açoriano, e dizem-me que, quando vem o tempo de o
incenso dar flor, toda a ilha fica tão perfumada que se não pode dormir.
Ouve-se um gemido de volúpia (são os gérmenes que entreabrem) e o ar morno é uma
carícia de pele de encontro à nossa pele e que pesa sobre o peito como um
bloco.
Embarco com a mesma luz. Estranho-a e só mais tarde
lhe acho o encanto. Dez, onze horas da manhã, e sempre o mesmo tom e a mesma
claridade suave; a água, dum verde-escuro ao pé do morro, estremece em reflexos
cinzentos para o largo, e a grande baía cinzenta confunde-se com o céu, que se
não despega da grossa mancha enublada barrando todo o horizonte. Mas neste
cinzento que parece uniforme reflecte-se o verde húmido do grande monte imóvel,
tremulam outros verdes com reflexos metálicos e cores apagadas a que se mistura
um pouco do azul que irrompe a custo das nuvens. Reparo melhor... Estes montes
violetas até à ilha das Cabras, toda violeta, e que me seduzem tingidos de
violeta no mar cinzento, saem dum líquido quase imaterial que é ar e céu. E
estas cores um pouco tristes acabam por me deixar cismático... Vou sentindo
melhor a luz dos Açores, a luz atenuada, os montes emborralhados, o ar
atabafado e magnético, uma trovoada sempre suspensa, as ilhas com uma nuvem
pegada nos altos e as mulheres encapuchadas. Tudo se harmoniza. É meio-dia. O
azul quer ser azul, mas não o consegue, a terra deseja a luz, e a luz apenas se
entreabre e desaparece; as águas fluidas, o horizonte vago arripiam-se, vão
transformar-se a nossos olhos e quedam-se logo num receio... Silêncio. Uma cor
que não chega a ser cor, que é resignação e saudade e que me obriga a falar
mais baixinho...”
Raul Brandão, in As Ilhas
Desconhecidas, Quetzal Editora, pp.2-9