sábado, 14 de janeiro de 2023

Insaciabilidade

Ronaldo e Zidane
Insaciabilidade
por Javier Marías
“ Não se preocupem os não aficionados do futebol, que a referência a esse desporto será somente um preâmbulo. É sabido que nele não há paciência nem, o que é pior, mérito que se acumule. Estamos a vê‑lo uma vez mais esta temporada: o Real Madrid ganhou a Liga dos Campeões do ano passado, e a do anterior, e a do anterior, três seguidas. Mais ainda, ganhou quatro das últimas cinco disputadas, façanha que nem de longe alguma outra equipa do continente conseguiu. Hoje, no entanto, joga pobremente, está quase posto de parte na Liga e não promete chegar longe na Liga dos Campeões (embora, como lhe corre sempre tão bem, nunca se saiba). A claque e a imprensa estão furiosas, desprezam o treinador e os jogadores. Segundo a minha maneira de ver, nada há de mal se uma equipa sofre um período de crise depois de tantos triunfos. Que mais se pode pedir? É natural que o nível não seja sempre o mesmo, para mais após a saída do excelente treinador Zidane e do maior goleador de toda a história do clube, Cristiano Ronaldo. O que angustia no futebol é que nada do que foi alcançado importa, que o passado não existe ainda que muito recente, que os maiores feitos não bastam se não tiverem continuidade imediata e não se repetirem indefinidamente. Eu, se fosse futebolista, viveria desesperado e atemorizado: “Domingo marquei três golos, mas se hoje não marco nenhum, esses três não servirão de nada e serei vaiado.” O falecido Luis Aragonés expressou‑o sem papas na língua há muito tempo: “Aqui só conta ganhar e ganhar e ganhar e ganhar. E ganhar e ganhar e ganhar e ganhar…” E assim até ao infinito, uma aterradora tarefa de Sísifo, cujo mito não sei já se muita gente conhece. O que não era de esperar, no entanto, é aquilo a que poderia chamar‑se a “futebolização” do mundo, em todos os domínios. As pessoas têm cada vez mais a sensação de que tudo o que fazem é inútil… a não ser que o façam uma e outra vez, que continuem a fazê‑lo. Se alguém presta um favor, por exemplo, rara é a vez em que acontece o mesmo que antes: esse favor não se esquecia e a pessoa entesourava uma dose de gratidão por parte do favorecido. Agora é em mais uma armadilha que se cai. Quem fez um favor, tem de fazer também o próximo, e outro, e o seguinte. Os precedentes contam pouco ou não contam: estão no passado, e do passado, quem se lembra? E se alguém se lembra, é para exigir da pessoa que esteja à altura, que torne a cumprir como se isso se tivesse convertido numa obrigação adquirida. Já terei contado o que muitas vezes me acontece quando me pedem uma colaboração que não me interessa nem me apetece, e à qual acedo por simpatia ou por cortesia. É frequente que, ao fim de algum tempo, o solicitante a que cedi volte à carga. E se a minha resposta é Não da segunda vez, não é raro que o insistente, longe de se mostrar agradecido pela ocasião anterior e compreender que abusou, se encha de cólera perante a minha negativa: “Se me escreveu um texto, como se atreve a negar‑me outro? Se acedeu da primeira vez, compete‑lhe aceder sempre.” Exagero, claro, mas é esta a atitude de fundo. Coisa semelhante sucede em todas as actividades. O escritor George R. R. Martin acaba de publicar um volumoso romance, aparentemente uma “prequela” da sua famosa série. Desconheço a qualidade da sua prosa, pois nunca li uma linha sua; mas admiro sobremaneira a sua capacidade imaginativa, após ver pela segunda vez, seguidas, as temporadas da série A Guerra dos Tronos, em antecipação à última. Este homem completou já uma obra ingente que, nas suas versões literária ou televisiva, proporcionou prazer a milhões de entre nós. Numa entrevista recente, o pobre Martin queixava‑se de que, assim que saíra o volumoso romance que requerera o seu esforço, não paravam de lhe perguntar: “Para quando a próxima entrega das Crónicas de Gelo e Fogo?” (Que assim deveria ter sido traduzido o seu ciclo, mais conhecido como A Guerra dos Tronos.) Muitos dos seus leitores não lhe têm em conta o que já fez, nem lho agradecem. Consideram‑no pouco menos do que um escravo às suas ordens, que não deveria descansar. As suas Ligas dos Campeões já conquistadas não importam. Chegam a ter o mau gosto, esses seus leitores despóticos, de o repreenderem pela sua gordura. Não é que por afecto a sua saúde os preocupe: temem simplesmente ficar sem a resolução da história no caso de Martin quinar antes de a concluir. É puro egoísmo, sem ponta de gratidão nem de estima. Trata‑se de um facto generalizado, o caso deste autor é somente o mais extremo, dada a repercussão planetária da sua obra. Não se credita a ninguém o que já pagou e com juros. Ninguém pode parar e dizer: “É já batante; e, além disso, cansei‑me.” Se tiver essa fraqueza, os seus sucessos anteriores serão instantaneamente revogados. É o que vemos a todos os níveis: quando alguém se demite ou é destituído de um cargo, seja o de ministra ou de caixeira do supermercado, agradecem‑lhe sumariamente “os serviços prestados” e quando muito recebe uma palmadinha pouco sentida nas costas. Aquilo que fez não conta… a partir do momento em que já não continua a fazê‑lo. Disse que o futebol e a sua insatisfação permanente contagiaram o mundo, mas talvez tenha sido antes o capitalismo mais selvagem e demente, que pede mais e mais e mais, e mais ganhos ano após ano até que morramos… É como parar e não fazer nada."
                                                                                 3‑11-19
Javier Marías, in “Será o cozinheiro boa pessoa?”, Relógio d’Água Editores, Dezembro de 2022,  pp.13-15
Sobre o Livro 
"Este livro reúne noventa e cinco artigos escritos por Javier Marías entre 3 de Fevereiro de 2019 e 24 de Janeiro de 2021. Javier Marías aborda com elegância, lucidez e por vezes também com exasperação alguns dos temas mais importantes da atualidade. Critica as arremetidas do politicamente correto contra a literatura e a liberdade de expressão, os atentados urbanísticos em Madrid ou Barcelona e verbera atitudes políticas e a hipocrisia tanto de partidos de esquerda como de direita. Javier Marías deixou-nos em setembro de 2022, pelo que estes são os últimos artigos que publicou."
Javier Marías
Sobre o Autor:
"Javier Marías nasceu em Madrid em 1951, tendo publicado romances, contos e antologias de artigos. Foi professor na Universidade de Oxford e na Complutense de Madrid. As suas obras foram publicadas em quarenta e seis línguas e em cinquenta e nove países, tendo sido membro da Real Academia Española. Entre os seus romances contam-se Los dominios del lobo, Travesía del horizonte, El monarca del tiempo, El siglo, O Homem Sentimental (Prémio Ennio Flaiano), Todas as Almas (Prémio Ciudad de Barcelona), Coração tão Branco (Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Lettre, IMPAC Dublin Literary Award), Amanhã na Batalha Pensa em Mim (Prémio Fastenrath, Prémio Rómulo Gallegos, Prémio Femina Étranger, Prémio Mondello di Palermo), Negras Costas do Tempo, os três volumes de Tu rostro mañana: 1 Fiebre y lanza (Prémio Salambó), 2 Baile y sueño, 3 Veneno y sombra y adiós, Os Enamoramentos, Assim Começa o Mal e Berta Isla.
Publicou duas antologias de contos, Enquanto Elas Dormem e Quando Fui Mortal. É ainda autor de dezanove colecções de artigos e ensaios e de Vidas Escritas, narrativas biográficas sobre alguns escritores. É também tradutor, com destaque para Tristram Shandy, de Laurence Sterne (Premio Nacional a la Mejor Traducción, 1979). Obteve prestigiados prémios literários na Alemanha, Espanha, Itália e Chile. 
Morreu a 11 de setembro de 2022, em Madrid."

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