quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A melhor gente que conheci foi na tropa

Revisitámos as "Memórias"  de Raul Brandão  para  extrair, de um dos capítulos, um curioso e ilustrativo excerto sobre a vida militarRaul Brandão nasceu na Foz do Douro (Porto), em 1867 e morreu em Lisboa, a 5 de Dezembro de 1930. Foi Militar do Exército Português até 1911. 

Vida militar 
por Raul Brandão 
" Durante o tempo que fui à tropa, vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel ( era o Cibrão na secretaria); castigo para um lado, castigos para outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes. Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior...
O Cibrão tinha essa ideia da tropa: - Na forma ninguém mexe nem com a ponta do nariz; quando um soldado levanta uma perna, todos os soldados , ao mesmo tempo, levantam a mesma perna com precisão mecânica.  Era um exército de relojoaria inútil, com alguns oficiais  modestos e pobres soldados bisonhos, que atravessavam o quartel sem entenderem nada, como eu, aterrados.  - Às armas! - era o Cibrão que entrava e tudo tremia nos seus fundamentos. 
Depois da Escola fui colocado como alferes no 20, Guimarães. Outra louça. Achei-me numa casa de campo sem conforto nenhum, mas a parada  da guarda era às onzes - entrada - e tocava à ordem à uma - saída. Meia dúzia de soldados no velho casarão negro e em osso, e oficiais a jogar o gamão , numa sala, ali encantados desde o princípio do mundo.
(...)
Aprendi logo que o importante na tropa era o servicinho, e o servicinho consistia em escrever no relatório de inspecção estas palavras mágicas - Sem novidade. Aprendi à minha custa , porque um dia mandei para o hospital  ( o médico Trigo ninguém o apanhava, sempre nas saias  da Pavôa!)  um soldado a escorrer sangue , a quem um cabo abrira a cabeça  com uma lata do rancho, foram elas! Atrapalhação! Auto. Gritaria.  A amiga do cabo foi queixar-se à mulher do coronel, que me descompôs, indignado. - Reforme o relatório! Reformei o relatório e apressadamente escrevi : Sem novidade. Jurei que não me metia noutra. Também percebi logo aos primeiros meses de serviço que aquela gente tinha medo de tomar responsabilidade dos seus actos. Do cabo ao comandante , todos sentiam o mesmo horror da responsabilidade.  - Meu coronel, amanhã é domingo, peço licença para ir ao Porto ver a família. - Dou-lhe licença, mas se acontecer alguma coisa não tomo a responsabilidade. Conhecidos estes dois fracos  e com o almanaque  do exército na algibeira, a vida era cómoda  e o futuro seguro: quem vivesse cem anos chegava, pelo menos, a major. Quer isto dizer que não houvesse oficiais excelentes? Havia-os , mas levavam  ou uma vida ignorada ou uma vida dos diabos. Um comandante sério , digno, sabedor, que tive logo no princípio  da carreira ( era um prático), foi reformado pelo Pimentel Pinto. Em Guimarães conheci vários exemplares de chefes curiosos. Um, pedia dinheiro a torto e a direito, aos oficiais, aos sargentos e  aos cabos, tendo começado por pedi-lo a um ministro estrangeiro, ao Assis Brasil ( seiscentos mil reis ou um tiro na cabeça!). Outros não passavam  de manequins , analfabetos e cheios de medalhas. Mas também convivi com oficiais simples, pobres e modestos. A melhor gente que conheci foi na tropa.
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Resumindo: eis alguns tipos de oficiais que conheci: 1º. , o oficial modesto, apagado cumpridor dos seus deveres, com um pequeno soldo e uma vida difícil e honrada. Ninguém fazia caso dele. Havia-os em todas as armas  - conheci um do estado-maior no quartel -general de Lisboa, que se deitou dum quarto andar à rua por dificuldades de vida. 2º. , o oficial que não queria responsabilidades . - O que é preciso , meninos, é que o servicinho corra! E fazia o menos que podia, fugindo do quartel como da peste. 3º. , o oficial parlapatão, almoçando regularmente e ceando regularmente. 4º. , o oficial político, que vivia nas antecâmaras dos ministros ou deputados nas cortes, cheio de comissões e medalhas. O menino bonito da tropa. Mas diga-se : alguns desses tipos modestos, a quem um pataco desequilibrava o orçamento, e que andavam de guarnição em guarnição, com as mulheres e os filhos vestidos e calçados, fazendo milagres para que o soldo lhes chegasse, foram do mais digno que encontrei por esse mundo.
(...)
Nos quartéis-generais e nos ministérios conheci outra gente mais complicada e pior, e entre outros, o general Sepúlveda , no Porto e, em Lisboa o Pimentel Pinto. Sepúlveda era um homem de bigode e pera e pernas arqueadas, com a luneta acavalada no nariz e a chibata na mão. Queria saber tudo, espiolhava tudo e até altas horas  da noite dava ordens à guarnição aterrada.(...) Pouco miolo lhe restava no caco - pouco é favor - e esse empedernido. Ai de quem lhe caísse no desagrado! Andavam os oficiais transferidos por dá cá aquela palha. (...)
No quartel-general de Lisboa fui encontrar um chefe de estado-maior no mesmo género. Chamavam-lhe o Burro, não porque a sua estupidez fosse por demais notória , mas porque a sua má-educação deixava a perder de vista a das alimárias. Levava tudo a coice. Só por castigo se podia servir com ele , que ainda me tratou pior quando soube no desagrado do Pimentel Pinto, que um dia me mandara chamar ao Ministério da Guerra para me dizer o seguinte: - O senhor sabe que o posso transferir para Bragança? Então continue a escrever em tal jornal...
(...)
Que falta? O principal , o soldado, e nestes custa-me a tocar nos pobres soldados portugueses, que formam a parte mais sólida do exército, sem ninguém dar por eles. Ninguém os ouve. Só fazem revoluções quando os oficiais os incitam. Comem o que lhes dão como os filhos de João, e obedecem, servem sem pio, e com o elogio do próprio Napoleão, que devia saber alguma coisa do assunto.
Nunca ninguém os quis elevar e, apesar disso, foram sempre excelentes, duma tranquilidade espessa e material de água choca. Nunca ninguém os quis elevar ? Minto. Homem Cristo tentou, e se o ouvissem, se em cada companhia os oficiais  ensinassem a ler os soldados , o analfabetismo levava um golpe certeiro e fundo e o exército tinha-se modificado. Ninguém quis. Acentuou-se nos quartéis um movimento de protesto: acabava a pânria, o gamão e a má-língua - acabava tudo! Era a transformação radical do exército português, porque no dia em que o soldado fosse mais instruído o oficial tinha de ser muito mais instruído ainda , e de saber impor-se para que o respeitassem. Porque o oficial julga o soldado, mas o soldado também o julga, e às vezes com mais justiça. É raro enganar--se. E não são os brandos, os choninhas, de quem ele gosta; os severos não lhe metem medo, se aplicam os castigos na medida da culpa e prontamente. Quase sempre os oficiais mais rigorosos são os que saíram da fileira , carregaram com a mochila e sentem ainda  nos ossos a dureza da tarimba. O que o soldado não perdoa é a hesitação dos atarantados, é a injustiça , é o furto do rancho, quase vulgar antigamente  e que era talvez a única maneira de alguns oficiais pobres viverem sem dívidas. Havia-os  que esperavam o mês do rancho para as pagarem. Dizia-se num tempo pouco anterior ao meu: - Fulano anda tão mal fardado... - Manda-se um mês para o rancho! Vergonha, sim - mas vergonha principalmente para o Estado, que não pagava convenientemente aos que o serviam, e que não acabava com o exército nem sabia dignificá-lo, deixando muitos oficiais quase à fome.  Meu pobre soldado português, às vezes batido, às vezes tratado do alto por bonifrates que nem sempre mereciam comandar-te - e tu pronto a obedecer. Nunca faltaste nas horas em que te exigiam a vida. Bem sei que, onde a onde, foi preciso pôr-te à frente oficiais estrangeiros para dares a medida do teu valor. Mas a culpa não foi tua. Quem te procurou encontrou-te e é de ti, meu amigo, que por fim de contas me restam ainda saudades." 
Raul Brandão, in Memórias ( Volume III) , Quetzal editores, 2017, pp.  503, 504, 506, 507, 508, 510, 511

Sobre o autor
A partir de 1912, "Raul Brandão, já reformado no posto de capitão do exército, alternaria entre a sua “Casa do Alto”, na Nespereira (Guimarães), e Lisboa, onde passava parte do inverno.(...).
O primeiro livro de Raúl Brandão surge em 1890: Impressões e Paisagens.  Em 1891, talvez por pressão familiar, talvez por sustento, Raúl Brandão troca o curso de Letras pela Escola do Exército. Tinha 24 anos. Viria a ser, sem convicção e com horror à férrea disciplina da caserna, um militar de carreira, reformando-se aos 44 anos. Colaborou com várias publicações: O Século, O Dia, Gente Lusa, Seara Nova entre tantas outras. Conviveu com Sampaio Bruno, Joaquim de Araújo e Basílio Teles, sem esquecer os seus amigos de adolescência: António Nobre e Justino Montalvão. Foi amigo de Columbano Bordalo Pinheiro, que lhe pintou dois quadros. Ele próprio dedicou-se à pintura como amador e dessa sensibilidade dá conta em obras como Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas.
Entre as suas obras avultam títulos como: Os Pobres, Húmus, Os Pescadores, O Pobre de Pedir, e as peças de teatro O Gebo e a Sombra e O Doido e a Morte. Muitas obras seriam dignas de menção, como A Farsa, El-Rei Junot, A Conspiração de Gomes Freire, O Rei Imaginário. As Memórias em três volumes constituem um dos exemplos maiores do género na nossa literatura. Memórias pessoais, memórias do seu tempo político e cultural, memórias das pessoas com quem o autor privou ao longo de uma vida consagrada à literatura e ao conhecimento dos outros - as recordações de Raul Brandão transportam-nos para um tempo, para uma sensibilidade e para um modo de escrita irrepetíveis: condensam um talento e um génio literário único; retratam alguns momentos de grande agitação política (as duas primeiras décadas do século xx)."
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1 comentário:

  1. Raul Brandão inflenciou inúmeros escritores que lhe sucederam. O caso de Vergílio Ferreira, por exemplo.E outros.

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