quarta-feira, 11 de abril de 2018

José Régio


JOSÉ RÉGIO 45 ANOS DEPOIS
Por Eugénio Lisboa
“Falecido, fez há escassas semanas 45 anos, poucos grandes escritores portugueses terão legado à posteridade uma herança tão poliédrica, tão diversa, tão rica, tão contraditoriamente provocante ou desafiante, como o autor desse poderoso romance que se intitula Jogo da Cabra Cega. De não muito lhe tem valido tal riqueza, numa república das letras onde impera, como nunca, a leviandade, o atrevimento provinciano, a glo-glória gulosamente abocanhada ao sair do ovo, as obras completas e encadernadas aos quarenta e pouco e uma máquina publicitária bem montada e bem oleada, que impõe reputações como quem promove automóveis topo de gama. Quando penso em certas glórias hoje trombeteadas, promovidas, televisionadas e multiplamente apaparicadas, ocorre-me a asserção do inestimável Daniel Boorstin: “Alguns nascem grandes, alguns ascendem à grandeza e ainda alguns contratam oficiais de relações públicas.” Estas, as relações públicas, substituem, com assinalada vantagem, os clássicos aferidores de mérito. A glória tornou-se um “produto” do mercado: inventa-se, promove-se, vende-se e compra-se. Nisso tudo, o mérito é o menos relevante. Tornar alguém famoso e vendável, da noite para o dia, é uma profissão nova e rendosa.
Nascido, mal acabara de acabar o século XIX, José Maria dos Reis Pereira, que se celebraria literariamente com o nome de José Régio, entrou ambiguamente num século XX que, a um tempo, perscrutou, assimilou e questionou. Pouco dado a modas e a “ismos”, embora empurrado a contragosto, por alguns, para o modernismo, José Régio iria, desde muito cedo, tornar-se dono de si mesmo, asperamente e insubornavelmente independente, visitando as artes modernas e os seus vários “ismos”, mas não se deixando nunca inserir, redutoramente, em escolas, movimentos ou “lobbies”, fossem estes de que cariz fossem. Aliás, nenhum verdadeiro criador cabe nunca, inteiro, numa escola ou movimento, isto é, jamais se deixa reduzir às coordenadas limitadoras de um qualquer “ismo”: nem Flaubert cabe, completo, no realismo, nem Stendhal no romantismo, nem Pessoa no Orpheu(ismo). Ao agredir-se os da presença, tem-se tentado confiná-los num alegado “psicologismo”, no qual abundantemente se cospe. Ora, em primeiro lugar, se a psicologia assenta bem em Proust, não se vê por que assentará mal em Régio ou Branquinho ou Simões. Em segundo lugar, reduzir a criação presencista ao reino do psicológico é pura e simplesmente tresler ou não ler os textos em apreço. Na obra de Régio, há psicologia, sociologia, política, misticismo, mitologia, observação minuciosa da realidade exterior (incluindo a caricatura e a sátira), compaixão com a miséria humana, filosofia da arte e por aí fora. Nem só de psicologia viveu a presença, como nem só de realismo ou de naturalismo vivem as obras de Flaubert ou Zola. Pessoa não teve que ver apenas com o Orpheu e Almada excedeu folgadamente as zaragatas anti-Dantas (aliás bem piores do que o Dantas) e outras do mesmo gosto. Todo o grande criador transcende sempre a pífia medalha em que gostam de o fixar. O problema de Régio e de outros grandes escritores portugueses não é um problema dele – é um problema nosso, de nós, seus herdeiros. A maioria das pessoas – mesmo os críticos e os emissores de opinião – não lêem de um modo geral os textos sobre que se pronunciam: lêem, de preferência, o que outros disseram deles. E estes, por sua vez, fizeram exactamente o mesmo, numa eterna leitura em segunda, terceira ou quarta mão. De modo que os mal-entendidos se perpetuam ao sabor do tempo. Dizia Rilke que “a fama é o agregado de todos os mal-entendidos que se coligem à volta de um nome.” Neste gosto de simplificar, para uso rápido e mais ou menos mundano, Régio é “psicólogo”, Torga é “telúrico”, Aquilino é “palavroso” e Pessoa “heteronímico”. Simplesmente, cada um deles é muito mais e mais complicadamente do que aquilo a que o querem reduzir. O nosso problema com qualquer destes figurões é termos que os ler, se os quisermos conhecer. Como têm, por outro lado, uma obra vasta, rica e contraditória, lê-los em diagonal ou de ouvido não dá. É mesmo preciso lê-los, no seu todo, com atenção e minúcia. Mas, neste mundo de informação aos baldes, navegase, de preferência, à superfície das obras e a grande velocidade, o que não é bem o mesmo que frequentá-las a sério. Resumindo muito e com alguma crueldade, Régio não se serve em pastilhas para consumo fácil e distraído. E nem sequer é ele o único esquecido e mal lido. Quem lê, hoje, o que se chama ler, Teixeira-Gomes, Sá-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Raul brandão, Afonso Duarte, Marmelo e Silva, Domingos Monteiro, João de Araújo Correia, Maria Judite de Carvalho, Irene Lisboa, José Rodrigues Miguéis e por aí fora? Os nossos jovens génios pensam que a literatura portuguesa começou no mês passado, com o aparecimento surpreendente de um romance de um amigo talentoso e só um nadinha analfabeto ou com um livrinho de poemas muito infractores de uma amiga com imenso ímpeto e só um bocadinho inculta, tudo gente que um prémio qualquer apaparicou e catapultou para a glo-glória. Ora, uma ideia luminosa, em matemática ou em física, pode ter.se aos vinte e poucos anos, mas a cultura leva muitas décadas a adquirir. O que falta nas avaliações irresponsáveis e hiperbólicas - e quase sempre amnésicas – que por aí pululam é uma sólida base cultural (com alguma saudável formação filosófica, pelo meio) que, por isso mesmo que não existe, catapulta para a ribalta mediocridades e inépcias que só a ignorância pode apadrinhar.  
José Régio, uma das grandes figuras da cultura portuguesa, não só do século XX, mas de toda a nossa história literária, é hoje quase totalmente ignorado por uma geração à qual o “surfing” leviano pelas informações sem dono, na Internet, tornou inapta para as sondagens em profundidade, a que a obra do autor de Histórias de Mulheres naturalmente convida.
Grande poeta, grande ficcionista, grande dramaturgo, grande ensaísta e crítico literário, o autor paciente e obstinado de A Velha Casa, de Benilde ou A Virgem-Mãe, de Mas Deus É Grande e de tantas páginas seminais consagradas a Camões, Camilo, SáCarneiro, Florbela, Pascoaes, Raul brandão, António Botto, Fernando pessoa, Eça, António Sérgio, Aquilino e tantos outros, configura uma riqueza de sondagens, de
ideias, de emoções plasmadas numa linguagem de uma clareza perturbante e perturbada por sombras abissais, que só uma superficialidade militante pode desdenhar. Mas a desatenção, o palrar inconsequente, a vaidade provinciana de se exibir o último produto da feira cultural “lá de fora”, o contentismo primário com a glo-glória misteriosamente surgida e promovida pelo departamento de imagem em vigor – tudo isto foi ampla e certeiramente castigado pelo autor de Jacob e o Anjo. Também por isso tem pago um preço alentado.
 Régio deixa-nos um legado de muitas componentes, uma das quais, talvez a mais valiosa, é também a mais incómoda: foi-o para ele e sê-lo-á, por certo, para quem a receber como testemunho e ideário – refiro-me ao seu inegociável espírito de independência: ao seu ser capaz de dizer “não” quando isso foi o que sentiu ter que dizer, mesmo quando lhe não conviesse dizê-lo. Régio, por outras palavras, nunca lisonjeou os “lobbies” de serviço, em cada momento da sua trajectória: nem os neorealistas – de quem até nem desgostava – no tempo em que estes dominavam o mercado cultural, nem os surrealistas, nem os dos Cadernos de Poesia, nem os concretistas, nem os católicos, nem os ateus, nem os jovens que o adulavam e a quem ele sempre recusou adular, nem nenhum dos diversos “ismos” que invariavelmente apareciam armados da convicção de terem finalmente encontrado a “pedra filosofal”. Dotado de uma “razão” forte, que, aliás, não pouco o incomodava, Régio acantonava-se num cepticismo desconfiado, sabendo muito bem o que duram, em termos de “solução definitiva”, todos esses fulgores, raios e disparos, frequentemente pouco apoiados num sério reflectir.”
Eugénio Lisboa , em “Comunicação apresentada no Instituto de Estudos Académicos para Séniores no ciclo Literatura Portuguesa: Leituras do Século XXI, a 19 de Janeiro de 2015”

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