quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

"Por que cantamos"de Manoel Andrade



Por que cantamos
de Manoel Andrade
para Mario Benedetti(*)
Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os  caídos nesta guerra…
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e  temos que caminhar num chão minado…
“você perguntará  por que  cantamos”
Se a violência sitia os nossos atos
e a corrupção gargalha da justiça…
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche…
“você perguntará por que cantamos”
Se o medo  está  tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar…
Se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando…
“você perguntará  por que cantamos”
Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos.
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível.
Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana.
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável.
Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada.
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas.
Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino.
Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante.
Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença.
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.
Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.
Manoel de Andrade, in " Cantares ",  Editora Escrituras , Curitiba, Maio de 2003
(*)  Escrevi  estes  versos motivado pelo belíssimo  poema  “Por qué cantamos”,  do poeta uruguaio Mario Benedetti. Num tempo em que todos caminhamos sobre o “fio da navalha”, me senti, como poeta,  implicitamente convocado a  também  testemunhar  por que cantamos. (Manoel de Andrade)

Por qué cantamos
Si cada hora viene con su muerte
si el tiempo es una cueva de ladrones
los aires ya no son los buenos aires
la vida es nada más que un blanco móvil
Usted preguntará por qué cantamos
Si nuestros bravos quedan sin abrazo
la patria se nos muere de tristeza
y el corazón del hombre se hace añicos
antes aún que explote la vergüenza
Usted preguntará por qué cantamos
Si estamos lejos como un horizonte
si allá  quedaron árbores y cielo
Si cada noche es siempre alguna ausencia
y cada despertar un desencuentro
Usted preguntará por qué cantamos
Cantamos porque el río está sonando
y cuando suena el río / suena el río
cantamos porque el cruel no tiene nombre
y en cambio tiene nombre su destino
Cantamos por el niño y porque todo
y porque algún futuro y porque el pueblo
cantamos porque los sobrevivientes
y nuestros muertos quieren que cantemos
Cantamos porque el grito no es bastante
y no es bastante el llanto ni la bronca
cantamos porque creemos en la gente
y porque venceremos la derrota
Cantamos porque el sol nos reconoce
y porque el campo huele a primavera
y porque en este tallo en aquel fruto
cada pregunta tiene su respuesta
Cantamos porque llueve sobre el surco
y somos militantes de la vida
y porque no podemos ni queremos
dejar que la canción se haga ceniza.
Mario Benedetti ,(De Retratos y Canciones)

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