quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O Mar , a Praia, a Póvoa do Varzim

 


O vento enchia o Mundo. Mal deixava

lugar para a tremenda voz das ondas.

Mas era o Mar apenas que se ouvia.

                                                                                Sebastião da Gama


Todos os verões passávamos uma grande temporada na Praia. O mês de Setembro fazia sempre parte dessa temporada, além de largos dias do mês de Agosto.
Enquanto vivi na Quinta, era a Póvoa do Varzim a nossa praia. Os meus pais tinham os amigos que, com eles, se acertavam para passarem o mesmo período na praia. Era uma longa fila de barracas ocupada por  famílias conhecidas ou/e amigas. Alinhava-se em frente ou junto ao Diana Bar. Para nós crianças, era o tempo do reencontro e do convívio. O tempo que nos trazia os amigos e o Mar. Um tempo que nos marcaria de diferente vivência. Estar na casa da praia, não era comparável a tempo algum passado na Quinta. Todos os encantos e ritos eram, em tudo, diferentes, ou  apenas outros. E como nos atraíam e nos faziam sentir  seres ainda mais felizes.
Fui , este ano de 2017, à Povoa do Varzim a um evento literário, Correntes d’Escritas, que penso ser considerado o festival literário mais importante da cidade , talvez  do país. Homenageava-se o maior crítico literário da actualidade, Eugénio Lisboa, que lançava um novo volume complementar aos cinco tomos das suas valiosas Memórias, “Acta Est Fabula”. Transcrevo um excerto dos textos que compunham a Revista do Festival que era dedicada a este grande escritor, que me dá o privilégio do  ser meu amigo:

 

“(…) Eugénio Lisboa, desde cedo, manteve uma relação com a Póvoa de Varzim, tendo em conta a sua ligação a José Régio que, como se sabe, escreveu grande parte da sua obra poética no Diana Bar.

Foram muitas as correspondências trocadas entre ambos, desde cedo.

Foi o próprio poeta que escreveu a Eugénio Lisboa, em carta de 19 de Fevereiro de 1968: «De manhã, depois das dez horas, ou estou em casa (...) ou no Diana-Bar da Póvoa, onde nos encontrámos da última vez. No Diana-Bar, de manhã, estou em baixo, no primeiro piso. À tarde, geralmente no segundo piso, que a gente chama a Galeria. Dessa última vez, foi aí que nos encontrámos».

O anterior encontro tivera lugar no Verão de 1963 e incluíra uma visita conjunta à Casa de Camilo, em S. Miguel de Seide. Eugénio Lisboa há-de recordar tais momentos, em carta de 4 de Agosto de 1964: «Tenho imensas saudades dos dois escassos dias que passei em Vila do Conde/Póvoa, o ano passado». E há-de celebrar, anos mais tarde, o apaixonado camilianismo dos dois visitantes, num luminoso ensaio a que deu o saboroso e evocativo título de «‘Coisas Nossas’. José Régio e Camilo: a love for all seasons», ensaio hoje disponível no seu Ler Régio.

No Diana-Bar, edifício modernista do final dos anos trinta, plantado no areal da Póvoa de Varzim e virado para a antiga Praia de Banhos, funciona desde 2002 um dos pólos daquele modelar equipamento cultural que é a Biblioteca Municipal Rocha Peixoto onde, em recente sessão comemorativa dos seus 25 anos, tive oportunidade de tratar o tema «Livros: difícil é lê-los». Todavia, durante seis décadas, o velho e belo Diana-Bar foi um lugar selecto de encontros estivais e de tertúlias intelectuais, onde José Régio escreveu muitas das suas páginas, como ainda hoje é recordado no próprio local. (in “Música no Diana Bar” texto de Jorge M. Martins publicado na Revista Correntes D’ Escritas 2017, cujo dossiê é dedicado a Eugénio Lisboa)

Fui à Povoa. Já, por lá, passara, ocasionalmente, em variadas épocas. Nesta viagem,  queria ter tempo para uma romaria da saudade. Pretendia calcorrear as ruas da cidade, em busca do tempo que fora meu, ali. Vã esperança. Apenas o areal e o mar  permaneciam  na infância da minha vida. Souberam manter-se indiferentes  às falácias do progresso. A geografia da cidade alterara-se com a invasão de um betão armado que fizera da vila um aglomerado turístico e balnear igual a muitos outros que proliferam pelo país  e por esse   mundo fora. A bela Avenida dos Banhos estava, agora, delimitada por uma muralha gigantesca de edifícios em série , irmanados na mesma linha arquitectónica que  faz deles objecto de rendimento financeiro. O turismo de massas , a grande aspiração que transformou muito dos nossos mais belos recantos do litoral em grandes metrópoles de consumo social.

Sobre essa transformação, retiro, do meu Diário de Bolso,  excertos de duas  entradas de Fevereiro, quando fui à Póvoa:

 

21.02.2017

(…) Lanço-me, um tanto confusa, em viagem de reconhecimento pela Avenida dos Banhos. Junto ao areal, onde criança passei alguns verões memoráveis, existe ainda o Diana Bar. É agora propriedade da Câmara Municipal. 

Tudo o que compõe esta avenida é novo. Betão armado dando forma a uma fila interminável de prédios iguais a muitos outros que despersonalizaram a costa portuguesa. A política de massificação generalizou-se partout, tornando as nossas praias em lugares fantasmas no Inverno e gaiolas lotadas e insuportáveis no Verão. Resta o Mar, impassível e sobranceiro à  mudança.

 

 

22. 02. 2017

Pela manhã, em romaria de saudade, tento descobrir a Póvoa de Varzim da minha infância. Quase tudo mudou, impedindo reconhecer a casa que sempre nos acolheu. Foi demolida, bem como o jardim que compunha um largo fronteiro. A Póvoa é uma nova povoação que, como muitas outras cidades costeiras, sofreu uma mudança radical.

 

Mas a Póvoa do Varzim era bela e diferente. Mal passávamos Vila do Conde, onde vivia o Tio Eduardo, a vontade de chegar ao nosso destino tornava o tempo uma eternidade. Nem sei explicar como era agradável a viagem para lá. Apenas os últimos momentos nos excediam pelo desespero, que só as crianças sentem. Queríamos já ter chegado. E quando a maresia começava a entrar forte e intensa pelas janelas abertas do automóvel,  sabíamos que faltava muito pouco. Impacientes, lançávamos os olhos em jeito de reconhecimento e de júbilo renascido.
A chegada era sempre saudada com intensa alegria, embora disciplinados obedecêssemos às instruções que nos eram dadas. Mas não havia quem nos sustivesse, assim que entrávamos na casa da praia. A corrida era sempre a mesma, repetia-se : verificar cada divisão, olhar cada grande ou pequeno objecto que identificava aquele espaço e chegar ao quarto para nos reapropriarmos de um lugar que nos pertencia, que era nosso.
Nesse dia, nunca havia tempo para ir a banhos, à praia. Quando já estávamos instalados, os nossos pais levavam-nos a dar um passeio pela Avenida dos Banhos e Passeio Alegre , onde estavam o Grande Hotel da Póvoa e o Casino. No Largo fronteiriço, havia uma improvisada loja de aluguer de bicicletas de todos os tamanhos e feitios. Ficavam–me sempre presos os olhos naquelas bicicletas . Foi ali que dei as primeiras pedaladas. Quando deixámos de ir para a Póvoa já sabia andar de bicicleta, com perícia e desenvoltura.
Ganhei também, ali, a minha primeira bicicleta. Quem ma ofereceu foi um dos amigos do meu pai, que acabara de ganhar à roleta no Casino, e se deparou comigo e com o meu pai, no Largo, junto às bicicletas.
Magnânimo, considerou ser o momento de repartir com a filha do amigo um prémio que lhe coubera em dia de  sorte, nos ditos jogos de azar. Como sabia do meu fascínio pelas bicicletas , obsequiou-me sem qualquer hesitação.
Exultei de alegria e fui recebida, com verdadeira estupefacção por todos, quando cheguei  a casa , a pedalar na bicicleta.
Passou a ser um dos objectos mais cobiçados até ao dia em que duas novas bicicletas vieram aumentar o espólio velocípede da casa.

Nos registos escritos do século XIX, a Póvoa do Varzim aparece como uma estância onde o jogo da roleta já se praticava e vitimava muitos curiosos. Era uma vila que crescera e ganhara notoriedade pelas suas águas , ricas em iodo, e também  pelas diversões e comércio que oferecia.  
Alberto Pimentel, em “O que anda no ar”, obra publicada em 1881, pela Empreza litteraria de Lisboa, escreve o seguinte:
 Povoa de Varzim. A mais movimentada de todas as praias que eu conheço. Parece uma peça de Sardou. Ha lojas cheias de gente e gente para encher as lojas. Falla-se, descute-se, joga-se, dança-se. Há animação. A noite, a villa enche-se de luz e de murmúrios. Tem um aspecto venesiano, vista do mar. O amor faz ali cincoenta casamentos por anno; mas as victimas da roleta são em muito maior numero. Alguns namorados sahem de lá com lagrimas nos olhos—como os batoteiros. Por terem perdido muito ou por terem ganho demasiadamente .. . N'este ultimo caso, as lagrimas são de remorso.” (Nota – o jogo praticava-se no Café Chinês e no Café David)
 
Também O Occidente n.º 119 de 11 de Abril de 1882, acompanhando uma gravura da “praia do Pescado”:
“Esta villa, qua ainda não ha muitos annos, era de pouca importancia, tem tomado nos ultimos tempos um grande desenvolvimento, já pelo augmento da sua industria de pesca, já porque é hoje uma das melhores praias de banhos procurada por nacionaes e estrangeiros.”
 
Para nós, a vida na praia orquestrava-se melodicamente. Quero eu dizer, que tudo era uma celebração harmoniosa. Um tempo que corria célere e que nos deixava uma saudade que se consumia o ano inteiro. Apesar das inúmeras visitas que fazíamos à Praia , ao longo do ano, não existia qualquer  termo de comparação com esses meses de autêntico festim .
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que Já escrevi, pp.39-43 

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