quarta-feira, 16 de maio de 2018

INTERMEZZO

Terraço do Café à Noite, (1888),Vincent van Gogh
INTERMEZZO
Jusqu’à la guerre de 1939 j’étais au  courant 
des problèmes de la jeunesse,je m’efforçais 
d’être à son niveau, mais depuis les événements 
qui ont bouleversé, le monde, je me sens étranger, 
non seulement aux jeunes,mais à la plupart des 
vivants d’aujourd’hui.
                                Roger Martin du Gard

"Interrompo mais uma vez, as páginas do meu diário(...)
Aproveito este intervalo para deixar claro algo que tem vindo a aparecer nas entrelinhas e, às vezes, nalgumas das linhas deste diário: a minha cada vez maior impaciência com aquilo em que o mundo se tem estado a transformar e com a maioria das gentes que actualmente o povoam. Ia gradativamente sentindo que os meus valores pouco lhes diziam e, pelo meu lado, pouca ou quase nenhuma apetência sentia pelos valores que eles privilegiavam. Um fosso enorme começava a separar-nos. Não se tratava só, da minha parte, de não compreender esse mundo novo e os seus jovens e menos jovens habitantes: é que não me apetecia fazer um esforço por compreendê-los. Tinham valores e gostos que não me interessavam: tinham subitamente desatado a não me interessar. Impacientavam-me, irritavam-me, pareciam-me cópias baratas e mal amanhadas de modelos exteriores, já de si, maus modelos, mas grosseira e superficialmente copiados: fúteis, ruidosos, malsãos, pouco elegantes. As pessoas vestiam-se mal, falavam mal, comiam mal, amavam mal, conversavam mal, liam mal, escreviam mal. As suas proclamadas “inovações” começavam a interessar-me cada vez menos, gostava cada vez mais de reler e cada vez menos de ler. Via, em tantas das saudadas e promovidas “inovações” apenas uma confrangedora falta de conhecimentos básicos e uma anemia sintáctica de mau agoiro. Sintomas de envelhecimento? Possivelmente. Mas tenho que dizer o que sinto, porque este exercício de escrever memórias impõe um duro código de autenticidade. Não posso nem devo fazer batota. Dito isto, não creio que se trate apenas de envelhecimento. O mundo não está numa das suas “finest hours”. O mundo está a mudar vertiginosamente para pior. Eu diria que caminha a passos largos para o abismo. As televisões tornaram-se um universo pavorosamente degradado, visando cada vez mais baixo, a bem das audiências mais boçais e da publicidade que as paga. O grau de imbecilidade e de sordidez da esmagadora maioria dos programas de quase todos os canais – com o futebol a açambarcar e infectar tudo, sob os olhos complacentes até da esquerda – é simplesmente indescritível: comenta-se, obsessivamente o “fado do grande e hórrível crime”: facadas, pauladas, tiros, punhaladas, sangue aos baldes, como em certas encenações das peças de Shakespeare, mas sem o benefício da magia do bardo. Dá-se a todo aquele aparato gótico e pantanal, uma aura de investigação académica, com doutos comentadores que chafurdam na minúcia clínica, que lhes permite, en passant, aludir, como quem não quer a coisa, à vagina macerada e salpicada dos restos de esperma do violador e assassino. Tudo muito minudente, entre o clínico e o lascivo. As audiências, gulosas, repletas, ouvem tudo aquilo, deliciadas e aguardando mais: talvez, no dia seguinte, haja um crime ainda melhor. Os Gouchas e as Pinheiros presidem àquele festim de misérias, sorridentes e aclamados, antevendo bolsos cheios de honorários galácticos, que lhes vão permitindo luxos como os sempre cobiçados trajos “de marca” & outros benefícios marginais. A própria televisão “pública” é um nojo de subserviência ao “mercado”, bonzo que adora sem reservas, entrando em concorrência despropositada de futebóis e outras lutas de gladiadores, à compita com “o privado”, em que também gostaria de se transformar. Porque ser privado e parasita do Estado é o objectivo máximo desta geração de Rastignacs portugueses do século XXI: mas Rastignacs, que temem o risco e só jogam no seguro. Não arriscar, não visar alto (nunca), e, mesmo assim, ganhar muito dinheiro e depressa – é o moto desta gente sem valores mas com ambição desregulada. O “espírito de serviço” desapareceu por completo e, se, por desfortuna, alguém pensa praticá-lo, é tido por pateta e pouco “moderno”. A palavra “moderno” tornou-se a maior prostituta do glossário nacional. As bancadas parlamentares bem comportadinhas e obedientes são uma ofensa à dignidade, à independência e à democracia. Os aparelhos partidários voltaram definitivamente costas aos interesses nacionais, para dividirem coutadas, como quem vende jóias roubadas. Os “donos” do aparelho são, para todos os efeitos, casos de polícia. As histórias de grossa corrupção tornaram-se deliciosamente quotidianas: todos os dias há uma melhor do que a do dia anterior. Nenhuma “imperfeição” do Primeiro Ministro é suficientemente grave para incomodar os ministros, seus colegas, nem os parlamentares da sua coligação, que estão ali, supostamente, para lhe escrutinar os actos. O “brio” é um conceito pré-histórico, obsoleto, escarnecido. Um Primeiro Ministro, em Portugal, nem à pedrada se demite. " 
Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula, Memórias-V-Regresso a Portugal: (1995-2015)", Editora Opera Omnia, Outubro de 2015,  pp.185,186,187

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