segunda-feira, 20 de maio de 2013

Quero a minha flor ( 1ª parte)

O conto que se vai transcrever  será  publicado em duas partes, sendo  a segunda  e última parte publicada amanhã.
Flor, Telefone, Moça
“Não, não é um conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuto, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava, e é doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.
Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga - bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores - ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.
- Sei de um caso de flor que é tão triste!
E sorrindo:
- Mas você não vai acreditar, juro.
Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.
- Era uma moça que morava na rua General Polidoro, começou ela. Perto do cemitério São João Baptista. Você sabe, quem mora ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda a hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que de não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.
Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores - por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a acompanhar o préstito até ao lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar de passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direcção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça pela curiosidade de enterros, sei lá porquê, deu para andar em São João Baptista, contemplando túmulo. Coitada!
- No interior isso não é raro...
- Mas a moça era de Botafogo.
- Ela trabalhava?
- Em casa. Não me interrompa. Você não me vai pedir a certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear - ou melhor, «deslizar» pelas ruínas brancas do cemitério, mergulhada em cisma. Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões - sim, há-de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse o morro, onde está a parte nova do cemitério, e os túmulos mais modestos. E deve ter sido lá que uma tarde, ela apanhou a flor.
- Que flor?
- Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz - não tem cheiro, como inconscientemente já se esperava -, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.
Se a moça jogou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer este ponto, mas foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.
- Alooô...
- Quede a flor que você tirou de minha sepultura?
A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E meio sem compreender:
- O quê?
Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois, o telefone chamava de novo.
- Alô.
- Quede a flor que você tirou de minha sepultura?
Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada.
- Está aqui comigo, vem buscar.
No mesmo tom lento, severo e triste, a voz respondeu:
- Quero a flor que você me furtou. Me dá a minha florzinha.
Era homem? Era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça topou a conversa:
- Vem buscar, estou te dizendo.
- Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero minha flor, e você tem obrigação de devolver.
- Mas quem está falando aí?
- Me dá minha flor, eu estou te suplicando.
- Diga o nome, se não eu não dou.
- Me dá minha flor, você não precisa dela e eu preciso. Quero a minha flor, que nasceu na minha sepultura.
O trote era estúpido, não variava, e a moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada.
Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente, foi atender.
- Alô.
- Quede a flor...
Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada voltou ao trabalho. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse:
- Olhe, vire a chapa. Já está pau.
- Você tem que dar conta de minha flor, retrucou a voz de queixa. Pra que foi mexer logo na minha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor.
- Esta é fraquinha. Não sabe de outra?" (Continua)
Carlos Drummond de Andrade, in “Flor, Telefone, Moça”, in Antologia do Conto Moderno, Arcádia,

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