segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ferreira Gullar, poeta da resistência


Ferreira Gullar,  vencedor do Prémio Camões 2010, foi uma forte  voz da  resistência na época da Ditadura no   Brasil .
Recordar o seu percurso poético na denúncia de um tempo de opressão e de supressão do valor fundamental que é a LiBERDADE, remete-nos para um  artigo de Cimara Valim de Melo, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul ( Brasil),  "A resistência poética de Ferreira Gullar",  que no resumo inicial expõe o seguinte: "O enfoque deste artigo dirige-se à análise de produções poéticas de Ferreira Gullar, publicadas nas décadas em que perdurou o regime ditatorial no Brasil. A resistência desse múltiplo escritor à fragmentação do mundo existente ao seu redor, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, dá-se não apenas através de seu viver revolucionário, ferrenhamente crítico, mas principalmente por meio de sua produção poética recheada de ousadia, perigo e liberdade, com a publicação dos livros "Dentro da noite veloz" (1975), "Poema Sujo" (1976) e "Na vertigem do dia" (1980). Testemunha de uma realidade contraditória e injusta, Gullar recriou em seus versos a lucidez e a revolta frente a um tempo vazio de sentido. Ultrapassou as fronteiras literárias, semeando a esperança em momentos de perseguição política e de crises sociais."  Já no desenvolvimento  do artigo, a autora prossegue : " (...)  Testemunha de uma realidade injusta e dilacerada, cruzada por conflitos e múltiplas experiências culturais, Gullar representou a lucidez frente à poesia e a revolta em um vazio de sentido. Seu percurso literário não se restringiu a um estilo, mas ampliou-se a vários: passou por tendências parnasianas e clássicas, idéias concretistas e neoconcretistas, pela poesia popular nordestina, chegando às produções combatentes, ardentemente críticas. A diversificada produção origina-se de um múltiplo escritor – poeta, cronista, crítico, tradutor, teatrólogo, ensaísta, artista - o qual interage dinamicamente em um mundo prismático.
Não há espaço para a poesia ingénua e sublime, ela deve voltar-se à vida terrena e ser uma forma de protesto contra a desumanização crescente, inerente ao mundo capitalista. A impureza está no mais profundo olhar à existência humana, olhar que paira na sujeira da subvida brasileira, na realidade árida do cotidiano, nas intempéries de nosso tempo, como nos mostra o poema :

NÃO HÁ VAGAS
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz do telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

— porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

GULLAR,  Ferreira, in “Dentro da noite veloz” , 1975 ,Toda Poesia. 11.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001

(…)O poema "Traduzir-se", publicado em 1980 em "Na vertigem do dia ", é a forma do desencontro íntimo do “eu-lírico”, conseqüência de sua fragmentação interior. O ser que se desconhece carece de tradução, pois é um poço de contradições.(…) A impostura da poesia relaciona-se com a ousadia e a liberdade. Seu perigo e sua impureza remetem às funções sociais do poeta moderno – indagador, filósofo, profeta – que,muitas vezes, desorganiza o mosaico ao seu redor. A contrariedade do mundo força-o a ser crítico e a fazer de sua criação poética um modo de resistência.»

TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

Ferreira Gullar, in  "Na vertigem do dia" 1980,  Toda Poesia. 11.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001                                              

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefacto
um poema
uma bandeira


FERREIRA GULLAR, Toda Poesia. 11.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001

“Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo,acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus. Mas que nasce das mãos e do espírito dos homens.”  Ferreira GULLAR, "Toda Poesia" , 11.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001

A obra poética de Ferreira Gullar transporta-nos uma parte da história do  homem que lutou contra a adversidade manejando singular e admiravelmente  a força da palavra.

O  artigo, "A resistência poética de Ferreira Gullar", de Cimara Valim de Melo foi publicado na Revista " Nau literária" da UFRGS , em 2005

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